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Domingo, 03 Novembro 2019 14:14

Roteiro (despretensioso) para um ministro da comunicação social

A exoneração de João Melo do cargo de ministro da Comunicação Social é provavelmente a maior baixa na equipa do Presidente João Lourenço desde que assumiu as rédeas do poder.

João Melo esteve na base da estratégia de comunicação do novo poder angolano e era o rosto da nova moralidade. Depois de ter controlado na rectaguarda a campanha eleitoral do candidato do MPLA, marginalizando camaradas, tomou conta da apetecível pasta da comunicação do Estado.

Diferente de outras baixas nas remodelações que o Presidente tem feito na máquina governativa, João Melo é um dirigente bem formado, competente, preparado para o grande desafio no Governo e não se ensaiou muito para começar a aplicar as medidas que já trazia no portfólio.

Comparável ao peso simbólico de João Melo só o Ministro de Estado para a Coordenação Económica, Manuel Júnior, responsável pelas políticas económicas da última década.

RAZÕES DA EXONERAÇÃO

No curto mandato de JLO, alguns governantes foram afastados por necessidade de ajustamento da estrutura, ligações claras a circuitos de corrupção, outras por inadaptação à função, um porque faltou à tomada de posse. Nenhuma destas razões ditaram a saída de João Melo.

Desconhecendo eu os verdadeiros motivos que terão levado o Presidente a demitir João Melo do cargo, limito-me a expor, despretensiosamente, aquilo que é a minha experiência da leitura dos factos e acontecimentos que tive a oportunidade de observar.

Duas razões têm sido apontadas para a exoneração. A primeira, avançada pelo site pró-apartheid “Club K”, por alegadamente proteger “marimbondos” (incluindo eu, veja-se!), a segunda, mais plausível, por responsabilidades na inserção de dados falsos no discurso de João Lourenço sobre o estado da Nação que prejudicaram a imagem do Presidente.

No meu artigo “Para que serve o ‘contraditório’ no jornalismo?”, publicado nesta página do Facebook a 28/03/19, escrevi que “o contraditório que se pretende na imprensa não é mais do que uma maquinação contra o jornalismo, a sua autonomia e a liberdade de imprensa. O que se quer é colocar os jornalistas (e também os tribunais!) no centro da refrega política e responsabilizá-los pelas consequências da crise económica e social – que foi provocada por más políticas, não por jornalistas”.

Se é verdade que o ministro foi exonerado por manipulação usando a figura do Presidente, o tempo veio dar-me razão e toda aquela conversa do “contraditório”, da “abertura” e da “liberdade de imprensa” não passava de pura estratégia política e de COMUNICRACIA, nada tendo a ver com o jornalismo.

Seja qual tenha sido a razão por que foi exonerado, considero que João Melo teve tudo para fazer um bom lugar. Terá sido traído, talvez, pelo radicalismo, a fúria e a impaciência de que por vezes dá provas, que o levaram a falhar na abordagem que fez do sistema de comunicação social angolano, exagerando na dose para a idiossincrasia nacional.

HOMEM DA POLÍTICA

Figura incontornável das mudanças políticas dos 44 anos de independência, e não apenas no sector da imprensa e das letras, João passou por tudo quando é meio de comunicação: RNA, ANGOP, EGA/”Jornal de Angola”, “Correio da Semana”, agência “Movimento”, revista pluricontinental “Africa XXI”. Chefiou a Delegação da Angop no Brasil, ao mesmo tempo que fazia o mestrado em comunicação política. Foi secretário-geral da UEA. Foi deputado da Assembleia Nacional pelo MPLA durante longos anos. É um homem talhado para a política.

João Melo deve ser das poucas pessoas que dominam não só os meandros da política e da imprensa em Angola como também das relações entre Angola e Brasil. Ele percebe o papel decisivo do relacionamento externo. Os tiques do sotaque brasileiro que apresenta vêm-lhe do prolongado contacto que teve com escola brasileira de comunicação. Mas como jornalista e escritor também se movimenta à vontade nos meios portugueses. É aliás em Portugal que o 25 de Abril de 1974 o encontra, frequentando o Curso Direito e convivendo com círculos políticos de esquerda que marcaram, penso eu, o lado radical do seu perfil.

