Siga os trechos da conversa na íntegra
CNN PORTUGAL - Estamos em Luanda, celebramos os 50 anos da Independência de um país que sonhou durante muito mais tempo. Senhor Presidente, muito obrigado por me receber aqui, em sua casa, em Angola. Que país é esse, 50 anos depois de tantas feridas que nos afastaram, nomeadamente dos portugueses?
PRESIDENTE DA REPÚBLICA - Angola é um país independente e com todas as valências que vêm por detrás dessa expressão: “Independência”.
A Independência vale sempre a pena. Em 50 anos, fizemos bastante, não obstante reconhecermos que nem tudo está feito.
Não há países que tenham tudo acabado, caso contrário também não haveria vida. Tem que haver trabalho, obrigações, responsabilidades para todas as gerações. Os países são para se ir fazendo. E 50 anos para a vida de um país não são nada, absolutamente nada! Nós estamos a procurar comemorar os 50 anos da melhor forma possível, da forma mais efusiva, reconhecendo os feitos; mas reconhecendo também os nossos pontos fracos, que os temos, com certeza.
Há um programa de condecoração de figuras, não só de nacionais, mas também de estrangeiros que, de alguma forma, serviram o país ao longo dos 50 anos - ou um pouco antes - contribuindo para que Angola fosse independente. E isso está a ter um grande impacto. As famílias estão satisfeitas, a sociedade está satisfeita, porque afinal de contas o reconhecimento é sempre algo que cai bem.
CNN PORTUGAL - Para chegarmos a essa data, há 50 anos, houve uma luta, houve uma divisão do próprio povo angolano. Tudo isso está sarado? Hoje, Angola é uma democracia plena, completamente reconciliada?
PR - Uma divisão? Pode ser mais explícito?
CNN PORTUGAL - Depois da Independência, o país dividiu-se numa guerra civil, irmãos contra irmãos, houve afastamento até de Portugal. Isto hoje ainda se sente na democracia angolana?
PR - Bom, se quisermos ser rigorosos, não podemos considerar que o país esteve dividido. O país sempre foi, como nós dizemos, uno e indivisível. Tivemos períodos muito curtos de ocupação de parcelas do nosso território, mas foram por períodos efémeros.
CNN PORTUGAL - Mas tivemos o povo dividido. A pergunta era nesse sentido…
PR - Quem ocupou essas pequenas parcelas de terreno por tempos curtos, relativamente curtos, não constituiu governo, não governou essas parcelas. Daí o facto de nós dizermos que divisão propriamente dita não houve.
Houve diferentes movimentos de libertação que tinham visões diferentes de um país independente. Estou a referir-me às três principais forças políticas da altura. Hoje, não são necessariamente as mesmas. Estou a referir-me, no fundo, ao MPLA, FNLA e à UNITA, que são as forças políticas signatárias dos Acordos de Alvor.
Houve muita interferência externa, sobretudo no quadro da Guerra Fria. Nós acabámos por ser vítimas da própria Guerra Fria. A Guerra Fria, essa sim, é que dividiu o mundo em dois blocos diferentes. Nós acabámos por ser apanhados por um dos blocos e isso custou-nos cerca de 27 anos de conflito armado, depois da Independência.
CNN PORTUGAL - Hoje, 50 anos depois, estamos também com o mundo quase numa Guerra Fria. Como é que olha para o que está a acontecer, nomeadamente com esta liderança de Donald Trump nos Estados Unidos e as dúvidas que se levantam? A China, de um lado, a Rússia e os Estados Unidos, do outro. Vamos ter uma Nova Ordem Mundial?
PR - Já se está a formar uma Nova Ordem Mundial. Todos os dias, o que estamos a ver é precisamente isso. Se isso está a ser feito da melhor forma ou não, isso é discutível.
CNN PORTUGAL - Qual é a sua opinião? Estamos no bom caminho ou isto é perigoso?
PR - A minha opinião é que uma Nova Ordem Mundial era necessária, impunha-se, mas nunca pela força das armas, nunca pela via da ocupação de territórios de países alheios, de países vizinhos, onde, lamentavelmente, o que impera é a lei da força. Uma Nova Ordem Mundial impunha-se no sentido de uma reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, uma reforma das principais instituições das Nações Unidas, do Banco Mundial, do FMI.
