O esquema, que envolvia o acesso a documentos originais de imóveis postos à venda sobretudo no centro e zonas nobres da capital, era aplicado sob o “manto sigiloso” em nome do partido no poder e de figuras associadas ao governo central, e executado de forma meticulosa e astuta através de um estratagema suportado por órgãos de base do MPLA (como os comités de acção), instituições públicas (como gabinetes jurídicos e cartórios notariais), além do concurso de “decisões judiciais duvidosas e tendenciosas”.
Um dos mais emblemáticos e arrojados esquemas elaborados pelos envolvidos na referida ‘trama golpista’ remonta ao ano de 2016 — porém, até hoje ainda activo —, e foi colocado em marcha quando a rede de burlões, co-liderada por Luís Patrício Botelho e a sua mãe, Antónia da Graça Botelho, se apercebeu que o prédio urbano n.º 3375, localizado na Rua Clube Marítimo 26-A, na fronteira com as Torres do Carmo, na baixa de Luanda, estava à venda.
Usando dos serviços de uma correctora imobiliária, Sandra da Cunha da Conceição, os militantes do partido no poder elaboraram uma “narrativa” e com ela montaram um esquema de burla que passava por convencer o titular do imóvel, o empresário Walter Ferreira da Conceição, que o MPLA era a parte interessada na compra do prédio urbano, mas que o pagamento seria efectuado por departamento ministerial de forma “sigilosa”.
Mudança na liderança do país
Em causa, segundo contaram os militantes do MPLA à correctora imobiliária, estavam os desafios eleitorais de 2017 e o apoio que era preciso reunir à volta da candidatura de João Lourenço, diante do fim do ciclo de liderança do então Presidente do partido e da República José Eduardo dos Santos.
À correctora imobiliária, Luís Patrício Botelho, que no esquema fraudulento, assume o papel de front office — uma espécie de ‘homem da linha da frente’ —, passou a informação de que o assunto era “extremamente sigiloso”, uma vez que o ex-Presidente José Eduardo dos Santos já havia dado “orientações expressas” ao então ministro dos Petróleos José Maria Botelho de Vasconcelos para proceder ao pagamento do imóvel onde seria instalado o Comité de Acção do Partido n.º 24.
A informação “extremamente sigilosa” foi igualmente reproduzida ao titular do imóvel pela correctora imobiliária, e este, compreendendo a “sensibilidade do assunto” e por ser também ele militante engajado em projectos de apoio a causas sociais do MPLA, se limitou a negociar a venda do seu património “sem fazer muitas perguntas” a respeito da identidade dos “mandatários do partido” — foram assim apresentados.
Após dias de negociações, Walter Ferreira da Conceição e a correctora imobiliária acordaram fechar o negócio em 130 milhões de kwanzas, tendo sido essa a informação levada ao conhecimento de Luís Patrício Botelho e de Antónia da Graça Botelho, que na altura, segundo informações da própria, ocupava o cargo de primeira-secretária do CAP 24/Ingombota.
A estranha exigência
O passo seguinte do empresário foi atender a uma solicitação da correctora imobiliária, encarada como “normal e legítima” por Walter Ferreira da Conceição: os ‘mandatários do partido’ no poder faziam questão de se certificarem da titularidade do imóvel documentalmente, antes de o então ministro dos Petróleos mandar proceder, supostamente, ao pagamento do mesmo, seguindo a alegada orientação do então Presidente José Eduardo dos Santos.
Em resposta, o empresário entregou à correctora imobiliária cópias da documentação do imóvel, com destaque para a Certidão da Escritura de Atribuição do Título de Direito de Superfície (Ver aqui) n.º 2/20, de 16 de Outubro de 2008, elaborado pelo Gabinete Jurídico do Governo Provincial de Luanda (GPL), e assinado pela então governadora de Luanda Francisca de Fátima do Espírito Santo e pelo empresário Walter Ferreira da Conceição.
Para a estranheza do empresário, poucos dias depois de ter entregado os referidos documentos, a correctora imobiliária voltou a contactá-lo informando-o de que os ‘mandatários do partido’ no poder queriam ter acesso aos originais da documentação do imóvel e não às cópias, uma vez que pretendiam verificar a sua autenticidade junto do Gabinete Jurídico do GPL.
Intrigado, o empresário buscou a opinião de uma pessoa a si ligada e desta ouviu um argumento que o tranquilizou: “a priori, não há risco nenhum a correr, já que, para passarem o imóvel em nome de outrem, seria preciso o cumprimento de determinados actos formais, que exigiriam a presença do titular do bem em causa”. Convencido, Walter Ferreira da Conceição decide entregar os originais, mas sem nunca revelar ao familiar com quem estava a negociar.
