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Sexta, 12 Junho 2020 12:39

O sonho da independência efectiva falhou e precisamos de perspectivar um novo começo

Nesta entrevista por e-mail, a primeira após deixar a chefia da UNITA, Isaías Samakuva diz que não parou de pensar o país e vai voltar ao Parlamento para se fazer ouvir. Diz que vê "um país dividido entre os oligarcas que delapidaram os recursos nacionais" e o povo empobrecido que exige "um novo começo".

O Novo Jornal publica hoje a primeira parte e, na próxima edição, trará a segunda parte de uma conversa que acontece quando já está há seis meses solto das "limitações político-partidárias". Começa com o Novo Jornal a perguntar-lhe se... ao fim de seis meses fora da chefia da UNITA, e depois de cerca de 17 anos na liderança, é necessário um esforço para mudar hábitos e encontrar novos interesses.

Isaías Samakuva (IS) - Há muita coisa que podemos fazer por Angola, para além do exercício da presidência de um partido político. E já estamos a fazer. Desde jovem que tracei o programa director para a minha vida, com objectivos e alvos claramente definidos. Abracei a causa da independência de Angola e decidi consentir todo o tipo de sacrifícios para dar o meu contributo à missão de salvar Angola e os angolanos dos opressores estrangeiros. Compreendi depois que era preciso fazê-lo também em relação às forças oligárquicas que capturaram o Estado independente e se apoderaram da economia para subjugar os angolanos. Sinto que tive o privilégio de contribuir para a edificação da cidadania angolana e para a construção dos alicerces para a paz democrática no país e na África Austral.

Novo Jornal (NJ) - Tarefa quase interminável...

IS - Continuo um cidadão activo, com os mesmos interesses, a mesma dinâmica, os mesmos objectivos. Portanto, tirando os constrangimentos que a Covid-19 nos impõe, não tem sido necessário fazer esforço suplementar para me manter ocupado. Há muita coisa por fazer. Um combatente pela emancipação de África não se aposenta da luta pela construção da Nação angolana e pela dignificação dos africanos.

NJ - Não se aposentou nem se esperava que assim fosse. Que caminhos tem seguido?

IS - Continuo a trabalhar na implementação do meu programa director. Dispensei um mês para férias, as primeiras em mais de 40 anos! Depois passei algum tempo na rearrumação e reclassificação dos meus arquivos acumulados ao longo da minha vida. Documentos, livros, fotografias, vídeos, etc., contam por si a minha história e muitos deles são testemunhos indesmentíveis de factos da História nacional. Com base neles, comecei a materializar um dos pontos do meu programa previstos para a fase em que me encontro e que se traduz no registo, do meu ponto de vista, sobre vários aspectos com que me "cruzei" na minha vida até aos dias que correm.

NJ - Muitos projectos...

IS - Vários. Pessoais, familiares, sociais e políticos, naturalmente.

NJ - Está a escrever as suas memórias?

IS - Sim. Já estou a fazê-lo.

NJ - Como olha hoje para o país?

IS - Com um sentimento de profunda frustração. Vemos um país dividido entre os oligarcas que delapidaram os recursos nacionais e os governados, empobrecidos por quem os devia proteger e prestar contas. Vemos um país que precisa de um diálogo institucional, franco, abrangente e aberto para um novo começo.

NJ - Começar de novo...

IS - Sim. O país que precisa de julgamentos, mas que precisa mais de diálogo do que de recriminações. Precisa mais de patriotas dedicados e prontos para servir o povo em qualquer parte do país do que técnicos engravatados que, mesmo sendo jovens, evidenciam possuir os mesmos vícios da cultura da governação selectiva e discriminatória.

Vemos um país que precisa desesperadamente de substituir a ganância de grupos pela solidariedade nacional e pelo patriotismo, pois este potencia a inovação na resolução dos problemas, promovendo novas formas de manifestar a solidariedade nacional e cimentar a coesão social, factores de unidade dos povos e do enriquecimento das nações.

NJ - Para isso se fez a independência, não foi?

IS - Desde a minha juventude, sempre sonhei com uma Angola independente, o que, para mim, significava desenvolvimento, progresso, liberdade - no seu real e vasto sentido - e bem-estar...

NJ - O ideal de tantos...

IS - Quando via filmes ou documentários sobre os actos heróicos de personalidades europeias e americanas que concretizaram a independência e o desenvolvimento dos seus países e do mundo que temos, sempre pensei que também poderíamos alcançar a nossa "independência", garantindo ao nosso povo, nós mesmos, escolas, hospitais, habitação com "luz eléctrica", água canalizada, transporte e outras coisas que via nos filmes e lia sobre o mundo já desenvolvido. Achava que nós próprios também conseguiríamos fazer o mesmo, desde que nos livrássemos dos estrangeiros opressores.

