Suficientemente desinformado a respeito da realidade que questionava, o jornalista português quase que se adiantou a concordar com o Presidente. “Pode haver má nutrição…”, apressou-se o entrevistador. “Pode haver alguma má nutrição, há sempre alguma. Mas, mesmo assim, comparativamente aos anos de conflito, houve uma evolução bastante significativa”, respondeu-lhe o Presidente, em plena Cidade Alta. O tal Palácio que fica a escassos quilómetros de inúmeros bairros de lata, onde a fome, como um vírus inexpugnável, sempre residiu nos lares de milhares de famílias.
A primeira declaração pública da ausência de fome em Angola seria dos primeiros calafrios que o Presidente da República teria causado a qualquer ajuizado com dois dedos de testa. Ocorria que uma maioria expressiva dos angolanos ainda se encontrava inebriada com o projecto de desmantelamento do legado de José Eduardo dos Santos.
Até mais provas em contrário, as palavras de João Lourenço deviam ser vistas como bem intencionadas e talvez até honestas. Ou, se tanto, como um mero deslize de um autoproclamado reformador que, nos instantes seguintes da entrevista, prometeu deixar os direitos e as liberdades dos cidadãos “num nível o mais alto possível”.
Para quem acreditou na última hipótese, foi sol de pouca dura. Pouco mais de ano e meio depois, João Lourenço mergulhou nas memórias da entrevista ao canal português para reafirmar-se como um homem de convicções inabaláveis, ainda que desorientadas. "A fome é sempre relativa", determinou, em Dezembro de 2021, num comício perante militantes do seu partido.
Entretanto, já eram outros tempos. O período de graça que os angolanos gentilmente lhe haviam concedido estava terminado. Com excepção dos militantes do MPLA e dos seus activistas dissimulados, que se desdobraram a defender o indefensável, todos lhe caíram em cima.
As imagens vulgarizadas de famílias que diariamente se acotovelavam nos contentores à procura de lixo para encherem o estômago já eram demasiado chocantes. Ouvir do próprio Presidente que a fome era relativa tornava tudo mais grave e surreal. Porque não se tratava apenas da insensibilidade colocada num patamar sem paralelo.
O que muita gente percebeu, em termos definitivos, é que João Lourenço não fazia a mínima ideia do país que tinha em mãos. O que significava, entre tudo o que fosse grave, que os ango- lanos que passavam fome estavam literalmente entregues à sua sorte. Não podiam contar com o Governo, porque o Governo é uma pessoa que nunca soube que em Angola sempre houve fome.
Contudo, não é aqui que a história termina. Mais de dois anos depois da última tese que teorizou a relativização da fome no seu próprio país, eis que João Lourenço vai a Nova Iorque defender a erradicação da pobreza extrema no mundo. Para quem o julgou incongruente, equivocou-se em toda a linha.
O Presidente angolano manteve-se fiel à sua palavra. Para ele, a distinção entre uma coisa e outra não é apenas possível como é absolutamente clara. Onde há pobreza extrema não há necessariamente fome.
A fome vai continuar a ser relativa, pelo menos em Angola. Terá sido, aliás, por essa razão que, no discurso em que defendeu a erradicação de todas as formas de pobreza, não fez uma única referência à fome. Muito menos à fome em Angola.
Ninguém o pode acusar de, em relação a isto, ter faltado com a palavra. É o aspirante a novo filósofo, (in) conformado com os sucessivos fracassos no tabuleiro de xadrez.
Por Evaristo Mulaza
Valor Económico