Ameaças a intermediária do negócio
Poucos dias depois de entregar os originais da documentação, a correctora imobiliária Sandra da Conceição informou ao empresário da dificuldade que estava a enfrentar com os ‘mandatários do partido’ no poder.
Como desde o início das negociações o empresário nunca se mostrou interessado em conhecer pessoalmente os ‘interlocutores do partido’, visto que o assunto exigia “sigilo” e na medida em que lhe foi informado que o dinheiro sairia de um departamento ministerial, limitou-se a esperar que o Ministério dos Petróleos transferisse os 130 milhões de kwanzas acordados.
Porém, o silêncio fez-se prolongado e as pontes de comunicação acabaram suspensas, avolumando-se o clima de suspeição por parte da correctora imobiliária, que se viu assim obrigada a voltar a contactar o empresário para lhe dar nota do que se passa na verdade.
Para a surpresa de Walter Ferreira da Conceição, as notícias que recebeu não eram boas, porque, segundo explicações da correctora imobiliária, “depois de ter entregado os originais da documentação, passou a receber ameaças directas de Luís Patrício Botelho”, a tal ponto deste a ter assediado, apresentando-lhe um extracto bancário da sua conta particular, seguido de alusões intimidatórias como: “a senhora está sob observação do partido. Temos toda a informação sobre si, incluindo o que tem no banco”.
O início do drama
Diante daquela situação, Walter Ferreira da Conceição viu-se obrigado a accionar o seu advogado, já que a correctora imobiliária, aterrorizada e agora intimidada, abriu mão do negócio, aconselhando o empresário a tratar do assunto directamente com os ‘mandatários do partido’ no poder, já que não queria mais nenhum tipo de contacto com os envolvidos.
Acatado o conselho, o empresário pôs o seu advogado a estabelecer os primeiros contactos com Luís Patrício Botelho e com a sua mãe, Antónia da Graça Botelho. E, numa das abordagens telefónicas, os ‘representantes do partido’ no poder informaram que o Ministério dos Petróleos já havia transferido os valores da compra do imóvel para a conta particular do empresário, domiciliada no Banco de Fomento Angola (BFA).
Ao consultar o extracto bancário da referida conta, Walter Ferreira da Conceição apercebe-se de que não havia recebido nenhuma transferência e, assim, através do seu advogado, volta a contactar para saber o que se tinha passado para o valor esperado não ter caído. Como resposta, recebe uma série de “explicações evasivas e conexas”.
A partir dessa altura, o empresário e o seu advogado começam a enfrentar dificuldades de contacto com os ‘representantes do partido’ no poder, por um lado; e, por outro, viam-se impedidos de abordar o assunto de forma aberta com qualquer membro do MPLA, tão-pouco viram a imprensa como uma aliada; primeiro, porque o assunto era supostamente “sigiloso” e, segundo, porque a “disciplina partidária” recomendava-lhe e evitar uma “exposição pública desnecessária e negativa”.
Falsificação de documentos
Em Janeiro de 2021, o empresário recebeu uma ligação de uma pessoa conhecida que trabalhava no GPL, a questioná-lo se tinha alienado o referido imóvel, já que havia dado entrada no Gabinete Jurídico do GPL um requerimento (Ver aqui), acompanhado de uma procuração irrevogável (Ver aqui) por si assinada, a solicitar a ‘Alteração do Título de Transmissão do Direito de Superfície’ a favor da cidadã Antónia da Graça Botelho.
Apreensivo e indignado com que acabara de ouvir, o empresário deslocou-se ao Gabinete Jurídico do GPL e, para a sua surpresa, aquele departamento do Governo Provincial de Luanda se recusava a fornecer-lhe as cópias do requerimento e da referida procuração irrevogável passada em seu nome, mesmo fazendo prova, documentalmente, de que era o titular do imóvel em causa.
Diante do obstáculo, o empresário teve de recorrer ao gabinete da então governadora provincial Joana Lina e, por influência de alguém, conseguiu as cópias dos documentos que o Gabinete Jurídico se recusava entregar.
Uma vez mais, para sua surpresa, constatou que os dados do bilhete de identidade que a si faziam referência, assim como do imóvel, estavam correctos. Porém, uma coisa saltou-lhe à vista: os números telefónicos para contacto constantes no requerimento que ele, supostamente, havia dirigido ao GPL pertenciam à cidadã Antónia da Graça Botelho e ao filho, Luís Patrício Botelho.
