De facto, no mundo político, as mudanças e os acontecimentos muitas vezes precipitam-se, mudando o curso previsível da história. Assim, em Angola, restam cerca de 100 semanas para mudar o cenário de derrota. O problema é que as razões da provável derrota do MPLA são demasiado estruturais para se inverterem rapidamente.
Em primeiro lugar, o partido caiu na chamada “armadilha de Tácito”, expressão que nasceu dos escritos de Cornélio Tácito, um dos maiores historiadores da Roma Antiga, conhecido pela sua crítica mordaz à corrupção e à decadência moral do poder imperial e segundo o qual os governantes, cercados por bajuladores e isolados da realidade, acabavam por perder o sentido de justiça e a ligação com o povo. A “armadilha de Tácito” refere-se ao fenómeno político em que um governante, mesmo tomando medidas correctas ou populares, continua a perder apoio e credibilidade junto da população. A ideia é que, quando um governo está demasiado desacreditado, qualquer medida que tome será vista com desconfiança – se faz algo bom, isso é visto como oportunismo; se faz algo mau, confirma-se o que já se pensava. É uma espécie de ciclo de descrédito que se retroalimenta, tornando quase impossível alterar a percepção negativa. E a história repete-se – em Luanda como em Roma.
Em segundo lugar, há o problema económico, que é profundo e afecta toda a população, com a provável excepção de uma pequena elite com acesso aos círculos centrais do poder.
Muitos ficaram admirados com a recente intervenção do deputado do MPLA Paulo de Carvalho, que criticou o governo liderado pelo seu próprio partido. Na verdade, quem tenha estado presente na Primeira Conferência Nacional sobre Boa Governação, organizada pelo inspector-geral da Administração do Estado, João Pinto, que ocorreu em Luanda em Janeiro passado, terá assistido a uma intervenção do mesmo deputado na qual já se percebia o exacto mal-estar que afecta a sociedade angolana e corrói a popularidade do MPLA. Na altura, Paulo de Carvalho, falando como professor catedrático de Sociologia e tomando como exemplo o seu próprio caso, explicou o descontentamento da sociedade angolana: é que em 2017 o valor do salário correspondia a cerca de 5000 dólares, ao passo que agora equivale a uns meros 1000 dólares (como cito de memória, os valores não serão exactamente estes).
Com a flexibilização total da taxa de câmbio do kwanza face ao dólar (e às outras moedas), a população pertencente às elites perdeu mais de metade do seu poder de compra. Este mesmo fenómeno alastrou-se às classes médias e afectou todo o povo, o que, aliado à persistente inflação e ao desemprego, criou uma situação de extremo empobrecimento generalizado, desde os professores universitários ligados ao regime até aos pobres residentes nos musseques.
Nos termos do recente relatório oficial da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), entre 2021 e 2023, registou-se um agravamento significativo da situação alimentar em Angola. O número de pessoas desnutridas aumentou de 6,8 para 8,3 milhões, reflectindo uma deterioração das condições nutricionais no país. Cerca de 79,2% da população – aproximadamente 28 milhões de angolanos – enfrentou insegurança alimentar moderada, enquanto 11 milhões vivem em situação de insegurança alimentar grave. Em 2023, 1,3 milhões de pessoas foram afectadas por níveis elevados de insegurança alimentar aguda, exigindo resposta humanitária urgente.
Sublinhe-se que a fome que assola as famílias mais pobres em Angola tornou-se uma realidade brutal e inaceitável. Abundam os relatos sobre famílias forçadas a buscar sustento nos restos descartados pelos mais afortunados, recorrendo ao lixo como única fonte de sobrevivência. Essa situação não apenas evidencia a inexistência de políticas públicas eficazes, mas também exige uma resposta urgente e contundente por parte da sociedade e do Estado, resposta essa que não se tem verificado. É fundamental encarar esta tragédia com a seriedade que merece, rompendo o silêncio e a indiferença diante de um sofrimento que todos os dias dilacera milhares de vidas.