CNN PORTUGAL - Mas não é isso que estamos a ver…
PR - Lamentavelmente, não é isso que estamos a ver. Está a tentar-se forçar. Está a ser desenhado um novo mapa mundo em que os centros de poder estão a se movimentar. O que é que isso vai dar? Eu temo que não nos esperam dias bons no futuro.
CNN PORTUGAL - Angola tem uma ligação forte com os Estados Unidos. Joe Biden teve uma das últimas acções aqui, com um grande investimento estruturante, não só para Angola, mas também para os países vizinhos. Qual é a sua relação nesta altura com Donald Trump e com esta nova Administração da Casa Branca?
PR - As nossas relações com os Estados Unidos da América continuam boas. Até aqui, não sentimos nenhuma alteração.
CNN PORTUGAL - Não têm tarifas, não estão no alvo?
PR - Do mês de Janeiro para cá, desde a tomada de posse do Presidente Trump, especulou-se, de alguma forma, que ele iria abandonar o Corredor do Lobito. Abandonar, no sentido de não apoiar. Mas não é isso que estamos a sentir. Nós realizámos há relativamente pouco tempo, aqui em Luanda, uma cimeira de negócios entre os Estados Unidos da América e África. E a mensagem que ouvimos aqui, em viva voz, da parte americana, é que o apoio americano vai continuar.
CNN PORTUGAL - Angola é um país curioso nesta nova posição política…
PR - Aliás, basta dizer que agora mesmo, na semana passada, o Afreximbank, banco americano, anunciou a aprovação de um valor de quase 300 milhões de dólares para financiar a aquisição de alguns aparelhos da Boeing para a nossa companhia aérea, a TAAG.
CNN PORTUGAL - Estava a dizer-lhe, olhando para este novo mapa que se desenha, que Angola tem uma posição curiosa. Tem boas relações com a China, teve - e não sei em que ponto estão -, boas relações com a Rússia, e tem óptimas relações também com os Estados Unidos, que estão num projecto estruturante. Angola pode ser uma ponte também para esta nova organização e pode ajudar a construir este novo mundo?
PR - Eu acredito que sim. Angola pode ser mais bem utilizada, entre aspas, no sentido de falar com todos, porque nós temos essa capacidade. Estamos bem com qualquer um deles, não obstante termos a nossa opinião, por exemplo, em relação à agressão russa à Ucrânia.
CNN PORTUGAL - Mas mantém boas relações com a Rússia?
PR – Mantemos, com certeza. Uma relação de muitas décadas não se rompe assim de um dia para o outro. O que há de bom em nós é que temos tido a coragem de, olhos nos olhos, dizermos aos nossos amigos que “vocês estão bem ou vocês estão errados”. E entre amigos deve ser assim.
CNN PORTUGAL - E tem feito isso com Vladimir Putin?
PR - Com certeza, que temos feito isso. Temos feito isso, quer no contacto directo, quer mesmo em declarações públicas, que todos ouvem, inclusivamente eles próprios. Angola pauta por manter boas relações, de preferência com todos os países do mundo. Desde que não haja razões para deixar de ser assim, a nossa diplomacia continuará a actuar desta forma.
CNN PORTUGAL - Angola tem também um papel muito importante na pacificação necessária de África, que tem sido difícil e complicada. Tem no seu currículo uma recente vitória. O que é que é preciso fazer de forma decidida para que este continente, finalmente, encontre uma paz muito mais alargada?
PR - Em primeiro lugar, precisamos ter mais coragem para apontar, condenar todos aqueles que contribuem de forma negativa para a paz e segurança do nosso continente. Alguns dos promotores das guerras alegam ter as suas razões. Nós temos que ouvi-los. Não podemos deixar de ouvi-los. E é assim que, por exemplo, em relação aos países do Sahel, que até se retiraram da União Africana, com alguns deles - três ou quatro pelo menos -, agora na minha presidência da União Africana, estamos a restabelecer os contactos. Estou a referir-me ao Níger, Burkina Faso, Mali e à Guiné. Entendemos que, se cometeram erros ou não, eles não deixam de ser países africanos. Continuam a ser países africanos e a União Africana tem de olhar para todos, sem distinção, condenando evidentemente ali onde é preciso condenar e procurando puxar para que eles regressem à normalidade constitucional, a exemplo do que acabou de acontecer com a República do Gabão.
