Mihaela Webba*/ NJ
Violam-no ostensivamente com o mesmo senso de impunidade e de insensibilidade com que o Presidente da República viola a Constituição. Revela também que tais deputados não entenderam plenamente o alcance político da iniciativa e seu impacto no juramento solene que prestaram quando foram proclamados Deputados do Povo e não deputados do MPLA ou deputados da UNITA.
Em harmonia com a doutrina, o legislador constituinte angolano consagrou nos números 4 e 5 do artigo 129.º da CRA a distinção entre "processos de responsabilização criminal" e "processos de destituição". O primeiro tipo, apesar de conter elementos de crimes tipificados no Código Penal, não deixa de constituir um processo político que, tal como o segundo, visa responsabilizar politicamente o Titular do Poder Executivo por crimes de alta traição ao juramento que prestou e de subversão ao sistema de Governo constitucional. O juízo valorativo dos factos é sempre político.
Os proponentes, sendo 90 deputados, excedem em muito o número mínimo de 73, equivalente a ?, exigido pela Constituição. Logo, têm legitimidade para iniciar o processo.
A proposta de Iniciativa acusa o Senhor Presidente da República de subverter a Constituição e violar o juramento que prestou quando tomou posse. Os pretensos crimes incluem a captura do Estado por uma oligarquia que o Presidente dirige, a consagração e consolidação de um Partido Estado como autoridade suprema da República, a contratação fictícia ou sobrefaturada de serviços públicos, a utilização de linhas de crédito intergovernamentais para o pagamento fraudulento de serviços, a concessão e subscrição de garantias soberanas do Estado para assegurar ilícitos comerciais privados ou negócios consigo mesmo, a interferência abusiva do Presidente da República no regular funcionamento dos órgãos de soberania de fiscalização, em particular da Assembleia Nacional, do Tribunal de Contas e dos Tribunais Superiores da República. Tudo isto contribui para a pobreza e a exclusão social das maiorias, enquanto grupos de oligarcas se banqueteiam à custa do sofrimento do soberano povo de Angola.
Este é o cerne do documento cuja apreciação foi sabotada pela maioria parlamentar no passado sábado. A maioria dirigida pelo acusado não quer que os angolanos discutam a essência do documento. Muitos deputados revelaram pelo seu comportamento que nem sequer o leram. Os cidadãos não devem cair na mesma armadilha, distraindo-se com discussões estéreis, de natureza jurídica ou procedimental. O foco do debate no espaço público deve ser a questão política subjacente, que é a subversão do sistema de Governo.
Na sexta-feira, 13 de Outubro, a senhora presidente da Assembleia Nacional convocou para sábado, dia 14, uma reunião plenária para apreciar uma "proposta de criação de uma comissão eventual sobre o processo de acusação e destituição do Presidente da República, subscrito por 90 deputados do Grupo Parlamentar da UNITA, nos termos do n.º 3 do artigo 284.º do Regimento da Assembleia Nacional". Era o ponto único da agenda. Preparou a logística (urnas e cabines de votação) para proporcionar a votação secreta. No sábado de manhã, segundo a imprensa, foi chamada à Cidade Alta, "para receber ordens superiores".
Quando regressou, tudo mudou. Consequentemente, a reunião foi um exercício de ilegalidades, por várias razões: (1) não houve nenhuma proposta de criação da comissão eventual, referida na Convocatória; (2) não se debruçou sobre o objecto da reunião expresso na convocatória; (3) foi realizada à porta fechada, numa sala não habitual, fora do escrutínio público, quando deveria ter sido realizada à vista de todos, porque, nos termos do Regimento, as reuniões plenárias da Assembleia Nacional são públicas (art. 179.º); (4) A reunião deliberou, alegadamente, sem a apresentação e discussão prévia de um documento de base típico; (5) a reunião realizou uma votação aberta sobre um processo que o Regimento e a doutrina mandam deliberar por votação secreta (art. 159.º, (b)).
De referir que nos termos da Constituição da República e do Regimento da Assembleia Nacional, a Proposta de Iniciativa de Acusação e Destituição devia ser distribuída aos Grupos Parlamentares, para conhecimento dos deputados, e às Comissões de Trabalho Especializadas em razão da matéria, para, em consequência, ser elaborado um relatório-parecer e um projecto de resolução de criação da Comissão Eventual para tratamento do Processo de Destituição, que seria discutido e votado em plenário e cuja composição devia respeitar o princípio da representação proporcional, nos termos do Regimento da Assembleia Nacional (nos termos da alínea f) do n.º 2 do artigo 166º da Constituição, e dos artigos 80.º, 81.º, 206.º, 207.º, 213.º e 284.º do Regimento).
