Público (P): Viu a sondagem da Jeune Afrique, com mais de sete mil inquiridos da classe média-alta em 47 países de África? Os angolanos são os menos confiantes (34%) no futuro do seu país.
Ricardo Soares de Oliveira (RSO) - Não fico surpreendido. Nas viagens que tenho feito em anos recentes, notei uma diferença, que se acelerou a partir de 2019, do benefício da dúvida e até um certo optimismo que poderá ter existido desde fins de 2017. O Presidente João Lourenço, quando chegou ao poder, tomou algumas medidas que foram interpretadas como transformadoras. Só que, depois, o domínio absoluto do partido sobre a comunicação social, sobre o debate público e sobre o debate dentro do próprio partido começou a acelerar, e isso foi um dos primeiros sinais de que era uma reforma trompe-loeil e não uma reforma genuína.
A continuação da crise económica fez com que fossem anos muito maus, que diminuíram não só os recursos disponíveis para alimentar a população, também os privilégios dados às elites encolheram de uma forma muito radical. E isso criou muito mal-estar.
Mas penso que o fenómeno mais importante até é o modus operandi do Estado, nomeadamente o favorecimento de empresas específicas, os contratos por ajuste directo, o benefício de interesses. Em termos da economia política, há uma grande continuidade que não é surpreendente. A circulação de elites dentro do MPLA é muito menor do que se pensa. Vários membros da elite, muito associados ao José Eduardo dos Santos, caíram, mas aqueles que beijaram o anel do imperador conseguiram renovar a sua presença na elite.
P - Portanto, em vez de mudança, assistimos a uma continuidade?
RSO - Os últimos sete anos são uma história de profunda continuidade.
Não houve grande mudança em termos de dependência do petróleo. As estratégias de diversificação económica não foram bem-sucedidas. O resultado é uma estrutura económica muito semelhante àquela que existia há dez anos. Não é não reconhecer alguns benefícios e algumas inovações, mas a visão pessimista, desencantada e desapontada é uma impressão largamente estabelecida, mesmo no seio do próprio MPLA.
Público (P): - Se os privilegiados não acreditam no futuro do país, isto acabará por se reflectir no acentuar da crise.
RSO - As elites angolanas não confiam no futuro do país. Colocam o dinheiro, sempre que podem, no exterior. Há dez anos seria Lisboa, hoje será Dubai, Miami. A geografia da fuga de capitais de Angola, legal e ilegal, é hoje muito diversificada. As pessoas, quando têm dinheiro não é em Angola que o vão colocar e, se o colocam em Luanda, não é em sectores produtivos, mas no consumo. Sempre com uma grande hesitação em pensar o país a longo prazo.
E os sinais políticos não estão a ajudar.
Há um grande receio de turbulência política para 2027 [eleições). Acho que os motins do final de Julho demonstraram que o partido-Estado não está exatamente no controlo do contexto periférico, nomeadamente em Luanda. E que há fenomenologias políticas que vêm do musseque que podem avassalar a cidade de um dia para o
outro, o que é uma preocupação perene para as elites do MPLA desde 1977.
O poder actual está a conseguir dar garantias credíveis a investidores externos, em alguns sectores de enclave. Hoje em dia já não apenas no petróleo, mas em áreas como a gestão de portos, em infra-estruturas, em alguns sectores minerais não petrolíferos.
O Governo conseguiu assegurar que sectores vão ser geridos de forma profissional e não politizada.
Mas estas garantias não se aplicam fora destes enclaves económicos. Da mesma forma em que pelo menos algumas pessoas foram lesadas na passagem de poder entre Eduardo dos Santos e Lourenço, receia-se o que vai acontecer aos aliados deste se chegar outro ao poder em 2027.
Não estou aqui a ser crítico da política anticorrupção, gostaria que tivesse sido mais sincera e mais sistémica e menos ad hominem.
