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Sexta, 23 Mai 2014 08:00

O Perigo de uma única história

“Quando rejeitamos a história única, quando nos apercebemos que nunca há uma história única sobre nenhum lugar reconquistamos uma espécie de paraíso”.

Chimamanda Adichie, escritora nigeriana (http://blog.ted.com/2009/10/07/the_danger_of_a/)

É visível nos últimos tempos um esforço hercúleo e redobrado do poder instituído em Angola no sentido de impor uma visão monolítica sobre os acontecimentos que marcaram a história recente de Angola. Este exercício, pensado e intencional, está milimetricamente articulado à estratégia de comunicação do sistema que persegue o propósito de projectar uma imagem de um país pujante e em crescimento harmonioso, jogando debaixo do tapete todas as chagas e desajustes sociais que são, de facto, marca tónica e indelével da fotografia social presente de Angola. Por essa razão, o exercício para apagar artificialmente estas marcas requer, necessariamente, um esforço que sobrepasse os limites do normal e, quanto a isso, o nosso Executivo, qual D. Quixote, não tem tido mãos a medir para concretizar a sua estratégia.

O problema, contudo, situa-se nos estratagemas escolhidos para levar adiante tamanha empreitada. Seguindo à risca a linha Maquiavel de pensamento, segundo a qual “os fins justificam os meios”, o Executivo mobiliza nesse seu dantesco jogo, todos os meios ao seu alcance mesmo quando estes configuram uma escancarada violação da Lei e da Constituição da República de Angola (CRA). Estamos a falar de violações grosseiras às liberdades de imprensa e de expressão, ao direito de manifestação e reunião tão cristalinamente expresso no Art. 47o da CRA de 2010 e toda a sistemática de ultraje à lei tão patente na pragmática e na praxe do Executivo. Enfim, tendo como tela de fundo o propósito major de garantir a perpetuação do poder por uma elite poderosa que se originou do assalto escandaloso ao erário público, em detrimento do bem comum, o poder enveredou pela lógica da história única que bane o pluralismo no debate político perseguindo assim uma linha que pode ser tudo, menos democrática, como defende a Constituição.

Nos últimos dias assistiu-se a um avanço perigoso desta estratégia da história única. Com efeito, a Ministra da Cultura Dra Rosa Cruz e Silva viu-se obrigada, a contra-gosto, acredito, a assumir dois actos que se enquadram nesta lógica macabra: por um lado, tratou de anular o decreto que classificava o Elinga como património cultural favorecendo assim interesses da elite hegemônica e seu voraz apetite por especulação imobiliária e, tão grave quanto isso, proibiu a exibição de uma peça teatral  do grupo Orações  de Mansata que deveria ter lugar no Cine Nacional, sob gestão da Associação Cultural Chá de Caxinde, alegando imcompreensíveis razões técnicas e de segurança. Na verdade, a peça da autoria do dramaturgo guineense Abdulai Sila, aborda, entre outros temas sociais, a questão da corrupção, tendo como pano de fundo “o desejo de possuir o poder e o abuso do poder adquirido” e é isso, no fundo, que levou o Executivo, através da minista da Cultura, a tomar aquela atitude. Esta censura descarada, bem nos moldes anacrónicos salazaristas constitui um atentado perigoso à liberdade de expressão, pois a censura é liminarmente rejeitada pela CRA no seu Art.40o, ponto 2. Coincidência ou não, o facto é que na mesma semana um show do músico de intervenção social MCK foi anulado pelo facto do proprietário do espaço ter sido alvo de ameaças pelo (in)visível, famoso e conhecido, abusado e atrevido, senhor “Ordens Superiores”. Trata-se, portanto, de um dado a ter em devida conta, indiciador de que o regime sente-se confortável em avançar com a sua psicose autocrática.

No plano do debate político continuou a troca de galhardetes entre a UNITA e o Partido que sustenta o Executivo em torno das suas respectivas versões sobre os acontecimentos que constituiram o que se convencionou chamar de Batalha do Kuito Kuanavale. O esforço milionário por parte do Executivo em impôr de forma musculada a sua história como única, viu-se traído porque, através de um ciclo de conferências, a UNITA decidiu contrapôr com a sua versão dos factos que, como é obvio, é diametralmente oposta à versão que se pretende oficial e hegemônica.

A contra-ofensiva do Executivo não puderia ser mais disparatada nem desproporcional: ressuscitando versões dos tristemente célebres editoriais do tipo “bater no ferro quente” ou reeditando a história de apócrifos artigos de opinião, o oficioso Jornal de Angola trocou os Bundas e Paulinas Frazão de outros tempos pelo novel Alvaro Domingos que passou a se encarregar da pesada artilharia com que aquele matutino passou a mimosear quotidianamente a UNITA.

O discurso de Alvaro Domingos de tão rasteiro e intolerante não deveria merecer a mínima consideração, não fosse o facto de ser veiculado por um órgão de comunicação social público e, por conseguinte, com responsabilidades acrescidas no que tange aos direitos e garantias constitucionalmente consagradas. Ora, a Constituição de Angola no seu Art. 17o, ponto 4 é bastante clara ao afirmar que,

“Os partidos políticos têm direito a igualdade de tratamento por parte das entidades que exercem o poder público, direito a um tratamento imparcial da imprensa pública e direito de oposição democrática, nos termos da Constituição e da lei”.