Foram também adulterados documentos da Conservatória do Registo Predial (Ver aqui), no qual só conseguiram introduzir o número de telefone de Luís Patrício Botelho, e efectuado o pagamento do Imposto Predial (Ver aqui) em nome de Antónia da Graça Botelho, que aparece no cadastro como titular do imóvel.
Cartório notarial
Em posse dos documentos, o empresário deslocou-se ao 3.º Cartório Notarial da Comarca de Luanda, repartição onde fora lavrada a suposta procuração irrevogável falsificada, e posto lá informou-se dos procedimentos, tendo nessa altura já identificado o autor do documento.
Ao ser abordado pelo empresário, o ajudante de notário Alberto Ramos Chitumba confessou ter sido contactado por Luís Patrício Botelho, que o convenceu a falsificar a procuração irrevogável a favor da sua mãe, Antónia da Graça Botelho.
A seguir àquela confissão, a própria notária titular do 3.º Cartório na altura, Cláudia Demba, a chamar o Serviço de Investigação Criminal (SIC), que encaminhou o funcionário para as masmorras.
O !STO É NOTÍCIA apurou, nesta terça-feira, 16, junto da referida loja de registos, que, na sequência desse episódio e de outros ali descobertos, o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos substituiu, em 2023, toda a equipa do 3.º Cartório Notarial, tendo sido o funcionário Alberto Ramos Chitumba expulso do quadro de efectivos daquele departamento ministerial.
Queixa-crime contra o empresário
Em 2021, ao tomarem conhecimento das démarches do empresário junto do GPL, do poder político e judiciais, os militantes envolvidos na ‘trama golpista’ apressaram-se a ocupar de facto o imóvel, arrendando uma parte à rede de lojas ‘Bem Me Quer’ e, na outra, instalaram, à pressa, bandeiras dos órgãos da juventude e da mulher do partido no poder, para impedir qualquer acção pública visível do empresário que causasse dados à imagem do MPLA.
Nesse mesmo período, isto é, em Setembro de 2022, o ‘mandatário’ Luís Patrício Botelho apresentou uma queixa-crime contra o empresário Walter Ferreira da Conceição junto da Direcção de Combate ao Crime Organizado do SIC, acusando-o de pretender usurpar o imóvel do qual era o legítimo ocupante.
O empresário foi notificado e, através do seu advogado, respondeu à notificação, esclarecendo que a referida queixa-crime “seria uma reacção desesperada do requerente à acção cível que já corria trâmite junto da 1.ª Secção da Sala do Cível do Tribunal da Comarca de Luanda”.
Os contactos com o MPLA
Entre o ano de 2020 e Agosto de 2025, o empresário Walter Ferreira da Conceição — mantendo o assunto sempre em sigilo, como lhe tinha sido informado pela correctora imobiliária —, escreveu para o presidente e para o secretário-geral do MPLA, João Lourenço e Paulo Pombolo, respectivamente, mas a resposta até hoje, volvidos estes cinco anos, não chegou.
O mesmo ocorreu em relação a três governadores de Luanda, que, dada à acumulação de funções governamentais e partidárias, também foram informados da situação. Porém, não houve qualquer reacção ao caso, o que passou a alimentar a convicção dos advogados do empresário de que as cartas, talvez, não estivessem a chegar à mesa de trabalho de Manuel Homem e de Luís Nunes. A este último, por exemplo, o primeiro expediente foi recepcionado e protocolado a 10 de Março de 2025.
Nas cartas, os advogados do empresário pedem apenas esclarecimentos sobre o negócio da compra do imóvel, explicações sobre o papel dos militantes que se dizem mandatários do partido, assim como apresentam um ponto de situação a respeito do andamento do processo judicial. No entanto, nenhuma destas cartas teve sucesso — a última das quais, um pedido de audiência, foi enviada protocolada a 4 de Agosto de 2025 e tinha como destinatário o governador Luís Nunes.
Informações sobre outros casos
Em 2016, quando o primeiro-secretário provincial do partido em Luanda era ainda Bento Bento, e havendo já sinais que indiciavam algum “desvio de conduta” nas negociações da venda do imóvel, o empresário chegou a procurar o gabinete do líder do partido na capital e numa conversa que teve com um responsável de gabinete foi-lhe informado que “o seu caso não era o único. Ou seja, não era o primeiro, nem o segundo, nem o terceiro”.