Mas um dos resultados dessa luta contra a corrupção, do ponto de vista de membros da elite, é que não sabem se para a próxima serão eles os defenestrados.
Público (P): - O facto de João Lourenço, no último discurso do estado da ação, não ter mencionado a luta contra a corrupção é sinal de fracasso?
RSO - A ideia de que fracassou partiria sempre do princípio de que houve uma tentativa genuína de limpeza sistêmica e que, por razões várias, infelizmente falhou, apesar da boa vontade e do voluntarismo da presidência. Mas há outra interpretação, a de que foi, desde o início, uma vendetta privada contra alguns indivíduos do regime anterior.
Agora, não vamos subestimar a importância política da luta contra a corrupção, que foi um factor de distinção, no contexto internacional, para João Lourenço, que o separou de forma muito clara da política de José Eduardo Santos.
Do ponto de vista de estratégia de rapprochement aos países ocidentais, tradicionalmente muito críticos da corrupção em Angola, foi uma sinalização política sofisticada e que teve frutos.
Público (P): - Angola projecta alcançar dois milhões de barris/dia de produção de petróleo nos próximos cinco anos. Mas, em Agosto, a produção caiu abaixo de um milhão de barris pela primeira vez em 28 meses.
RSO - A impressão que tenho é que, desde 2014, o investimento em investigação e desenvolvimento é tão escasso que as reservas têm sido desbastadas e não há new
booking of reserves. A produção passou de dois milhões de barris em 2008 para um milhão agora, e não vejo como é que esses números de produção se podem realizar em cinco anos. Mas, mesmo que assim fosse, há um problema que se divide em dois.
Temos o problema da dívida, que hoje em dia não é só a dívida chinesa, são também os eurobonds e a dívida internacional. Angola despende uma quantidade brutal de dinheiro só a pagar os juros da dívida. Entre isto e as despesas correntes e não negociáveis, especialmente com os salários públicos, estamos numa situação muito constrangedora, em que não há cash flow para grandes aventuras.
Nos próximos cinco, dez anos de Angola, o petróleo terá um papel menos preponderante na despesa pública, e a questão que se coloca é de onde virá o dinheiro. Há 17 anos que Angola está a tentar melhorar a base fiscal não petrolífera, e fez alguns progressos, mas são muito modestos, mesmo no contexto da Africa Subsariana. Cerca de 95% das exportações angolanas ainda são petróleo e 60% da receita do Estado. E as exportações não são o PIB, mas é das exportações que vem a moeda forte.
Existe interesse por parte de investidores internacionais nas áreas minerais não petrolíferas, especialmente os chamados "minerais críticos", mas esse potencial macroeconómico de compensação fiscal pelo declínio galopante do sector petrolífero não é nem rápido nem suficiente.
Portanto, nos próximos anos vamos ter uma quebra fiscal importante, quer isso dizer que diminuirá a despesa pública, tanto a nível social, de saúde e educação, como a nível dos salários dos funcionários públicos e do aparelho militar e de segurança. Este último consome muito dinheiro, de forma legítima, mas também enviesada, através do fundo de aquisições - historicamente, fonte de clientelismo para os sectores de segurança e de inteligência.
Um dia destes não haverá dinheiro para alimentar estas massas críticas do regime, que estão alienadas, zangadas ou desapontadas.
Público (P): - As estratégias da diversificação da economia falharam porque se apostou erradamente ou porque não havia grandes estratégias?
RSO - As estratégias eram frequentemente erradas. Estratégias faraónicas de comprar fábricas obsoletas no Brasil, desmontá-las e montá-las na Zona Económica Especial em Luanda, contratando brasileiros para as gerir. Este é só um exemplo, mas há uma miríade de estratégias, se não corrompidas, pelo menos, no mínimo, inexperientes e ingénuas. Visões com o mínimo de aprendizagem no que diz respeito a modelos bem-sucedidos no inicio do século XXI, incluindo em Estados africanos. Estou a pensar na Etiópia, que, com menos recursos, conseguiu industrializar-se de uma forma mais bem-sucedida do que Angola nos últimos 20 anos.