A presença frequente em Houston é mais recente.

Com todo o seu percurso político e profissional, em minha opinião João Melo foi o último grande quadro do MPLA preparado para assumir e exercer com marca identitária, valor e brilhantismo o posto de Ministro da Comunicação Social, podendo deixar com isso um legado. Antes dele, os que ocuparam o posto, salvo excepções, fizeram pouco pela imprensa, a não ser gerir a conjuntura. Depois dele, tenho dúvidas que venha mais alguém capaz de dar ao lugar a dimensão que merece num país como o nosso.

TRAPAÇA E DESTRUIÇÃO

Um traço que notei em Agostinho Neto e José Eduardo dos Santos, talvez comum aos grandes líderes, é que apenas avançavam para determinada fase – mesmo que tivessem de esperar um pouco mais – quando soubessem que todos seus companheiros estavam conscientes do passo a dar e sabiam que o povo os iria acompanhar. É o inverso de seguir modas, ser sectário e alinhar em aventuras.

Outro traço importante da política é que a palavra de um dirigente nacional deve ser honrada. Não pode o cidadão, gestor, parceiro social ou pessoa do círculo de relações ser enganado com trapaças pelos servidores do Estado apenas porque querem parecer bons manobradores políticos e “changemakers”. E quando se falha, deve-se fazer o “mea culpa”.

Ora, em Outubro de 2017, após a tomada de posse, a ideia transmitida pelo ministro João Melo foi de que estava a fazer um diagnóstico ao sector, coisa que leva tempo. Mas, contraditoriamente, pressionava os quadros de direcção para que tivessem pressa, dizendo que “não há uma segunda oportunidade para criar uma primeira boa impressão”. Como se pede pressa aos colaboradores antes de concluído o diagnóstico? A resposta veio em Novembro: o diagnóstico já estava na cabeça do ministro, pré-concebido, e foram propostas medidas duras ao PR.

Essas medidas duras passaram pela decapitação das direcções dos OCS, o desmantelamento de estruturas televisivas importantes (TPA2, TPA Internacional) e da comunicação institucional do Estado (GRECIMA), que custaram muito a erguer, a substituição das direcções por gente de idoneidade duvidosa, algumas vindas da concorrência directa, e a passagem aos magotes, nalguns casos sem aviso, de quadros seniores para o desemprego e a reforma compulsiva. Um “tsunami” não faria mais estrago, quando se sabe qual a importância da memória do passado no jornalismo e que “o vinho quanto mais velho...”

Ao mesmo tempo que destruía estruturas de comunicação extremamente avançadas, e invejadas em alguns países, e violava direitos constitucionais adquiridos, sem atender às consequências para o futuro e a vida das pessoas, o ministro garantia que tudo isso era uma orientação do Presidente João Lourenço. Uma novidade da gestão do ministro foi a organização de "despachos" públicos colectivos, com cobertura mediática, com a presença de ministros e administrações das empresas de CS, numa linha a todos os títulos populista e demagógica.

“ASSOCIAÇÃO DE MALFEITORES”

Em pouco tempo, tornou-se evidente que o ministro e as pessoas que o passaram a rodear e aconselhar, incluindo especialistas seleccionados a dedo em determinadas matérias, formavam uma espécie de “associação de malfeitores” destinada a arrasar com figuras públicas.

Em conjunto, esse grupo revelou ter uma agenda escondida destinada a lançar na lama o nome de destacadas figuras angolanas, acusando-as de “roubo”, “corrupção”, “má gestão”, “deslealdade”, “insubordinação”, como se de repente a função da imprensa fosse a de uma procuradoria da República. Ao mesmo tempo beneficiava pessoas com processos comprovados na justiça angolana e estrangeira e com grandes responsabilidades na crise que atravessou a Sonangol.

