Terça, 16 de Dezembro de 2025
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Terça, 16 Dezembro 2025 12:18

Quando o presidente desce ao bar e a rua sobe ao debate

Ao fim-de-semana, saio para dançar. É uma terapia que adoptei para exercitar o corpo, manter a resistência física e libertar a mente. Curiosamente, há jovens que não aguentam o meu ritmo, e isso gera comentários. Ficam muito mais ofegantes do que eu quando dançam três ou quatro músicas seguidas. Ter menos idade, neste caso, não é uma variável directamente proporcional à competência.

É fora dos estúdios, longe dos púlpitos oficiais e dos comunicados ensaiados, que surgem as conversas verdadeiramente reveladoras. Neste último fim-de-semana, alguns desses jovens abordaram-me não apenas para falar de "A Navalha de Sábado", mas sobretudo para comentar o assunto do momento: o chamado “barulho político” alimentado pelo Presidente do MPLA e da República, João Lourenço.

A ideia que esses jovens têm, partilhada entre uma música e outra, no intervalo da dança, é clara, dura e perturbadora. São de opinião que um Presidente de um partido político e, simultaneamente, da República não pode confundir um discurso político com uma conversa de bar, nem tratar a coisa pública com ligeireza retórica. Para eles, João Lourenço revelou uma pobreza argumentativa incompatível com a estatura institucional do cargo que ocupa. Não se trata de antipatia política nem de irreverência juvenil; trata-se de exigência democrática. A rua fala, a noite observa e a juventude conclui, sem filtros nem assessores: Angola precisa de um Presidente que eleve o debate político, não que o banalize nem o empobreça.

O mais grave é que esta leitura não se limita à juventude. Pessoas mais velhas, com memória histórica, experiência política e sentido de Estado, abordaram-me com a mesma inquietação. Na sua leitura, o problema é estrutural e antigo. O MPLA capturou o Estado e todas as instituições angolanas, e João Lourenço não rompeu com essa lógica; antes, adaptou-se a ela e passou a geri-la. Tudo funciona segundo a vontade do partido, e não como resultado da aplicação efectiva da lei, reduzida a mera formalidade constitucional e democrática. O diagnóstico é duro, mas recorrente: vivemos, na prática, num regime autocrático com verniz legal.

Quando assim é, os detentores do poder não se incomodam com acusações, existam ou não provas. Foi o que se viu na reacção, ou na ausência dela, do responsável do SINSE, Fernando Garcia Miala, perante acusações graves, públicas e politicamente sensíveis. O silêncio institucional deixou de ser acidente e passou a ser método. Impera a velha lógica dos corredores do poder: os cães ladram e a caravana passa. Num verdadeiro Estado democrático e de direito, um Presidente exigiria explicações, ordenaria inquéritos e falaria ao país com clareza e responsabilidade. Em Angola, prefere-se o ruído controlado para distrair e o silêncio conveniente para proteger.

Num Estado de direito funcional, haveria normalização institucional e respeito rigoroso pelas leis da República, sem excepções nem intocáveis. Em Angola, porém, a lei parece valer apenas para os de baixo, enquanto os de cima circulam com imunidade prática. Até lá, a luta será longa e exigirá inteligência política, consciência cívica e organização social para que o povo possa sair vencedor. Não por carisma presidencial nem por propaganda partidária, mas por maturidade colectiva.

Mais duro, e profundamente revoltante, sublinham muitos dos que me abordaram, é constatar que os principais aplausos a estas atitudes e a este grave desrespeito pela lei vêm precisamente de quem deveria combatê-las. Pessoas com elevada formação académica, doutorados incluídos. A inteligência foi colocada ao serviço do poder, não da República. O interesse pessoal ou de grupo suplantou o interesse colectivo, sem pudor, sem vergonha e sem responsabilidade histórica.

As instituições castrenses, que deveriam ser a reserva patriótica da Nação, perderam identidade, missão e autonomia moral, contribuindo para um Estado cada vez mais refém de indivíduos e de grupos organizados ao serviço de interesses estrangeiros, hostis ao desenvolvimento dos países africanos e ao bem-estar dos seus povos. A História africana é clara quanto ao preço pago por quem ousou resistir: Patrice Lumumba, Thomas Sankara, Muammar Kadhafi e tantos outros líderes africanos foram assassinados por lutarem pela libertação de África face ao domínio das potências ocidentais, sempre sedentas dos nossos recursos minerais.

Talvez este texto seja apenas uma amostra da opinião pública que não passa pelas rádios nem pelas televisões. Mas é precisamente por isso que importa ouvi-la, porque quando o Presidente fala num comício partidário que assinala o aniversário do seu partido como se estivesse num bar, é a rua que acaba por assumir o papel de consciência crítica do país, elevando o debate. Que sirva, pelo menos, para alguma reflexão. E, desta vez, sem barulho.

Carlos Alberto

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