Ainda hoje, não se entende a razão para a flexibilização abrupta da taxa de câmbio do kwanza. Nem na Argentina de Javier Milei – o novo herói (e até ao momento com sucesso no que toca ao controlo da dívida pública e da inflação) do neoliberalismo – se procedeu à flexibilização total do câmbio do peso (moeda argentina) de forma imediata. Milei não liberalizou totalmente o peso argentino logo após assumir a presidência em 2023, embora essa fosse uma das promessas centrais da sua campanha. Em vez disso, adoptou uma série de medidas iniciais para estabilizar a economia, como a desvalorização controlada do câmbio oficial, a proibição da emissão de moeda pelo Banco Central para financiar o Tesouro, a suspensão de novas obras públicas e a transformação de empresas estatais em sociedades anónimas com vista à privatização. Milei optou por uma abordagem gradual, dando prioridade ao equilíbrio fiscal e à estabilização do mercado cambial.
Em Angola, foi tudo feito sem planeamento, sem preparação e à bruta. Porquê?
A isto acresce que as políticas do Fundo Monetário Internacional (FMI), devido ao seu efeito restritivo, acentuaram a pobreza e não tiveram sucesso: a despesa pública continua irracional, a inflação pouco ou nada abrandou e, sobretudo, o grande objectivo do FMI falhou: as finanças públicas mantêm-se extremamente frágeis.
Na verdade, os gastos públicos têm seguido uma trajectória alarmante de irracionalidade, com adjudicações presidenciais bilionárias realizadas sem concurso público nem fiscalização adequada, comprometendo a transparência e a boa gestão dos recursos do Estado. Esta prática, somada ao aparente reaparecimento (ou manutenção) da corrupção grave em diversas esferas do poder, minou a confiança da população e agravou ainda mais as desigualdades sociais.
Finalmente, a manutenção da mesma equipa económica, liderada por Lima Massano e Vera Daves, com resultados muito questionáveis e que geram crescente insatisfação popular, reforçou a percepção de estagnação e favorecimento político, em detrimento de reformas estruturais urgentes e de uma verdadeira renovação na condução da política económica.
Ao contrário de muitos, entendo que a actual impopularidade do MPLA resulta directamente desta incapacidade política de gestão económica e do empobrecimento acelerado que as opções económico-financeiras do executivo provocaram.
Não é tanto uma questão de direitos, liberdades, abertura política ou prática democrática, mas sim uma enorme falha económica – porque, como diz um velho adágio, primeiro é preciso viver, e só depois filosofar (“primum vivere, deinde philosophari”). Tradicionalmente atribuído ao filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679), e retomado por pensadores como Schopenhauer (1788-1860) e Kierkegaard (1813-1855), a ideia central deste adágio é que, antes de o ser humano se poder dedicar à reflexão filosófica ou à busca do sentido da vida, precisa de garantir as condições básicas da existência, nomeadamente a alimentação, a segurança e a sobrevivência em geral.
Para os dirigentes do MPLA, que se formaram na escola marxista e terão uma visão determinística da história, deverá ser fácil perceber o momento que se vive no país: as condições materiais (infra-estrutura) não correspondem às instituições (superestrutura), razão pela qual há condições objectivas para uma revolução, através da qual se reponha a correlação entre condições materiais e poder.
Assim, a tarefa com que o MPLA se defronta nas próximas 100 semanas é de extrema dificuldade, pois o bem-estar económico não se decreta e a imagem negativa absorvida por largas camadas da população não se reverte num instante, sobretudo se algumas lideranças – como nos confessam fontes reformistas do partido – insistem em manter-se alheadas da realidade: “Não querem ouvir nem perceber. Existe uma cegueira recheada de teimosia e arrogância.”
No final de contas, em Angola, não é a oposição que se prepara para ganhar as eleições – até porque não há sinais de propostas estratégicas da UNITA capazes de superar as dificuldades do país e melhorar o bem-estar dos angolanos. É o próprio governo que, ao recusar o contacto com as realidades populares, vaticina a sua deposição. Rui Verde | Maka Angola