O abandono não é a solução. A solução é dizer: “olha, para que vocês regressem à normalidade constitucional e sejam tratados de forma igual a todos os demais, precisam de fazer isso, aquilo e aquilo”. Nós estamos aqui para ajudar e não para complicar. É o que nós estamos a fazer.
CNN PORTUGAL - Deixe-me olhar para a Europa. Vai fazer no próximo fim-de-semana uma visita a Portugal. Um dos temas que está na nossa agenda é esta Lei dos Estrangeiros. Tem obtido informação sobre o que está a acontecer e o efeito que isto pode ter nas relações Portugal-Angola, mas também no interior da CPLP, onde se percebe que há aqui algum incómodo?
PR - De facto, existe algum incómodo. O Brasil teve a coragem de manifestar já esse mesmo incómodo. Nós, até aqui, não dissemos nada, mas é evidente que estamos a seguir a evolução da situação com muita atenção.
Os países são soberanos, têm as suas políticas de imigração. Você só recebe na sua casa quem você quer. Ninguém pode impor que o João tem que ter as portas abertas para aquele que eu mandar para lá, mesmo sem estar de acordo. Isso, por um lado. Mas, por outro lado, pensamos que não se deve fugir muito daquilo que é a prática internacional em termos de imigração, se tivermos em conta que hoje são uns, amanhã são outros, ou no passado foram outros.
Portugal mesmo é um país de cidadãos que emigram bastante e que não é de hoje. Portanto, o passado de Portugal está muito ligado à emigração para o mundo.
CNN PORTUGAL - Há portugueses no mundo todo…
PR - …Para a Europa, para a América Latina.
CNN - O Brasil mostrou este incómodo logo de forma clara.
PR – Sim. Mas deixe-me terminar. Os portugueses emigraram para todo o mundo e o mínimo que exigimos é que Portugal não trate os imigrantes, que escolheram Portugal como destino para fazerem suas vidas, de forma pior do que foram tratados nos países que os acolheram ao longo dos anos. Portanto, é este, muito genericamente, o apelo que nós fazemos a Portugal porque, de uma forma geral, salvo várias excepções, todos os países têm imigrantes.
CNN PORTUGAL - O Presidente da República ainda não promulgou a lei. Vai estar com ele. Será um dos temas da conversa, sem revelarmos a agenda, que leva daqui de Luanda?
PR - Eu penso que sim. Nós, não apenas nós Angola, temos imigrantes em Portugal. Mas até na minha condição de Presidente em exercício da União Africana, tenho, de alguma forma, de falar pelos africanos, de uma forma geral. E há bastantes africanos de diferentes nacionalidades que escolheram Portugal como...
CNN PORTUGAL - Mas são realidades diferentes. A CPLP, com esta ideia até de uma livre circulação de pessoas, como se chegou a defender, e o resto do mundo, corre o risco de ruir neste lado fundamental, neste pilar, que é quase fundador da comunidade que é de podermos circular entre todos?
PR - É a nossa obrigação, enquanto Estados-membros da CPLP, incluindo Portugal, tudo fazer para evitar que isso possa vir a acontecer. Vamos trabalhar todos em conjunto, incluindo Portugal, para não fazer descambar esse grande projecto de comunidade que é a CPLP.
CNN PORTUGAL- As ausências nesta última cimeira são um sinal deste incómodo da CPLP com esta lei? A começar por Portugal, o Presidente da República, pela primeira vez, não esteve, o Senhor Presidente também não esteve, e a cimeira acabou por ser muito apagada.