Havia pelo menos mais quatro casos parecidos, envolvendo militantes do partido no poder que se estavam a aproveitar de determinado expediente partidário para ‘tomarem de assalto’ bens imóveis alheios, inclusive de pessoas que não tinham quaisquer ligações ao MPLA.
A mesma fonte acrescentou, na ocasião, que o nome do partido e a possibilidade de um escândalo público num ano pré-eleitoral e eleitoral assustava os lesados, que preferiam tentar resolver o assunto intra-muros e evitar uma exposição pública que lhes poderia custar caro.
Ministério nega pagamento
Na abordagem que os advogados do empresário fizeram ao Ministério dos Recursos Minerais, Petróleo e Gás, a resposta, datada de 17 de Maio de 2023, e assinada pela directora do Gabinete Jurídico daquele departamento ministerial, Eunice Ferraz, é categórica:
“Como facilmente se constata, em 2016 não poderia ter sido feito qualquer pagamento em nome do Ministério dos Recursos Minerais, Petróleo e Gás por inexistência deste departamento ministerial. No entanto, compulsados os nossos arquivos, não encontrámos qualquer registo relativo ao pagamento do Ministério a favor de Walter Ferreira da Conceição, ao abrigo de um contrato promessa de compra e venda de um prédio urbano situado no distrito urbano das Ingombotas”.
Os mandatários do MPLA
Abordados pelo !STO É NOTÍCIA, Luís Patrício Botelho e Antónia da Graça Botelho, que continuam a falar em nome do partido, apresentaram discursos contraditórios. Por exemplo, Luís Patrício Botelho afirmou, categoricamente, ter um comprovativo de pagamento de 65 milhões de kwanzas, realizado pelo então Ministério dos Petróleos, sem, no entanto, fazer prova do mesmo, apesar de ter prometido que o enviaria via WhatsApp.
Contudo, até ao fecho desta matéria, o militante do MPLA deixou de atender as chamadas telefónicas e bloqueou o número do jornalista em serviço. Mas, antes, apagou dois dos documentos que havia disponibilizado, logo a seguir ao encontro presencial que manteve com a equipa deste portal. Entre os documentos, estava uma cópia de um Contrato promessa de compra e venda do imóvel (Ver aqui) , com evidências de ser falso.
Já Antónia da Graça Botelho garantiu que o valor de 65 milhões de kwanzas foi uma doação do então ministro Botelho de Vasconcelos, que, segundo assegurou, militava no CAP 24. Porém, este portal tentou o contacto o ex-ministro, mas sem sucesso; Botelho de Vasconcelos não atendeu as chamadas telefónicas e nem respondeu às SMS enviadas via normal e via WhatsApp.
Antónia da Graça Botelho afirmou também que a procuração irrevogável é autêntica e que a mesma foi lavrada junto do Cartório Notarial do SIAC de Talatona, na presença do empresário Walter Ferreira da Conceição e da representante da correctora Sandra da Conceição. Informação que o empresário nega categoricamente.
Até ao fecho desta reportagem, Antónia da Graça Botelho também deixou de atender os telefonemas deste portal e recusou-se a apresentar o cartão de militante e todos os outros documentos que dizia possuir referentes ao imóvel. No entanto, em relação à titularidade do prédio urbano em questão, afirmou que “entregou a posse” ao partido, através de uma declaração que fez chegar a um camarada do partido que atende pelo nome de Lourenço, facto que era do conhecimento do segundo-secretário provincial do MPLA em Luanda, Ermelindo Pereira.
Contactado por este portal, o porta-voz do MPLA, Esteves Hilário, reconheceu de nome a militante Antónia da Graça Botelho, tendo prometido que “estava a verificar a veracidade das informações” e que depois voltava ao contacto. No entanto, não voltou a dar qualquer sinal, nem tão-pouco se predispôs a responder ao questionário que lhe foi enviado via WhatsApp.
Juíza “indefere liminarmente providência cautelar”
Há quase dois anos, isto é, a 25 de Setembro de 2023, a juíza de direito Sílvia Francisco, da 1.ª Secção da Sala do Cível do Tribunal da Comarca de Luanda, indeferiu liminarmente uma providência cautelar não especificada (Ver aqui), intentada pelos advogados do empresário Walter Ferreira da Conceição. Na sentença n.º 467/23, em relação ao Processo n.º 0199/2023-A, a juíza de direito alegou “a ausência do fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito do requerente”.
Não satisfeitos, os advogados do empresário interpuseram um recurso de agravo, que espera por uma decisão há dois anos.
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