Portanto, existe, realmente, uma dimensão de incompetência e de visões obsoletas, que há 10, 15 anos eram dominantes nos círculos da elite de Angola.
Mas a dimensão corrompida e de má-fé tem um papel igualmente importante. Alguém beneficiou de cada fábrica obsoleta importada, de cada parque industrial que nunca teve qualquer objectivo produtivo.
Houve um roubo dos recursos dos angolanos inequívoco, e obviamente que essa estratégia industrial, em muitos contextos, foi feita para não funcionar.
Público (P): – No seu livro destacava as limitações do processo de reconstrução, sobretudo por causa do excesso de concentração do poder nas mãos do MPLA. A situação não mudou.
RSO - Há alguma dificuldade em ler o MPLA. Se compararmos com os alguns antigos movimentos de libertação que são hoje governo em todos os países da África Austral há uma coisa em comum: um "faccionalismo" muito acirrado. No caso do MPLA esse facciosismo é menos evidente. Mas não vermos essas tensões não significa que não estejam lá.
Primeiro, há menos dinheiro e, quando assim é, há mais disputas para ver quem vai beneficiar. Em segundo, há a tensão em relação às vendettas que o Presidente foi cultivando e a sua utilização dos tribunais. E a terceira é a preocupação em relação a 2027 – não só quem vem a seguir, mas os círculos que vão beneficiar com quem vem a seguir.
O contexto intrapartidário não me parece suficientemente pragmático e calmo para que estas questões sejam resolvidas internamente de forma apaziguada.
São questões que vão aparecer talvez a um nível que não temos visto na história do MPLA em anos recentes.
Público (P): - Esteve em Junho em Angola e falou com muita gente, o que tirou dessas conversas?
RSO - Em 2022, por uma razão estratégica e altamente racional, muitos jovens que não são da UNITA aceitaram apoiar o desafio da UNITA contra o MPLA como uma alavanca de transformação do país. Como um mecanismo para a afirmação do projecto político de renovação e de mudança em que acreditavam.
Nos últimos três anos, a capacidade da UNITA de canalizar essas frustrações diminuiu muito. A ponto de haver estratégias bem-sucedidas de cooptação de alguns destes políticos da oposição por parte do MPLA, com dinheiro, estatuto, etc.
O resultado é que podemos chegar a 2027 com uma rua, uma sociedade, uma juventude que não estão institucionalizadas no sistema de competição política formal, que já não acreditam no MPLA nem na oposição "oficial" como veículo de mudança e transformação do país.
O que isto significa em termos de dinâmicas sociais e mobilização é, para mim, algo preocupante.
Público (P): - São 50 anos de um país moldado pelo MPLA, terá o partido capacidade para moldar os próximos 50 anos?
RSO – À medida que a sociedade angolana avança e a estrutura etária vai mudando - 70% dos angolanos ou quase tem menos de 25 anos -, alguns dos pilares da credibilidade histórica do MPLA, a luta de libertação e depois a luta contra a África do Sul, passam a ter relevância escassa. E no que diz respeito aos novos desafios, nomeadamente a questão da pobreza generalizada da vasta maioria dos angolanos, o MPLA não conseguiu dar respostas, apesar de ter beneficiado, a partir de 2004 e durante uma década, de recursos sem precedentes na história angolana, colonial ou pós-colonial.
Por conseguinte, o MPLA enquanto máquina de governação que contém em si mesmo as soluções para os problemas históricos de Angola, ideia que é central para a legitimidade única que o MPLA atribui a si próprio, está hoje muito debilitado. Isso não significa que vá cair do poder, mas a sua manutenção no poder vai tornar-se mais contestada, e isso terá um impacto muito grande na vida social e política de Angola nos próximos anos.
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