PR- Eu não acredito que a razão seja essa da migração. Se a cimeira fosse em Portugal, talvez alguns países africanos não estivessem presentes com esse argumento de que Portugal está a mexer na Lei dos Estrangeiros, como um sinal de protesto ou de manifestação de descontentamento. Não me parece que a razão seja essa e, de resto, os Chefes de Estado têm sempre agendas muito preenchidas.
CNN PORTUGAL - Tantos Chefes de Estado ao mesmo tempo? Foi uma coincidência?
PR - Não foram assim tantos. Que eu saiba, foram três exactamente.
CNN PORTUGAL - Os mais importantes: Angola, Portugal e o Brasil.
PR - Cada um teve as suas razões para não estar presente e muitas vezes não temos a obrigação de ter que justificar. O importante é que o país esteve, no caso de Angola. Angola não esteve ausente. Angola esteve presente.
CNN PORTUGAL - Sim, mas não esteve o Presidente.
PR - Está bem, mas isso nem sempre acontece. Seria bom que estivesse, mas às vezes não dá. E quando não dá, estamos representados. É normal nas relações internacionais.
CNN PORTUGAL - A relação com a União Europeia tem sido uma das apostas da União Africana, também de Angola. Mas a porta de entrada tem sido Portugal. Como estão os negócios? Está a começar a FILDA, encontrei hoje de manhã, aqui no hotel, uma série de empresários portugueses que vêm mostrar os seus produtos e levar daqui certamente algum investimento. Estamos francamente abertos a continuar a fazer bons negócios dos dois lados?
PR - A porta de entrada de África para a Europa não é propriamente Portugal. Não me parece que isso seja verdade.
CNN PORTUGAL - De Angola…
PR - Nem mesmo de Angola. Se quisermos ser sinceros, nem mesmo Angola, porque nós temos a liberdade de estabelecer relações de amizade e de cooperação directamente com qualquer país europeu, sem termos que passar necessariamente por Portugal.
Portanto, as relações do nosso continente com o continente europeu são boas. São boas, vamos ter dentro de pouco tempo aqui mais uma cimeira, no dia 25 de Novembro, por sinal aqui em Luanda, União Europeia-África, e acredito que vai ser uma boa oportunidade para procurar consolidar aquilo que ganhámos ao longo dos anos dessa nossa relação, e perspectivar o futuro da relação entre os dois continentes.
CNN PORTUGAL - Faço esta pergunta, voltando ao início da nossa conversa, porque os Estados Unidos nesta altura estão a pressionar a Europa e outros blocos com a questão das tarifas. E a Europa tarda em encontrar alternativas de negócio. Poderá passar por aqui, em África, esse campo que a Europa pode explorar aqui, em alternativa aos Estados Unidos? África apresenta-se como essa alternativa?
PR – A Europa pode e deve manter boas relações de cooperação com os países do continente africano, independentemente da relação que tem, ou perspectiva vir a ter com os Estados Unidos da América. Isso aqui não é uma questão de troca. As relações com os Estados Unidos hoje, por qualquer motivo, não estão lá muito boas, então vamos nos virar para a África. Eu acho que as coisas não funcionam assim.
A Europa deve procurar tirar o maior proveito possível das relações que tem com o continente e talvez dizer que a Europa está numa posição privilegiada. A Europa esteve cerca de cinco séculos no continente africano. Conhece bem a África. E se ao longo desse tempo não tirou o melhor proveito possível desta relação privilegiada, repito, eu creio que só perdeu. Só perdeu. Só perdeu, porque está em vantagem.
CNN PORTUGAL - Está a tirar esse partido que deveria?
PR - Não está. A nosso ver, não está. Poderia ter feito muito mais em benefício de ambos os lados, em benefício da própria Europa, mas também em benefício de África, obviamente. A África precisa de atingir um outro nível de desenvolvimento, precisa de investir bastante em infra-estruturas, estradas, portos, caminhos-de-ferro, infra-estruturas de produção e distribuição de energia. E, para isso, poderíamos contar muito mais com a Europa. Mas isso nem sempre tem acontecido.