O caso mais patente dessa comunhão sectária contra a diversidade e o pluralismo na imprensa foi o de Victor Silva, o renomeado director do “Jornal de Angola”, cargo que já tinha ocupado nos anos 90 e do qual foi afastado precisamente quando os actuais dirigentes dominavam a informação do MPLA.

Depois do afastamento nos anos 90, o ambicioso Victor Silva, vindo do poderoso e influente “lobby” da imprensa desportiva, viveiro de manipulação nos "media" hodiernos, virou-se para a imprensa privada. Foi correspondente da “Voz da America” e ligou-se à ESCOM, extensão do Grupo BES em Angola, vindo a liderar o semanário “Novo Jornal”, o projecto editorial angolano de Ricardo Salgado destinado a acabar com o “Jornal de Angola” e que serviu de central de informação durante a falhada tentativa da “primavera árabe angolana”, desencadeada em Março de 2011.

Em 2010, já como director do “Novo Jornal”, Victor Silva, violando todos os cânones da transparência e gestão corporativa, fez corredores e conseguiu mexer influências de amigos e familiares para ser nomeado Administrador não Executivo das Edições Novembro, a empresa do jornal estatal e sua maior concorrente, que rivalizava com o nascente grupo New Media, de Álvaro Sobrinho, Hélder Bataglia, Ricardo Salgado e outros do império BES.

Certamente conhecedor deste currículo do homem e de outros extremistas que reabilitou, e permitindo que o nível de maturidade atingido pela imprensa pública na anterior vigência fosse confundido com “censura”, o ministro propôs ao Presidente a nomeação de Victor Silva para o estratégico lugar de PCA das Edições Novembro e director do “Jornal de Angola”.

Não há quem não tenha defeitos, mas não lembra ao diabo pôr um delinquente a liderar o combate à corrupção. Que credibilidade tem um director do “Jornal de Angola” que defende o compadrio e acha que a linha editorial do jornal deve ser traçada pelo Ministério da Comunicação Social? Que faz na RNA uma equipa de conteúdos que julga que a estação de rádio oficial é um grupo de choque predestinado a dar resposta nos momentos de “confusão”?

MODELO “SUI GENERIS”

Depois de afastar os quadros seniores do sector, o ministro começou a aplicar o mais “sui generis” modelo de liberdade de imprensa já visto. Passou ele próprio a fazer as notícias para os OCS, editar jornais, escrever editoriais, conceber e controlar a transmissão de programas, emanar directrizes, proferir palestras e dar conferências, dar aulas aos polícias. No final, elogiava os OCS por aplicarem bem o “novo paradigma” de comunicação orientado pelo PR.

Uma das pessoas afastadas nessa altura foi o autor destas linhas. Faz agora precisamente dois anos que fui exonerado do cargo de PCA das Edições Novembro, para o qual tinha um mandato até 2021 atribuído por um Presidente da República, com despacho publicado no “Diário da República”. No momento de me comunicar a decisão de exoneração, o ministro fez-me o convite honroso para ser colocado como Adido de Imprensa numa embaixada, que aceitei. Passados dois longos anos, a palavra dada pelo ministro, presumo que também por orientação do PR, está por ser cumprida. Outros exonerados na mesma altura já ocupam há muito os seus lugares. Nesse interregno, fui praticamente banido da imprensa, eu que nunca beneficiei de um único cêntimo da Sonangol.

A única coisa que o governante não conseguiu destruir, depois de travada no ovo a primeira tentativa, foi a rede de serviços de informação – e suas extensões – que se encontra infiltrada há anos nos OCS. Exemplo acabado dessa rede é o “Club K”, site que não disfarça o acesso privilegiado que tem a fontes do próprio gabinete presidencial. O ministro permitiu que essa rede se reforçasse de vez no MCS e continuasse a trabalhar contra os “pasquins”, as redes sociais e nas campanhas caluniosas. Não tenho dúvidas que o próprio ministro acabou por ser vítima dela, que o marcou como um alvo a abater.