NJ - Essa expectativa não se concretizou?

IS - Quando olho para o nosso país hoje e para grande parte dos países africanos, ainda me confronto com situações que, na minha maneira de ver, só persistem por causa do nosso egoísmo, do nosso egocentrismo e da nossa miopia... deliberada!

NJ - Está a dizer que...

IS - Vejo que a nossa Angola, que com tantos recursos naturais e humanos, com tantos bilhões de dólares resultantes da exploração dos referidos recursos naturais durante quase uma década, ainda tem de contar com a caridade dos seus cidadãos e da comunidade Internacional para dar de comer aos seus concidadãos ou para poder fazer face a uma pandemia como a da Covid-19, 45 anos depois da sua independência!...

NJ - Por isso fala de um recomeço?

IS - Quando vejo tudo isso, ou seja, quando vejo o nosso país e a nossa África andar, por tudo e por nada, de mão estendida a pedir ajuda aos mesmos de quem nos quisemos libertar, a minha frustração é profunda!... Acho que o sonho da independência efectiva falhou e que, por isso, precisamos de perspectivar um novo começo. Temos de virar a página e com as lições do passado, começar um novo rumo para construirmos a Nação.

NJ - É diferente ver Angola enquanto líder do maior partido na oposição e agora, ou sente os problemas da mesma forma?

IS - Vejo Angola da mesma maneira e sinto os seus problemas com a mesma intensidade, agora talvez numa perspectiva mais nacional e mais inclusiva. Sinto-me num outro patamar, acima das disputas e limitações político-partidárias.

NJ - Mas a luta é a mesma ou...

IS - A responsabilidade natural que temos é de alicerçar a construção da Nação e realizar os angolanos. Nós lutamos por Angola e pelos cidadãos angolanos todos. Não lutamos por uma independência qualquer, mas pela INDEPENDÊNCIA TOTAL DE ANGOLA. (as maiúsculas são opção do entrevistado) Independência total significa INDEPENDÊNCIA para todos os filhos desta terra, não apenas para alguns. Significa ter os cuidados primários de saúde para os filhos da terra garantidos pelo Estado, sem pagar. Significa, por exemplo, que todas as crianças devem ter assegurado pelo Estado o acesso ao ensino obrigatório, sem pagar. Se o Estado não tem escolas suficientes, pode contratar os colégios privados, mas os angolanos não deviam pagar nada para as suas crianças estudarem pelo menos durante a instrução primária e secundária. É o que diz a Constituição da independência, a nossa Constituição.

Independência total significa também ter os cidadãos a resolverem eles mesmos os seus próprios problemas locais, através de órgãos eleitos pelas comunidades, com autonomia do poder central, colaborando com o Estado na implementação de programas e projectos para a saída da crise e para o desenvolvimento sustentável e harmonioso de todos os municípios que constituem o país. Portanto, não há independência total efectiva sem as autarquias locais em pleno funcionamento.

NJ - Mais uma frente na qual está empenhado, a das autarquias?

IS - Sinto ser necessário continuarmos a trabalhar na construção da democracia angolana. Temos de conferir sentido prático à democracia, para que o povo a relacione com os seus benefícios práticos e materiais. Temos de encontrar mecanismos práticos e eficazes, para que os mais desfavorecidos, os menos equipados, que constituem a grande maioria dos cidadãos, sintam que o Estado independente de Angola é a sua árvore protectora, que os ajuda a combater a fome, o analfabetismo, o paludismo e a pobreza. De igual modo, os mais afortunados devem poder ver no Estado um parceiro fiel ao seu serviço.

NJ - E o que demonstra a realidade verificável hoje?

IS - É revelador o facto de, 45 anos depois da independência e 18 anos depois de conquistada a paz, ter ficado claro que os que eventualmente traíram o ideal da independência também defraudaram a História, assaltaram as finanças públicas, subverteram a democracia, institucionalizaram a corrupção e capturaram o Estado da Angola independente para fins privados.

NJ - Há sempre lições a retirar e conclusões a...

IS - Este fenómeno revela que um antigo combatente pela liberdade pode deixar de ser um patriota para se tornar alguém capaz de subjugar a Pátria, hipotecar o país e roubar o futuro da Nação. É doloroso constatar isso!

NJ - Qual é a lição mais importante a tirar daí?

IS - A lição que tiramos é que temos de estar todos vigilantes, fazendo regularmente uma auto-avaliação do nosso desempenho pessoal como políticos e dirigentes. Temos todos, e cada um, de trabalhar para reverter este quadro desolador e resgatar a cidadania para se devolver o futuro às crianças. Cada um na posição em que se encontra.

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