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Terça, 21 Abril 2020 23:32

Aplicação dos pressupostos do direito humanitário e dos direitos humanos no combate à covid-19

Não é de todo um procedimento destituído de mérito se neste momento sanitário e jurídico crítico que vivemos, com o insidioso combate à invisível Covid-19 (SARS-Cov-2), pautássemos as nossas acções e atitudes tendo na mira pressupostos de alguns instrumentos jurídicos e políticos fundacionais da humanidade

O que ao longo de séculos cruzaram e vão cruzando várias gerações construindo, unificando e aperfeiçoando processos, sistemas, nações e povos em busca da paz, estabilidade, fraternidade, solidariedade social e económica para o bem estar de toda a humanidade.

Nas sociedades primitivas, a organização e a ordem assentavam em comunalíssimos (sistema que defende privilégios comunais ou municipais). O surgimento dos Estados aportou uma organização mais eficiente e estruturada permitindo a distribuição dos poderes com base na lei. Com isto, deu-se também o crescimento dos direitos desenvolvendo as nações que hoje se constituem como tal, dentre eles, os direitos humanos e o direito humanitário.

A emergência dos Estados foi crucial para o desenvolvimento e evolução do direito humanitário e dos direitos humanos, sendo todos eles centrados no Estado. Ou seja, o Estado detém a obrigação de cumprir e fazer cumprir os pressupostos do direito humanitário e dos direitos humanos respeitantes ao indivíduo, que deste (Estado) depende para ver protegidos os seus direitos e garantido o atendimento das suas petições e reclamações face a possíveis violações de tais direitos.

Fazendo um pouco de pedagogia, o direito humanitário e o corpo dos direitos humanos dispõem de instrumentos e mecanismos com os quais se deve garantir e materializar a protecção dos direitos humanos e humanitários do cidadão.

Aliás, a diferença entre os dois sistemas é bastante subtil, sendo eles interdependentes um do outro. Direito humanitário compreende um conjunto de regras estabelecidas por tratados internacionais visando limitar os efeitos dos conflitos armados protegendo as pessoas e propriedades/objectos dos seus efeitos letais, bem como restringir e regular o uso de meios e métodos de combate pelas partes em conflitos.

O direito humanitário visa, principalmente, a protecção de pessoas e grupos mais vulneráveis, tais como crianças, mulheres (grávidas ou lactantes), deficientes, idosos, prisioneiros, feridos e enfermos em situação de conflito.

Direitos humanos são um conjunto de normas que regulam a relação entre os Estados e os indivíduos no contexto da vida ordinária ou diária.

A diferença entre os dois, além da sua estrutura conceptual, reside no facto de os direitos humanos serem aplicáveis em situação de guerra ou paz e o direito humanitário apenas em situações de guerra ou emergências, buscando proteger os grupos mais vulneráveis.

Ambos instrumentos jurídicos resultam da adopção pelas Nações Unidas da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, como um instrumento orientador não vinculativo da lei dos direitos humanos.

No âmbito geral, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tornou-se numa autoridade de referência internacional no que respeita aos direitos humanos, servindo de base para a criação de vários outros instrumentos internacionais relativos ao direito humanitário e aos direitos humanos, que hoje constituem documentos internacionais vinculativos e de cumprimento obrigatório para todos Estados que a eles aderem ou ratifiquem.

A adesão de um Estado a estes instrumentos dá-se quando este Estado não participou no processo de negociação do referido instrumento (tratado ou convenção), podendo aderir com reservas sobre certas cláusulas desde que o referido tratado ou convénio disponha neste sentido. A ratificação é aplicável aos Estados que tendo interesse participaram no processo de negociação para a adopção do tratado ou convénio.

Além da adopção em 1966 de dois amplos convénios que são parte integrante da Carta Internacional dos Direitos Humanos, nomeadamente o Convénio Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Convénio Internacional sobre Direitos Económicos, sociais e Culturais, foram também adoptados vários outros tratados a nível internacional. Todos eles conhecidos como instrumentos dos direitos humanos:

- Em 1948, foi adoptada a Convenção sobre a Prevenção e Punição de Crimes de Genocídio (CPCG-sigla em Inglês), que entrou em vigor em 1951.

- No mesmo ano, a Convenção Relativa aos Estatutos dos Refugiados (CSR), que passou a vigorar a partir de 1954.

- Em 1965, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (CERD), entrando em vigor em 1969.

- Em 1981, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Descriminação Contra a Mulher (CEDAW).

- Em 1989, a Convenção sobre os Direitos da Criança (CRC), que passou a vigorar a partir de 1990.

- A 3 de Maio de 2008, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CRPD). Apenas para citar alguns.

Em Angola, em face da incidência da pandemia causada pela Covid-19, foi decretado o estado de emergência, por 15 dias, a 25 de março do corrente, entrando em vigor no dia 27 do mesmo mês. Tendo sido prorrogado para mais 15 dias, cessando a 25 de Abril.

Durante o período de vigência desta corajosa e oportuna medida tomada pelo executivo angolano, não pudemos deixar de verificar as inúmeras dificuldades de vária ordem enfrentadas pelos destinatários desta medida (os cidadãos), que todos os dias não se apartam de as manifestar. Desde a falta de mantimentos para o seu sustento enquanto cumprem a ordem de confinamento até à impossibilidade de regresso daqueles que se encontram retidos no exterior do país. Os esforços do executivo são visíveis, apesar de serem ainda insuficientes devido aos escassos recursos disponíveis.

Perante este quadro de emergência sanitária e social difícil e imprevisível, sendo Angola parte dos vários instrumentos internacionais atrás referidos, é de se sugerir que, à semelhança do que se passou durante a fase de conflito em Angola, que se lance mãos dos mecanismos internacionais de solidariedade social e assistência humanitária das Nações Unidas (PAM) e outras organizações internacionais de assistência humanitária no sentido de também intervirem em socorro das populações mais carentes.

Nesta altura, não devemos olhar apenas para testes, ventiladores e vacinas. As populações mais carenciadas apresentam necessidades em bens essenciais para o seu sustento. Porquê não recorrermos também em busca deste aporte que poderá ser em espécie ou recursos financeiros para apoiar as famílias mais desfavorecidas? Isto evitaria o recurso ao FMI que nada mais faz do que agravar o quadro de endividamento em que o país já se encontra mergulhado.    

Simão Pedro

Jurista

Doutorando em Direitos Humanos/Humanitário Internacional

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