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Domingo, 01 Dezembro 2013 09:35

Quando a culpa não pode morrer solteira - Paulo de Carvalho

Nos últimos tempos, vêm acontecendo vários incidentes que põem em causa o processo de democratização em curso no nosso país. Têm a ver sobretudo com a actuação de alguns órgãos de decisão política e de forças encarregues da manutenção da ordem. É preciso pôr um «basta» nisso, se não quisermos que a carruagem de comando descarrile, levando consigo as demais carruagens e tudo quanto a elas esteja atrelado.

Desde há alguns anos que venho chamando à atenção para procedimentos desadequados ao momento que se vive pelo mundo. Uma minha entrevista, publicada neste mesmo jornal no dia 15 de Dezembro de 2007, mantém-se actual transcorridos quase seis anos.

Claro que houve algumas mudanças, há hoje um número razoável de governantes com bom desempenho, mas mantêm-se desnecessariamente atitudes arrogantes e trungungueiras, para demonstrar quem tem poder.

Naquela altura, as minhas chamadas de atenção foram mal interpretadas e houve até quem tivesse dito que eu pretendia criar factos políticos. Com que intenção e em benefício de quem, nunca ninguém me disse. A verdade, porém, é que o tempo veio dar-me razão e temos cada vez maior contestação ao regime, até mesmo (ou fundamentalmente) a partir do seu interior.

A contestação não surge por acaso, surge por haver razões que a ela conduzem – razões que, não sendo ultrapassadas, estão a fazer com que a contestação cresça como bola de neve, ao ponto de se tornar insuportável daqui a pouco tempo.

São as próprias elites a manifestar-se contra muito do que se vem fazendo, contrário aos princípios defendidos pelo MPLA e que constam do seu programa maior.

Temos também cada vez mais mártires. Fala-se dos mártires que são fisicamente agredidos, dos que são privados da liberdade e dos que chegam a ser mortos sem culpa formada, apenas por terem pensamento próprio ou por não concordarem com alguma coisa (tenham ou não tenham razão).

Mas pouco se fala dos mártires que procuram fazer um trabalho digno de registo, com competência e profissionalismo e, por isso, são maltratados, espezinhados e escorraçados.

Destes últimos mártires existem em também cada vez maior número. Vou referir aqui apenas o exemplo do sector da educação, onde há mártires (uns no activo, outros já apeados por terem mostrado trabalho ou não terem alinhado com a «moda» da corrupção) que só não se rebelam descaradamente contra esta reforma educativa que está a deseducar cada vez mais os nossos filhos e a hipotecar o desenvolvimento do nosso país, para não per- derem o emprego e não se verem privados da sua liberdade.

São mesmo muitos, em número cada vez maior, que não se reveem em monodocências e em reformas «para inglês ver», que visam aumentar o número de aprovações sem importar a ausência de alicerces.

Tivemos recentemente a notícia de mais três mártires, designadamente Isaías Cassule, Alves Kamulingue e o jovem Nito Alves. Os primeiros foram detidos e presos sem culpa formada, tudo indicando que tenham sido assassinados apenas por pensarem de forma diferente.

O terceiro foi detido e preso também sem culpa formada e ao arrepio da lei, visto ser menor de idade. A razão do excesso foi também o seu pensamento. Todos eles passaram, num ápice, de cidadãos comuns e anónimos a mártires.

Na semana passada, criou-se mais um mártir, de forma escusada e parece que com o objectivo de atiçar uma fogueira cada vez mais prestes a implodir.

Quem toma decisões como essas esquece-se de várias coisas. Duas delas são fundamentais. Refiro-me, em primeiro lugar, ao facto de os angolanos (nossos irmãos mais velhos, pais, avós e bisavós) terem resistido das mais diversas formas à colonização e à actuação da polícia política que servia o sistema colonial.

Nós, angolanos, temos pois tradição de resistência, não nos esqueçamos disso. E temos tradição de pensamento próprio e de acção nacionalista e patriótica. Doa a quem doer e fique mal quem ficar, tal tradição vai mesmo manter-se, pois é ilusão pensar que a morte de uma dúzia ou uma centena de pessoas poderá mudar isso.

O segundo aspecto a considerar tem a ver com o sistema de educação, que nos últimos dez anos quase aboliu os elementos patrióticos que anteriormente havia (dando a impressão de o Ministério da Educação estar claramente ao serviço de interesses anti-patrióticos).