Por muito que isso doa a certos sectores da nossa sociedade, mormente aqueles ligados ao Partido no poder, o facto é que a UNITA é um Partido político reconhecido  pelo Tribunal Constitucional e com assento parlamentar e é, convém lembrar, tão somente o maior partido da oposição. As conferências realizadas pela UNITA se enquadram perfeitamente no direito consagrado de oposição democrática que basicamente consiste em exprimir sempre a sua opinião e visão em relação aos diferentes assuntos de interesse nacional e não só. A atitude do JA, através do personagem Álvaro Domingos nada tem de imparcial e, pior do que isso, prega escancaradamente a intolerância ferindo de morte a letra da Constituição bem como o espírito de reconciliação nacional subjacente. Todos estes atropelos cometem-se com o único propósito de fazer vingar a história única.

Porque afinal tanto investimento na história única?

Chimamanda Adichie é de opinião que “a história única cria estereótipos. O problema com os estereótipos não é que eles sejam mentira, mas sim que são incompletos. Os estereótipos fazem uma história tornar-se uma única história”. A escritora nigeriana aponta como consequência da história única o facto dela roubar “a pessoa da sua dignidade” o que “torna o reconhecimento da nossa humanidade partilhada difícil” já que ela “enfatiza o quanto somos diferentes em vez do quanto somos semelhantes”. Isto significa que longe de gerar forças unificadoras,  a história única acirra disputas que empurram ainda mais os contendores para as suas trincheiras doutrinárias aprofundando assim o fosso que os separa.

No caso concreto da polêmica batalha do Kuito Kuanavale, a diversidade de forças envolvidas, a sofisticação dos meios utilizados e, sobretudo, os desdobramentos posteriores, atestam bem a complexidade da situação que a determinou. É pois, perfeitamente natural que os diferentes actores tenham dela visões diferentes, construídas a partir do ângulo do qual observaram o fenômeno, dos interesses investidos e das experiências vivenciadas. É impossível desligá-la do macro-contexto  da guerra fria que representava a moldura geopolítica da época em que ocorreu a batalha. Por isso, a batalha do Kuito Kuanavale e, de modo geral, a guerra pós-independência precisa sempre ser analisada nesta perspectiva complexa. Reduzi-la a uma história narrada exclusivamente por um dos lados é mutilar a história e privar da verdade gerações e gerações.

O esforço que se assiste de imposição de uma história única só pode ser entendido no quadro dos jogos de poder onde uma elite poderosa procura intensificar a sua dominação sobre os demais. Este esforço, no nosso caso, tem sido levado ao extremo transfigurando profundamente as relações de poder. Se em democracia as linhas verticais e horizontais coabitam harmoniosamente nas relações entre representantes e representados, no nosso caso as linhas horizontais são cada vez mais escassas, predominando as verticais, ao mesmo tempo que desaparecem do quadro os tabiques que separam os três poderes.

A imposição da história única ocorre simultânea a uma hiperconcentração de poderes numa única figura, o Titular do Poder Executivo. As pálidas aguarelas que vão pintando o quadro  são cada vez mais a corrupção e a aplicação da lei ditada por interesses particulares. Levianamente têm sido atropelados princípios caros na Constituição, tais como os princípios da universalidade (Art. 22º) e principio da igualdade (Art. 23º). Direitos fundamentais têm sido violados, incluindo o direito sagrado à vida (Art. 30º) para não falar na integridade moral, intelectual e física das pessoas e na dignidade humana frequentemente ultrajada (Art. 31º).

Num quadro assim configurado torna-se cada vez mais difícil falar-se em Estado Democrático de Direito conforme o articulado do Art. 2º da nossa Constituição:

“A República de Angola é um Estado Democrático de Direito que tem  como fundamentos a soberania popular, o primado da Constituição e da lei, a separação de poderes e interdependência de funções, a unidade nacional, o pluralismo de expressão e de organização política e a democracia representativa e participativa”.

De facto são muitas as conquistas democráticas conseguidas com os Acordos de Paz assinados em Bicesse em 1991 que vêm sendo escamoteadas enquanto se tornam cada vez mais definidos os contornos de um regime de cariz autocrático em Angola. Não se faz democracia com história única, pois a democracia é por essência plural e polifónica. Apagar o pluralismo de expressão é amputar no âmago a democracia. O exercício que se assiste de imposição de uma história única não é certamente o caminho que nos conduzirá a uma sociedade, mais plural, polifónica onde a diferença coabite harmoniosamente.

Somos, por natureza um país diverso e a construção da Nação com que todos sonhamos, Nação diferente, mas igual, representativa do mosaico étnico, cultural, social e económico que de facto somos, não se coaduna com o pensamento único. A diversidade é a nossa maior riqueza, por isso precisamos de engenhosamente acolhe-la no nosso projecto de Nação. Para tanto basta encurtarmos a distância que ultimamente vem separando o discurso oficial baseado no Texto Constitucional e a realidade.

Isto é perfeitamente possível, bastando que haja vontade!

Por: Maurílio Luiele

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