Entre outros fatores, Carlinhos Zassala associa o fenómeno da feitiçaria à perda de valores morais no país, observando que na propalada luta de recuperação dos valores não se verificam ações concretas para se inverter a situação.
Em declarações à Lusa, o psicólogo angolano recordou que a família é a primeira instância de socialização, seguida da escola e igreja, mas, lamentou, depois da independência e com a abertura de muitas igrejas o problema da feitiçaria foi ganhando espaço.
“Com a independência, e principalmente quando permitiram a abertura de muitas seitas religiosas e igrejas no país, esse problema está a ser incentivado, lamentavelmente, no seio das ditas seitas ou igrejas”, frisou.
“Então, é ali onde encontramos pessoas chamadas de pastores, mas que acusam os familiares de ser feiticeiros, para poderem justamente dividir as famílias”, salientou.
Segundo o também docente da Universidade Agostinho Neto, a maior de Angola, o “desrespeito pelo direito costumeiro”, que funcionaria interligado ao direito convencional, “também concorre para que o fenómeno da feitiçaria se perpetue” no país.
“Mas para nós, o direito costumeiro não faz parte do ordenamento jurídico do nosso país, é assim que todo o comportamento encontra impunidade e não se encontram medidas para poder combater esse fenómeno, a tendência é de perpetuar”, realçou.
Hoje tem dia, “temos muitos casos de suicídio, muitos casos de matanças por motivo de feitiçaria, então quando justamente a igreja, que deveria ser a reserva moral da sociedade e a consciência crítica da humanidade, é que incentiva isto, o que é que se espera?”, questionou Zassala.
Nos últimos tempos têm sido notícia em Angola um elevado número de mortes por crença na feitiçaria, com relatos chocantes de pessoas torturadas até à morte, espancadas e queimadas, com crianças e idosos a liderar a lista das vítimas do fenómeno.
Relatos do género são ouvidos quase diariamente nos relatórios apresentados pelas autoridades angolanas.
O aumento do fenómeno de acusações de feitiçaria, no entender de Carlinhos Zassala, resulta da proliferação de seitas religiosas em Angola, “onde existem mais de 80 igrejas reconhecidas e mais de 5.000 ilegais”, perante a “tolerância das autoridades”.
“O que lamentamos é que as nossas autoridades têm conhecimento disso, mas toleram (…). Então, este fenómeno está justamente a aumentar devido à perda de valores morais, sociais, destruição das culturas, destruição das famílias, a grande questão é essa”, disse.
“[A situação] é muito preocupante e urgente, por isso deixo esse recado, na qualidade de psicólogo social, porque hoje em dia já verificamos filhos que matam os pais porque são feiticeiros, incentivados por figuras que deveriam ser a reserva moral da sociedade”, frisou.
O também bastonário da Ordem dos Psicólogos de Angola defendeu igualmente a criação de uma equipa multidisciplinar, para o estudo do fenómeno da feitiçaria e o combate às suas origens, criticando a “inoperância” da comissão interministerial criada para este efeito.
“Uma vez fiquei contente ao ouvir que o Presidente [da República] havia criado uma comissão interministerial para analisar o fenómeno religioso, que iria também integrar psicólogos, sociólogos e antropólogos, só que esta comissão nunca funcionou”, notou.
Mas, atualmente, apontou: “Em muitas universidades africanas existem até estudos sobre a feitiçaria, mas no nosso país não nos preocupamos com isso, porque pensamos que Angola é um país europeu”.
“Cheguei a conhecer o professor Alexandre Dissengomoka, que estava a fazer estudos sobre a feitiçaria, desde que ele faleceu praticamente essa linha de pesquisa quase que desapareceu, então a solução é trabalhar numa equipa multidisciplinar para estudarmos o fenómeno e combatermos as fontes que incentivam esse comportamento de feitiçaria”, concluiu Carlinhos Zassala.
O número de mortes será certamente superior a uma centena, embora não tenha sido possível aceder a estatísticas nacionais sobre o tema.
Só em Luanda, uma das 18 províncias de Angola, oito pessoas foram assassinadas no ano passado devido à crença na feitiçaria, segundo o responsável do comando provincial de Luanda da Polícia Nacional, Nestor Goubel.
Crianças de tenra idade e idosos lideram a lista das vítimas dessa prática, condenada pelas autoridades e a sociedade civil, que defendem ações concretas e urgentes para a inversão do fenómeno, que concorre para a desestruturação das famílias.