Comecemos pela questão social. Quase cinco em cada 10 angolanos experimentaram a pobreza extrema em 2024, concluiu o inquérito que começou a ser divulgado desde a semana passada. Atenção! É importante que se repita isso. Trata-se de pobreza extrema. Aquela que as Nações Unidas definem como a dificuldade grave de acesso a serviços e bens de suprimento de necessidades básicas.
Isto significa praticamente não ter acesso ao que comer. Que o acesso à saúde e à educação quase não existe e que a água para beber, quando há, não é tratada. Há qualquer coisa de surpreende nisso? Certamente que não. Então por quer razão fazemos questão de mais uma vez escrever sobre isso? Porque, como sentenciou o génio Milan Kundera, “a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”.
Porque, quando o Estado é transformado num delinquente impune e a barbárie vai além de todos os limites, os seus efeito perniciosos têm de ser catalogados e registados. Para que a História faça justiça e o tempo se encarregue do devido julgamento aos algozes do povo. É tão simples quanto isto. Colocar metade dos angolanos na pobreza extrema, sem guerra civil, sem desastres naturais repetidos e persistentes, não é penas de elevada insensibilidade. É a outra forma não declarada de tentativa de extermínio em massa. É o combate descarado aos pobres. Porque a fome derivada da privação severa de alimentos não é relativa. Este tipo de fome mata, assim como mata o descontrolo dos preços sem fim à vista.
Diz a Afrobarómetro que, entre 100 angolanos, apenas sete se mostraram indiferentes com a escalada generalizada dos custos dos produtos. Pelo menos 93 afirmam de forma categórica que os preços estão incomportáveis. Destes números retiram-se necessariamente outras leituras. É possível pensar, por exemplo, que, se cinco em cada 10 angolanos experimentaram a pobreza extrema, dos restantes cinco provavelmente apenas um não se sentiu aflito. Não é por mero acaso que também sete em cada 10 angolanos consideram que a situação económica do país é "muito má".
E porque tudo está interligado, a política não poderia ser menos desastrosa. Quase oito angolanos, em cada 10, não têm dúvidas de que João Lourenço é a pessoa errada no lugar certo. Trata-se da média geral da país. Em termos parciais, há resultados que roçam o escândalo. No Norte, em cada 10 angolanos, quase nove teriam preferido ver João Lourenço a fazer outra coisa qualquer. Talvez a produzir comida, a partir das suas fazendas. A tal comida que, como o próprio declarou certa vez, chega à mesa de muitos que vivem em Angola.
Os números da Afrobarómetro dizem, no entanto, que, com João Lourenço, nada é suficiente- mente grave que não possa piorar. Em Luanda, como diria o povo, a coisa está ainda mais preta. Em cada 100 moradores da província- -capital, 84 pensam que João Lourenço não sabe o que anda a fazer na Cidade Alta. É mais um provável alerta de que a forçada divisão de Luanda, com o propósito único de hipotéticos ganhos eleitorais, até pode fazer o tiro sair pela culatra. Os deputados do MPLA que têm de aprovar esta trapaça que pensem nisso mais a sério. E porque "quem pergunta não ofende", como faz questão de no-lo lembrar todas as semanas a jornalista Geralda Embaló, aí vai: por que raio um Presidente tão contestado, e que está à frente de um Governo tão desgovernado, teria o direito de julgar que pode aspirar a um terceiro mandado, violando descaradamente todas as regras? Valor Económico