CNN PORTUGAL - Deixe-me olhar aqui para o seu país. Cinquenta anos, uma democracia que se prepara de novo para eleições presidenciais, mudança de ciclo, autárquicas e também uma reorganização do país. O que é que vai acontecer nos próximos tempos? Já pensou na sucessão, por exemplo?
PR - É evidente que penso todos os dias. Penso calado, como se diz. Não seria verdade dizer que não penso, tenho que pensar, é meu dever pensar, porque não podemos deixar que o país fique nas mãos de um qualquer.
É a minha obrigação ajudar a encontrar um substituto, que me vai substituir. E digo ajudar, porque não depende apenas da minha vontade, mas com certeza que estou em melhores condições do que qualquer outro cidadão de indicar o rumo a seguir.
O que eu pretendo é que quem quer que seja que venha a me substituir seja igual ou melhor que eu. Que faça igual ou melhor que eu! Se não conseguir isso, ficarei com remorso, sentir-me-ei, de alguma forma, responsabilizado por isso.
Portanto, a minha luta é essa, é tudo fazer, respeitando tudo, respeitando a nível do partido, os estatutos do partido, a nível do Estado, a Constituição da República e as leis, fazer tudo para encontrar alguém que faça por Angola, no mínimo, igual ou, de preferência, melhor do que tenho vindo a fazer nesses anos de mandato.
CNN PORTUGAL - Tem falado muito pouco sobre isso, mas quando se olhava para o passado, para alguns generais que tiveram um papel importante até na Independência, o Senhor Presidente quis olhar para o futuro. O que é que queria dizer com isso? Se é que quer ser um bocadinho mais claro sobre essa sua ideia de quem deveria ser o próximo Presidente de Angola. Qual seria o perfil?
PR - Se bem entendi, está a referir-se ao facto de eu ter falado muito na necessidade de apostar na juventude, é isso?
CNN PORTUGAL - Exactamente. O que é a juventude?
PR - Há 50, talvez não, há 46 anos, tivemos a infelicidade de perder o Presidente Agostinho Neto, o primeiro Presidente de Angola, que proclamou a Independência de Angola. E, já naquela altura, quem assumiu as rédeas do poder foi um jovem, que só tinha 37 anos. Então, o João acha que hoje, 46 anos depois, ou mais, quando houver as eleições em 2027 - aí serão 48 anos depois - de o Presidente Eduardo Santos ter assumido a Presidência da República. Acha que vamos regredir?
Vamos esperar alguém de 90 anos? Vamos andar para trás! Se, naquela altura, já se tinha a visão de se pensar num jovem - claro que não foi um jovem qualquer - um jovem que, no nosso entender, estava preparado para assumir essa responsabilidade. E hoje temos, igualmente, não um, nem dois, nem três, temos alguns jovens que, com certeza, estarão, quando chegar o momento, em condições e preparados, de todos os pontos de vista, a assumir as rédeas da governação de Angola.
CNN PORTUGAL - Angola, tal como Portugal e muitos outros países, têm tido dois, três partidos fortes, mas isto está a ser um bocadinho desmanchado por dentro com o aparecimento de movimentos inorgânicos. Também, aqui em Angola, vocês têm tido alguns protestos, com os táxis, com os combustíveis, que nascem nas redes sociais com lideranças que não se conhecem muito bem. Está preocupado com esta nova realidade, sem rosto, que quer também entrar na política?
PR - Só estar preocupado não é remédio. Precisamos estar preparados para conviver com essa realidade, que é universal hoje. Conviver com ela e saber contornar dentro daquilo que a lei permite. Portanto, sem fugir a ela, saber lidar com esta realidade, que é universal. Com uma tendência de piorar, agora com o surgimento da Inteligência Artificial. Esta questão das redes sociais, das vantagens que são conhecidas - tem muitas vantagens -, mas os perigos das redes sociais vão se agravar à medida que a Inteligência Artificial se for afirmando mais.
CNN PORTUGAL - Mas isto mostra também, e não é exclusivo de Angola, que há uma juventude que se informa nas redes sociais, que não consome informação tradicional, não vê a CNN, não vê outro tipo de órgãos de comunicação, e que acaba por agir por impulso. Vai para a rua, provoca caos, destrói. Como é que se controla esta geração? Como é que se traz esta geração para o lado da esperança, como costumo dizer?
