Entre elas, um antigo combatente de 60 anos homem que viu o nascer da independência, combateu no Cuando Cubango e acreditou na promessa de um país para todos, chora a humilhação de ser chamado “proveniente1” pelo próprio administrador municipal.
Há símbolos que ferem mais que palavras. Quando o poder público rotula um cidadão com décadas de vida numa comunidade como “proveniente”, não é apenas um erro administrativo, é um apagão da história, um golpe na dignidade e na identidade de quem ajudou a construir o país.
A requalificação da Muxima é apresentada como um projeto de fé, turismo e modernidade. Mas que fé é essa que ergue muros e destrói lares? Que modernidade é essa que começa por desalojar os pobres e termina por ignorá-los? As famílias da Quiçama não se opõem ao progresso; o que exigem é humanidade.
Ora, afinal, qual é o papel do Estado? Construir estradas, pontes e hotéis é importante. Mas nenhum projeto de desenvolvimento pode ser chamado de progresso se deixa crianças a dormir sob a chuva, vento e frio. O Estado deve ser o primeiro a dar o exemplo de respeito à dignidade humana, e não o agente do sofrimento dos mais desfarecidos.
Quando se desenha um projeto de requalificação, é imperativo que se desenhe, em paralelo, o mapa social das pessoas que ele afetará. É preciso prever condições de habitabilidade, compensações justas, acompanhamento social e psicológico, e, acima de tudo, diálogo com as comunidades. Nenhuma requalificação pode ser feita sobre o silêncio e a dor das famílias.
1 Não é nato.
Estamos no tempo chuvoso. Ver crianças dormirem sobre o barro, mães a cobri-las com panos ensopados e idosos sentados em troncos, olhando o vazio, é uma cena que devia envergonhar qualquer nação que se diz comprometida com os direitos humanos.
A Constituição de Angola é clara, o Estado existe para servir a pessoa humana, para garantir o direito à habitação, à dignidade, à proteção. Mas o que se vê nas imagens proveniente da Quiçama é o contrário, um Estado que parece ter esquecido o seu dever e um povo que continua a pagar o preço da indiferença.
A Muxima sempre foi um símbolo de fé e esperança. Milhares de peregrinos ali encontram conforto espiritual, pedindo milagres e soluções para suas angústias. Mas agora, ironicamente, é nas margens da mesma Muxima que muitos clamam por um milagre de justiça e humanidade.
O desenvolvimento não pode ser um campo de despejo. A fé não pode coexistir com a injustiça. E o progresso não pode ser medido apenas em betão e asfalto, mas em respeito, empatia e dignidade.
É tempo de o Governo descer das promessas e pisar o barro onde vivem os que foram deixados para trás. É tempo de requalificar, sim, mas também de reumanizar. Porque um país que permite que o seu povo durma debaixo da chuva em nome do progresso está, na verdade, a construir ruínas em vez de futuro.
Por Rafael Morais
     