Várias pessoas nos têm chamado à atenção para isso, mas quem de direito nada faz para acabar com a destruição do pouco que resta de “nós mesmos”. Quem está a formar os jovens com este tipo de sentimento anti-patriótico e com a convicção de que as suas ideias têm de prevalecer a todo o custo, independentemente de estarem bem ou mal concebidas?

Somos nós, adultos. Então, temos de ser nós, adultos, a arcar com as consequências disso. E já estamos a arcar, podemos crer!

Um último aspecto a referir tem a ver com a recente exoneração do Chefe dos Serviços de Inteligência (conhecidos pela sigla SINSE). Houve pessoas que bateram palmas, mas eu não o fiz, obviamente.

Quanto mais não seja, porque sei que é pessoa que não se revê em maus-tratos ou em mortes. Mas compreendo que quem ocupa um posto de nomeação presidencial pode ser apeado a qualquer altura, com ou sem justificação. Não é isso que está em causa.

O que está em causa é a forma como as coisas estão a ser feitas, demonstrando-se claramente que o objectivo é manchar a imagem, é denegrir, é acusar e julgar em praça pública, como se a pessoa tivesse sido autora das atrocidades e não vítima «circunstancial» dos acontecimentos. A reflexão seguinte tem a ver com este pressuposto.

Lá por fora, quando ocorrem dissabores de monta, o responsável pela pasta ministerial (ou pelos serviços responsáveis) demite-se. Diz-se então que «a culpa não deve morrer solteira». Esta é uma das práticas no sistema democrático, que abrange os três poderes de Estado (legislativo, executivo e judicial).

Portanto, no caso em apreço e a acreditar no recente comunicado da Procuradoria- -Geral da República, seria normal lá por fora que, devido às mortes de Kamulingue e Cassule, se demitissem o Ministro responsável pela Guarda Presidencial, o Ministro do Interior, o Chefe do SINSE, o Comandante-geral da Polícia e o governador da província de Luanda – quer dizer, os responsáveis por todos os órgãos e pessoas envolvidos nos incidentes, desde a de tenção dos dois activistas até à sua morte. Cada um demite-se, é o normal em sistemas democráticos.

Por cá, quase ninguém coloca o lugar à disposição. Pelo contrário, o normal é as pessoas agarrarem-se aos cargos, como se cada um não tivesse uma profissão e como se cada um de nós tivesse nascido para ser governante.

O que sucedeu foi a demissão do Chefe do SINSE, com preparação antecipada da opinião pública, direccionando para esta entidade toda a responsabilidade pela ocorrência, quando de facto (como se sabe) será certamente das menos envolvidas nos incidentes.

Como já se disse, em democracia seria normal a exoneração (não apenas de uma pessoa, mas de todos os chefes dos envolvidos, conforme indico atrás); o que não está certo é criar-se a imagem de haver um culpado, quando, como tudo indica, os mentores da triste ocorrência até terão sido outros.

Mas, seja como for, factos são factos: criou-se entre nós um sério precedente. Com a recente exoneração do Chefe do SINSE, vai sair reforçado o sistema democrático angolano. A partir de agora, sempre que sejam agredidos manifestantes, sempre que seja detido alguém por expressar o seu pensamento e sempre que um agente da polícia se exceda, vai ser exonerado o Comandante-geral da Polícia. Sempre que haja escaramuças e maus-tratos nas cadeias, vai ser exonerado o Ministro do Interior.

Estamos todos à espera das consequências da mais recente morte do jovem Wilbert Ganga. Mesmo que a razão esteja do lado das autoridades, não se admite que alguém desarmado e que até estava devidamente identificado, tenha sido abatido à queima-roupa, apenas porque tenha decidido pôr-se em fuga.

Mais do que isso: nós, cidadãos, estamos à espera dos comunicados da Procuradoria-Geral da República em relação à morte do jovem Wilbert Ganga, aos maus-tratos em cadeias, às prisões arbitrárias (a do menor Nito Alves é uma delas) e às agressões que ocorreram no espaço dos últimos doze meses. E das consequentes medidas políticas que o Chefe do Governo vai tomar, de forma que «a culpa não morra solteira».

(*) Sociólogo

Paulo de Carvalho

Semanário Angolense

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