PR - O direito à manifestação está previsto na Constituição e na lei. O problema não é a manifestação. O problema são as tentativas de crime que podem surgir por detrás das manifestações.
Se um cidadão queima viaturas que encontra na via pública, queima, vandaliza, machuca viaturas, põe fogo nos contentores de lixo, isso já não é manifestação, isso é crime! Então, se é crime, deve ser tratado como crime. É uma questão de separar o trigo do joio. O que é manifestação? É um direito, o Estado até tem a obrigação de proteger esses que estão a se manifestar. Está lá a polícia, mas não está para reprimir, está para protegê-los. Agora, se no meio dessa massa de pessoas de boa fé que estão a reivindicar algo que pensam ser um direito seu - e é normal que assim pensem e ajam - surgirem infiltrados, como costumamos dizer, com outras intenções e que pratiquem o crime, devem ser tratados esses.
CNN PORTUGAL - Mas isso está a acontecer também em Angola?
PR - Com certeza. Está a acontecer, não com a dimensão que vimos, por exemplo, naquele momento do movimento dos coletes amarelos em França. A dimensão é numa outra escala, muito mais pequena, mas com certeza está a acontecer.
CNN PORTUGAL - E está atento a isso, aqui em Luanda, em particular, onde têm acontecido estes protestos? Consegue perceber a razão do protesto, ou isto é um movimento inorgânico que mostra apenas insatisfação na rua porque sim?
PR - Às vezes, as pessoas manifestam-se sem nenhuma razão aparente. Neste momento, o argumento é o aumento do preço dos combustíveis. Este é o argumento que muitas vezes é utilizado pelos promotores, por aqueles que querem criar dificuldades ao poder. Mas é preciso que se diga que, depois do aumento do preço do diesel - hoje está 400 kwanzas o litro -, neste momento, em Angola, ronda os 40 cêntimos de dólar. Não há muitos países no mundo que tenham o combustível a este preço, abaixo dos 50 cêntimos. São 40 cêntimos o diesel! Apenas o diesel.
E os preços dos produtos comercializáveis, de uma forma geral no mundo, nunca são fixos. Os preços, em princípio, oscilam, tendo em conta um conjunto de factores, começando pelo princípio da oferta e da procura, mas não só. Este não é o único critério. Haverá sempre outros que jogam para essa oscilação de preços, que tanto podem subir como podem descer. Este é o argumento que está a ser utilizado neste momento.
CNN PORTUGAL - Deixe-me voltar aqui às relações com Portugal e à sua visita. Vai estar com empresários, que investimento português é que gostaria de ter em Angola de forma mais consistente?
PR - Bom, eu gostaria de ver maior investimento no sector industrial, na agropecuária, nas pescas, no turismo, e menos no comércio. Felizmente, isso já vem acontecendo. Há um certo número de empresas portuguesas que durante muitos anos limitavam-se a vender produtos a Angola, e que hoje tomaram a decisão de produzir esses mesmos produtos aqui em Angola. Montaram fábricas e estão a fazer o que faziam antes lá, dando emprego a cidadãos portugueses. Hoje estão a dar emprego a cidadãos angolanos, porque estão a produzir aqui.
CNN PORTUGAL - E em sentido oposto, nós tivemos recentemente uma grande vaga de investimentos angolanos com algum poder, na indústria, na banca, nos órgãos de comunicação social. Mas, tudo isso parou. E nesta altura, qual é o caminho que vai seguir o investimento de Angola no nosso país, em Portugal?
PR - Bom, regra geral, o investimento estrangeiro é investimento privado…
CNN PORTUGAL - Mas muito apoiado pelos Estados, sabemos disso…
PR - Mas há formas de se apoiar. O investimento português em Angola é essencialmente investimento privado. O que se passou com a parte contrária - o investimento angolano em Portugal - é que, infelizmente, o que aconteceu foi investimento público com a agravante de ter sido investimento público em que quem punha o dinheiro era o Estado, mas lá a propriedade, o investimento, era registado como sendo privado a favor de A, B ou C, o que é mais grave ainda. Estamos a falar do caso da GALP, da Efacec, do BPI, enfim…
Eu creio que a única excepção é o investimento público e que continua a ser público, feito no BCP Millennium. Este é o único investimento que é público. Portanto, é da Sonangol e continua. É uma participação do Estado Angolano, de uma das empresas do Estado angolano na banca portuguesa.
