Segunda, 19 de Agosto de 2024
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Segunda, 19 Agosto 2024 10:47

Os desafios da nova Divisão Político-Administrativa do país

Apesar da Divisão Político-Administrativa (DPA) ter sido aprovada em nome de uma aproximação dos serviços públicos aos cidadãos, a imposição democrática da vontade da maioria parlamentar pode ser também o aprofundamento de um distanciamento entre o partido no poder e os cidadãos.

Não há memória de um tema que nos últimos anos tenha apaixonado e dividido tanto a opinião pública, principalmente na divisão da província de Luanda.

Se já se levantavam dúvidas quanto ao considerável aumento da despesa pública decorrente da criação de três novas províncias e 162 novos municípios, a declaração da ministra das Finanças sobre a possibilidade de atrasos no pagamento dos salários da Função Pública funcionou como amigo contra a DPA. Perguntam-se os críticos sobre a razão para avançar com a DPA, se o Governo nem sequer consegue pagar os salários dos funcionários públicos a tempo e horas.

A insatisfação popular funciona em regime de acumulação gradual e a DPA "encheu o copo” de boa parte da sociedade. Qualquer nova gota de insatisfação, seja um novo atraso salarial ou um escândalo público, poderá fazer transbordar o copo, se o partido no poder não se encarregar de usar a táctica de "give and take”, ou seja, dar à sociedade algo em troca na mesma proporção do desagrado que provocou.

Ao definir que "A República de Angola se organiza territorialmente, para fins político-administrativos, em Províncias e estas em Municípios…”, a nossa Constituição valida o argumento de que a DPA está unicamente relacionada com a organização do território. A ser assim, o Governo e a maioria terão de esclarecer sobre que modelo de gestão/governação será dominante nos 326 municípios: o actual, centralizado, ou o outro, desconcentrado ou mesmo descentralizado.

O MPLA não parece compreender que o sistema actual, baseado em nomeações por conveniência política e na promiscuidade entre funções governativas e partidárias, está em completo desuso. Os cidadãos querem autarquias locais e, enquanto não ocorrem, pretendem que as nomeações se façam por mérito profissional e sem dependência de cores partidárias. Para que a implementação da DPA "não se vire contra o próprio feiticeiro”, o MPLA teria de protagonizar uma profunda alteração no sistema de governação do país, usando a DPA para introduzir critérios de mérito (concurso público para nomeação dos administradores municipais) ou, como quase todos pretendem, para implementar as autarquias locais. De acordo com a CRA, "As Autarquias Locais organizam-se nos municípios. Tendo em conta as especificidades culturais, históricas e o grau de desenvolvimento, podem ser constituídas autarquias de nível supra-municipal”, o que abre a possibilidade de adaptação de acordo com o estágio de desenvolvimento dos municípios actuais e dos novos em autarquias supra-municipais.

Se realmente o MPLA tiver vontade política de aproximar os serviços públicos aos cidadãos, então essa intenção, com a qual quase todos estão de acordo, necessita de ser ajustada a um novo sistema de gestão, para que se produzam resultados diferentes do que o actual modelo de gestão dos municípios.

Outra "saia justa” da DPA em que o Governo se meteu, é a falta de quadros. Estando em curso um processo de transferência de competências das estruturas centrais para os municípios, o perfil do funcionário da administração local requer um nível de conhecimento e qualidade de atendimento que não existe actualmente nos governos provinciais e muito menos nas comunas que passarão a ser municípios. Envolvido na discussão sobre a DPA, o Governo esqueceu-se de apresentar um plano de gestão da mudança, sobretudo a nível dos recursos humanos. Para além das necessidades de formação dos actuais 164 municípios, a Divisão Político-Administrativa dita uma nova demanda formativa de novos 162 administradores, 324 administradores adjuntos e centenas de funcionários públicos. Levanta-se, obviamente, o problema da qualificação e da preparação dos futuros técnicos das novas administrações para que possam assumir a sua nova condição de gestores orçamentais, mas também responsáveis pela administração de vários dossiers resultantes da transferência de competências. Aqui também os sorrisos de vitória pela aprovação da DPA podem rapidamente ser amargos, se porventura as novas entidades não conseguirem oferecer uma qualidade de serviços a que, apesar da distância, os cidadãos já tinham acesso. O Governo destruiu o anterior sistema de formação da administração local, não só extinguindo os Institutos de Formação Local (IFAL) e de Finanças Públicas (INFORPIP), como também permitiu a evasão dos funcionários anteriormente formados para áreas mais atractivas em salários e condições laborais.

Um terceiro presente envenenado pode ser a questão eleitoral. Com 21 províncias, o número de deputados a ser eleitos em 2027 pelo círculo provincial passará de 90 para 105. O número total de deputados também subirá para 235. Há necessidade de criação de condições para ajustamento do registo eleitoral dos cidadãos de acordo com a DPA e tendo em vista a possibilidade das autarquias. A Comissão Nacional Eleitoral (CNE) terá de ter instaladas as comissões eleitorais dos novos municípios, uma vez que a Lei Orgânica das Eleições Autárquicas exige que os cidadãos com capacidade eleitoral activa possuam um certificado de residência e, por outro lado, ninguém poderá estar registado em mais do que uma autarquia. Também nas questões eleitorais, o Governo não tem margem de manobra e terá de imediato de criar as condições administrativas e logísticas para a emissão dos certificados de residência dos cidadãos dos novos municípios.

Por Ismael Mateus/Jornalista

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