CONTEÚDOS E INFRA-ESTRUTURA

No Governo, quem se preocupa tanto com os conteúdos editoriais da imprensa deixa de ter tempo para governar. No caso do Ministério da Comunicação Social, o titular da pasta deve, em primeiro lugar, concentrar-se no desenvolvimento da infra-estrutura de comunicação, melhorar as condições de trabalho dos profissionais do sector e aperfeiçoar a formação sobre o jornalismo.

O controlo dos conteúdos está proibido pela Constituição e a lei. Ao MCS apenas resta a tarefa de promover o desenvolvimento da imprensa, cujos equipamentos estão a tornar-se mais baratos e precisam de ser constantemente actualizados por causa do surgimento de novas tecnologias, de modo a dotar os órgãos de comunicação, públicos ou privados, da qualidade e amplitude que Angola merece.

Outra função do MCS é a comunicação institucional do Estado, mas esta, como vimos, ficou para trás no rasto de destruição deixado pelo governante. Como é um instrumento indispensável de governação e movimenta muito dinheiro, em determinados momentos vê-se a comunicação institucional cair no centro de uma disputa entre lobistas, entidades estatais e consultores estrangeiros. Diz-se agora que chamaram novamente os brasileiros da Propeg. Sobre este assunto, aconselho a leitura do que já escrevi nos anteriores artigos “Escritos na Nuvem” sobre as estratégias de comunicação, os consultores externos e quem exportou para Angola a grande tecnologia da corrupção.

Nos tempos modernos, o que o nosso País precisa da imprensa pública é que ajude a perceber o rumo dos acontecimentos, mobilizar colectivamente o povo para o propósito comum de trabalhar, mostrar onde está emprego e onde pode encontrar oportunidades de negócios e rendimentos, como combater a doença e formar os filhos – e menos de grupos de choque e associações de malfeitores.

TRANSIÇÃO E MUDANÇA

Um aspecto importante da realidade nacional que a nossa classe política parece hoje esquecer é que a longa governação de José Eduardo Eduardo dos Santos decorreu em condições ANORMAIS e por essa razão houve necessidade de uma fase de TRANSIÇÃO do poder.

TRANSIÇÃO significa “passagem de um lugar, assunto, tom ou estado para outro”, diz o dicionário. Hoje o País passou para outro estado, para um novo ciclo de normalidade democrática. Esta nova etapa da vida da Nação serve para “corrigir o que está mal e melhorar o que está bem”, não para revanchismos e ajustes de contas com o passado.

É vidente que muita coisa errada e grave foi feita no período de transição (a revisão da LGT, por exemplo, foi um autêntico ataque aos direitos da classe trabalhadora), mas se o Estado vai punir todos aqueles que apoiaram a transição de forma leal e respeito e destruir a estrutura económica deixada pelo anterior Presidente, como está a fazer, em vez de a consolidar e reformar, dentro de algum tempo já não haverá nada para corrigir e teremos é de salvar o País.

NOVO MINISTRO

Com a saída de João Melo e a nomeação de Nuno Carnaval, temos agora um novo ministro. Se Nuno Carnaval conseguir desenvolver a infra-estrutura e ajudar a melhorar as condições de trabalho dos profissionais não precisará de se preocupar com os conteúdos. Numa das suas primeiras intervenções públicas, notei que aposta na modernização dos órgãos públicos. Isso é um bom começo, mas insuficiente.

Para se ocupar dos conteúdos, temos muito boa gente, a começar pelo ex-ministro que, na hora da partida, apesar de todas as grandes qualidades que reúne para continuar a ser um grande político angolano, prometeu-nos no Twitter ser jornalista, escritor e professor, mostrando, finalmente, alguma humildade...

Por José Ribeiro*

(*) Jornalista, Sociólogo e Gestor de Media

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