Em relação a outros casos - Efacec e outros - os dinheiros foram do Estado. O Estado é quem pôs o dinheiro, mas algum espertalhão, ou espertalhona, pôs o investimento em seu nome.
CNN PORTUGAL - A imagem da Angola ficou manchada com essa atitude?
PR - Sim, com certeza que ficou manchada.
CNN PORTUGAL - Como é que olha ainda para este processo? Vamos pôr o nome de Isabel dos Santos, que continua a ser julgada em vários tribunais e os diversos Estados continuam a tentar apurar as responsabilidades. Que marca é que isto deixa?
PR - Sim, mas diz bem, os diversos Estados continuam atrás do que terá feito em vários países do mundo. Só isso deita por terra o argumento de que existe perseguição política em Angola, que o poder angolano está a perseguir. Mas se Portugal também está atrás, se a Holanda também está atrás...
CNN PORTUGAL - A justiça é independente da política. Os tribunais estão a fazer o seu trabalho?
PR – Sim. Portugal e Holanda também estão a fazer perseguição política? Não me parece que sim. Portanto, que a justiça continue a fazer o seu trabalho, aqui estamos a fazer isso, vamos esperar pelo desfecho.
CNN PORTUGAL – Parece que é um tema incómodo, este, da família dos Santos?
PR - Não, não, não é incómodo. E não é incómodo por uma única razão: quando alguém nos diz que fulano, presumivelmente - a presunção da inocência sempre deve prevalecer - que o João cometeu um crime, o raciocínio lógico não é pensarmos de quem é filho o João. Não!
O raciocínio lógico é pensarmos, indagarmos, se efectivamente ele cometeu o crime de que está a ser imputado. Será? “Eu conheço o João. Não, não deve ser verdade. Será que cometeu?” E nunca iremos logo porque é filho de…
As pessoas, quando passam dos 18 anos, deixam de ser filhos de…São cidadãos!
CNN PORTUGAL - Mas neste caso não acha que ser filho de, beneficiou, nomeadamente Isabel dos Santos, nos investimentos que ela conseguiu fazer?
PR - São cidadãos. Se teve facilidade ou não, de qualquer forma isso não iliba ninguém do presumível crime que tenha cometido, das suas responsabilidades. Não iliba ninguém.
CNN PORTUGAL - A sociedade angolana como é que olha para isto? Esqueceu esse passado? Continua a sua vida normal? Ainda é um tema que se debate?
PR – Não. A sociedade angolana não esqueceu. Há-de esquecer como? Não esqueceu. A sociedade angolana continua à espera que a justiça seja feita. Portanto, vamos esperar pacientemente.
CNN PORTUGAL- Inclusive em Angola? Os processos em Angola não estão todos fechados?
PR - A Justiça às vezes tarda, mas chega sempre. Neste caso da Holanda, levou os anos que levou, mas pronto, está aí o desfecho.
CNN PORTUGAL- Senhor Presidente, voltando aqui ao futuro, há pouco ia lhe falar das eleições autárquicas, uma vontade de dividir Angola de uma outra forma, de ter uma administração local. Essas eleições vão acontecer antes das presidenciais? Vai ser o teste antes das presidenciais? Ou vai deixar isso para o próximo Presidente?
PR - Não sou eu que devo deixar ou não deixar.
CNN PORTUGAL- O Parlamento tem que se entender com isso?
PR - O Executivo fez a sua parte. Esta questão das eleições autárquicas é uma matéria que veio ao ar, levantada por mim próprio, numa reunião do Conselho da República. Até me surpreendi, naquela altura. Surpreendi. Ninguém esperava que levantasse essa questão.
