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Domingo, 17 Julho 2022 20:46

José Eduardo dos Santos. Os últimos anos

Um homem engenhoso que ficou sem os bajuladores: No fim de abril de 2021, José Eduardo dos Santos foi filmado no controlo de passageiros da zona VIP do aeroporto do Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, quando se preparava para embarcar rumo a Barcelona, Espanha, depois de ter passado uma temporada com a filha Isabel dos Santos, na sequência da morte do marido desta, Sindika Dokolo, num acidente de mergulho, em outubro de 2020.

As imagens, à data raras, mostravam um homem debilitado e com evidentes dificuldades em andar. Ainda assim aceitou que aquele momento fosse registado, presumivelmente por um dos filhos mais novos, e até acenou para a câmara.

A solidão patente naquela imagem foi a que o acompanhou desde a sua saída da Presidência da República de Angola, em 2017. Nos últimos dias de setembro mudou-se para uma residência opulenta no bairro do Miramar, com piscinas, campo de basquetebol e outros equipamentos, onde o Governo lhe tinha preparado uma réplica em miniatura do Palácio da Cidade Alta, no qual havia habitado enquanto chefe de Estado.

As mordomias de pouco lhe serviram. O seu poder esvaiu-se e os que antes lhe eram reverentes começaram a afastar-se, excetuando os indefetíveis generais Manuel Hélder Vieira Dias (Kopelipa) e Leopoldino Fragoso do Nascimento (Dino). O seu antigo vice-presidente, Manuel Vicente, bateu com a porta e até a mulher, Ana Paula dos Santos, se afastou dele. Já ia distante o ano de 2015, durante o qual a antiga hospedeira tinha assegurado à revista angolana Super Fashion que o marido era "o ser mais fascinante" que conhecera. Chegou mesmo a ser ventilado um divórcio, mas esta hipótese não se concretizou e Ana Paula dos Santos, nos últimos tempos, já com o marido debilitado e em Barcelona, reaproximou-se dele. "Nos últimos quatro anos esteve com ele dois meses prestando suposto apoio", acusou Tchizé dos Santos. Longe vão os tempos em que Tchizé e Ana Paula dos Santos, juntas, acompanharam Eduardo dos Santos quando este estreou a residência no Miramar, na zona alta de Luanda, lugar predileto das embaixadas, com vista para a baía. Kopelipa e Dino, este último visita frequente em Barcelona, também deixaram de poder ver o "chefe" por força das limitações impostas pela justiça angolana.
Despojado da sua função de Presidente, Eduardo dos Santos perdeu a aura e a corte. Os bajuladores foram exercitar esta arte junto do novo poder. Pior. Assistiu aos ataques judiciais à sua família após o seu sucessor, João Lourenço, ter feito do combate à corrupção a sua principal prioridade, sem esboçar uma reação que fosse publicamente notória. Contemplou, em silêncio, a demissão da filha Isabel da presidência da Sonangol, lugar para o qual a tinha nomeado, e as acusações de que a empresária tinha desviado fundos públicos. Aguentou ainda a prisão do filho José Filomeno dos Santos, antigo líder do Fundo Soberano de Angola, também por ele indigitado, acusado de crimes como burla, defraudação e peculato. Mas quando João Lourenço clamou, em novembro de 2018, que o seu antecessor tinha deixado os cofres públicos depauperados, Eduardo dos Santos acabou por reagir. "Não deixei os cofres do Estado vazios. Em setembro de 2018, na passagem de testemunho, deixei 15 mil milhões de dólares no Banco Nacional de Angola como reservas internacionais líquidas a cargo do gestor que era o governador do BNA [Banco Nacional de Angola] sob orientação do Governo."

Todavia, sem espaço de manobra e capturado por uma teia de poder muito semelhante à que tinha tecido enquanto Presidente, José Eduardo dos Santos acabou por sair de cena e em abril de 2019 partiu para Barcelona, a pretexto de necessitar de cuidados devido à sua doença oncológica. Na realidade, o antigo líder angolano optou por um exílio autoimposto que só quebrou a 13 de setembro de 2021, quando regressou a Luanda. Um caminho também escolhido pelas filhas Isabel e Tchizé, que elegeram João Lourenço como o seu inimigo público número 1.

Já com a morte a assomar à cabeceira de Eduardo dos Santos, João Lourenço concedeu uma entrevista à RTP a 28 de junho, onde opta por separar as águas no relacionamento entre ambos. "A nossa relação é boa, durante este tempo tivemos vários encontros, e quase sempre quem se deslocou ao encontro com José Eduardo dos Santos fui eu. Eu é que sou o chefe de Estado e fui eu que me desloquei, isso é um sinal mais do que evidente de que as relações são boas. [Mas] uma coisa são as minhas relações entre ele e eu, outra coisa é a luta contra a corrupção, que não é contra pessoas, não é contra famílias, é contra quem estiver envolvido nesses casos, aí a justiça angolana andará atrás dessas pessoas ou famílias."

Em junho de 2013, numa entrevista à SIC, José Eduardo dos Santos projetava o seu grande sonho para Angola - "uma sociedade inclusiva em que todos se sintam bem e beneficiem da prosperidade". O país ainda está muito distante deste desiderato e o próprio ficará também na história como um dos protagonistas desse falhanço.

Os últimos dias de vida foram marcados por um espetáculo mediático que José Eduardo dos Santos certamente dispensaria, visto que sempre preferiu o recato ao protagonismo. A este propósito, Estelle Maussion escreve no livro O Domínio de Angola - Um retrato do poder de José Eduardo dos Santos: "Mostra-se sempre engenhoso perante os inimigos e os obstáculos. As dificuldades parecem aguçar nele a capacidade de manobra, a perspicácia política, a audácia, o pragmatismo."

As acusações da família à mulher, Ana Paula dos Santos, e a JLO, com insinuações de que o Governo angolano teria criado condições para o desaparecimento físico do antigo Presidente, assim como o finca-pé em manter as máquinas ligadas, mesmo sabendo que o estado da saúde de Eduardo dos Santos era irreversível, serviram para montar um aparato que foi retirando a solenidade a um momento triste.

A solenidade de um funeral de Estado, em que todos exaltam as virtudes do falecido, é o epilogo da história de um homem que foi rei no xadrez do poder angolano e acabou transformado num peão desse jogo complexo que dominou de forma incontestada enquanto liderou o país. Afinal, como diz o ditado, rei morto, rei posto. SÀBADO

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