Observados os procedimentos acima referidos, seguir-se-ia a discussão e votação secreta do referido Projecto de Resolução, que criaria a Comissão Eventual, nos termos da alínea b) do artigo 159º do Regimento da Assembleia Nacional. Estes procedimentos não foram observados, pois o Regimento estabelece que, recebida a Proposta de Iniciativa do Processo de Acusação e Destituição do Presidente da República, o Plenário da Assembleia Nacional se reúne de urgência e cria, por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções, uma Comissão Eventual, a fim de elaborar o relatório-parecer sobre a matéria, no prazo que lhe for fixado.
A presidente da Assembleia Nacional comunicou que a votação seria por braço levantado, o que viola a alínea b) do artigo 159.º, que impõe a votação secreta para a acusação do Presidente da República, bem como dos artigos 284.º e 285.º do Regimento da Assembleia Nacional. A lei impõe votação secreta tanto na criação da Comissão Eventual quanto para a aprovação da Resolução sobre o Relatório-Parecer nos termos dos números 3 e 6 do Artigo 284.º do Regimento da Assembleia Nacional.
A referida Sessão Plenária não teve transmissão em directo da TPA e RNA, em clara violação do direito do cidadão de ser informado, de informar-se e de informar (nos termos do artigo 40.º da Constituição da República). O presidente do GPU solicitou um esclarecimento, e a presidente da Assembleia Nacional informou que não havia condições técnicas para a transmissão em directo a partir da Sala Multiusos, quando ali mesmo, na sala adjacente à Sala Multiusos da Assembleia Nacional, estavam jornalistas a fazer entrevistas exclusivas e em directo aos Deputados que por ali passavam.
De facto, a violação das disposições legais sobre convocação de reuniões de órgãos colegiais gera a ilegalidade das deliberações nelas tomadas. Os órgãos colegiais não deliberam no vazio, deliberam sempre sobre propostas ou projetos que lhes são apresentados, de acordo com a convocatória da reunião e sua ordem do dia. Não tendo havido documento prévio distribuído para discussão, não tendo a reunião deliberado sobre qualquer documento nem sobre o objecto da convocatória da reunião, a deliberação tomada é NULA. Foi feita uma votação sobre um NÃO ASSUNTO, o que a torna ilegal, fraudulenta e inválida, sem qualquer valor jurídico vinculativo.
Uma decisão não é válida só porque é tomada por uma maioria. Tem de ter respaldo legal. As decisões da maioria só vinculam o órgão se forem válidas, tomadas no respeito pela legalidade. A decisão ILEGAL de uma maioria que desrespeita a Constituição e a lei, NÃO VALE. Não se transforma automaticamente em decisão da Assembleia Nacional.
No sábado ficou evidente a todos que viram os vídeos da sessão, que a maioria parlamentar de cento e tal, está no Parlamento para defender os interesses da oligarquia e não os interesses da maioria dos 30 milhões de angolanos, nem a Constituição que juraram defender. O comportamento do partido-Estado no sábado constitui mais uma prova de que o seu presidente, que é ainda o Presidente da República em funções, dirige um sistema que subverte a Constituição e a legalidade a olho nu só para se manter no controlo do Estado que capturou. Um sistema que interfere ilegalmente no regular funcionamento do Parlamento e já perdeu a legitimidade política e a autoridade moral para governar Angola. Condenar a ditadura e defender o Estado de Direito, não é, nunca foi e nunca será perda de tempo. Leve o tempo que levar, Angola tem de ser uma República, e não um Partido Estado.
A Constituição não limita o número de iniciativas que podem ser protocoladas num determinado ano para a destituição presidencial. O Parlamento pode utilizar o instituto da destituição tantas vezes quantas forem necessárias para se corrigir a violação à CRA e parar a subversão. Enquanto o Estado Democrático de Direito estiver ameaçado pela efectiva existência de um Partido-Estado, os deputados do povo podem recorrer ao instituto da destituição para a defesa da Constituição e da legalidade. O crime não pode prevalecer nem compensar. O poder ancorado na subversão, na corrupção, no suborno, na manipulação e no medo, tem de ter os dias contados. Concluindo, o Regimento da Assembleia Nacional foi violado.
*Jurista e deputada da UNITA