É evidente que a Constituição de então já falava das eleições autárquicas, mas não se sentia, da parte da sociedade, dos partidos políticos, nenhuma pressão para que aquilo acontecesse logo. Então, eu levantei a questão numa reunião do Conselho da República. E, logo a seguir, o Executivo arregaçou as mangas e começou a preparar um conjunto de propostas de lei que encaminhou para o Parlamento.
É um número elevado de leis. Foi primeiro um pacote, depois fomos aumentando, aumentando…
Mas o dossier acabou por encalhar numa coisa tão simples quanto esta: parte do Parlamento, parte dos partidos com assento parlamentar, defende, como o Executivo defende, o promotor - quem está a promover isso é o Executivo, a iniciativa é nossa -, que não há condição para um país que nunca fez eleições autárquicas, não há condição para se fazerem eleições em simultâneo em todo o território nacional, em todos os municípios.
E na altura só tínhamos 164 municípios. Já defendíamos que não era possível. E há uma outra parte dos partidos que têm assento parlamentar que defendem que não. Ou é tudo ou é nada. Ou se fazem em todos os municípios do país, de uma vez, portanto em simultâneo, ou então não há eleições autárquicas.
O impasse está aí. É só desamarrarmos este nó, e tão logo se desamarra esse nó, com certeza, que completada a aprovação desse pacote legislativo autárquico, o Chefe de Estado terá condições de convocar eleições autárquicas. Neste momento, eu não tenho condição de convocar eleições autárquicas.
CNN PORTUGAL- Senhor Presidente, estamos a chegar ao fim. Voltando de novo ao começo - eu tenho voltado várias vezes… - cinquenta anos depois, olha aqui deste Palácio para Luanda e para o país. É o país que sonhou desde o tempo em que ainda jovem queria que Angola se tornasse independente? Onde é que ainda está a maior falha?
PR - Eu repito o que disse no início: não há encomendas acabadas, empacotadas com um laço bonito e…”está aqui a Angola dos meus sonhos, ou Portugal dos meus sonhos”. Isso não existe! Os países dos nossos sonhos são para ser construídos todos os dias. Todos os dias! E com altos e baixos, avanços e recuos.
Nós em 50 anos, se quisermos ser realistas, fizemos muito mais do que o regime colonial português fez em 500 anos, em praticamente todos os domínios. De infra-estruturas, redes de estradas, produção de energia, distribuição de energia, número de escolas e de alunos, de carteiras, quantidade e qualidade de hospitais e número de camas. Em todos esses domínios, Angola fez mais em 50 anos do que o regime colonial português - não Portugal, Portugal é uma coisa, o regime colonial é outra coisa - fez em 500 anos.
CNN PORTUGAL - Valeu a pena?
PR- Para concluir, valeu a pena. Nós vamos fazer esse balanço com números, a comparar o antes e o hoje, nos 50 anos, mais próximo da data da comemoração dos 50 anos, mais próximo do mês de Novembro ou mesmo no mês de Novembro.
Portanto, valeu a pena! É evidente que há um ou outro saudosista, como chamamos, usamos essa expressão, que diz que no tempo colonial era melhor, mas argumente! “Você diz que no tempo colonial era melhor, está bem, apresente-me factos! Quais são os factos que lhe levam a concluir que no tempo colonial era melhor?” E ele não consegue apresentar argumentos. Pode ser que ele sozinho já comia bife todos os dias, enquanto os outros, ao pequeno almoço, comiam farinha com água, que nós aqui chamamos ngonguenha, mas ele devia estar isolado numa ilha de milhões de cidadãos angolanos.
CNN PORTUGAL - A diferença é clara?
PR- É clara, claríssima!
CNN PORTUGAL- Muito obrigado por me ter aqui recebido, antes de partir para Portugal, onde vai estar com empresários, políticos. Certamente, a Lei dos Estrangeiros vai estar no centro das conversas, à espera de uma posição de Marcelo Rebelo de Sousa, que passa frequentemente em Luanda. Ainda há alguns dias esteve aqui, deu o seu mergulho, decorria uma cimeira entre Estados Unidos e África. Marcelo não terá participado.