As “ondas de choque dos três dias de tumultos estão a condicionar a vida política, e afetaram o MPLA, que não está a conseguir passar ao lado delas”, admite Reginaldo Silva que se foca nas oito páginas disruptivas que o deputado e presidente da Academia de Letras de Angola publicou com o título Os subsídios da desgraça.
“As reivindicações populares só acontecerão se os cidadãos virem desrespeitados os seus direitos. Por mais que a oposição os espicace, os cidadãos só reivindicarão se sentirem os seus direitos ameaçados”, escreveu o académico, membro do Comité Central do partido. Uma opinião nada alinhada com o presidente do MPLA que aludiu aos “atos protagonizados por cidadãos irresponsáveis manipulados por organizações antipatriotas nacionais e estrangeiras através das redes sociais”.
O deputado toca ainda mais na nota de distanciamento aos argumentos de João Lourenço ao clarificar: “Os atos de vandalismo que ocorreram na semana passada surgiram na sequência de uma medida governamental e não por ação de qualquer partido político da oposição”.
Por outro lado, condena a atuação da polícia durante os protestos, classificando-a como desproporcional e não se focando apenas nestes três dias: “A polícia tem de deixar de agredir e matar pessoas sem disso haver real necessidade, como sucede em caso de manifestações. Uma coisa é a polícia reagir a um ataque (e deve fazê-lo!), outra é atuar à lei da bala em reação a palavras proferidas por manifestantes desarmados”.
Acusando do Governo de falta de planeamento, transparência e comunicação eficaz ao implementar uma medida impopular, Paulo de Carvalho atacou o “despesismo e esbanjamento estatal”, defendendo que os recursos poupados com o fim dos subsídios aos combustíveis fossem direcionados à melhoria de vida das populações carenciadas.
“Não digo que as instituições não possam dispor de viaturas (…) mas devem ser viaturas mais modestas. Não digo também que os ministros deixem de viajar, mas que trabalhem mais e viajem apenas o indispensável”, aconselha.
“Quando já todos estivermos com bilhete de identidade, com escola, com emprego e com acesso aos cuidados primários de saúde, aí sim, podemos ir melhorando. Mas sem atingirmos os níveis de despesismo e de esbanjamento a que nos habituámos”, insiste. “E, já agora, acabemos de vez com as festanças de aniversário, de alegria exacerbada e difundidas até ao ridículo pelas redes sociais, quando a 200 metros das nossas casas há pessoas a viver na indigência, mas a assistirem a esse teatro absolutamente indigesto”, insurge-se.
“Os governantes têm de aprender a descer às bases, para perceberem como as pessoas comuns raciocinam e atuam”, exorta o professor universitário. “Enquanto se mantiverem em bicos de pés, continuarão a cometer erros atrás de erros, desgovernando ou governando apenas para si próprios, em função dos seus interesses pessoais ou de pequeno grupo”.
O sociólogo também não poupa a comunicação social estatal :”Tem de ser necessariamente apartidária. E tem de se abster de fazer contra-propaganda. (…) De que valeu levar ao Telejornal da TPA uma certa associação comunitária de taxistas? Quantos taxistas ela representa, ao ponto de anunciar uma suposta ‘desconvocação da greve’? Com que objetivo se faz isso, se não for para criar problemas e semear a confusão? Estava claro à partida que o efeito só poderia ser negativo, para confundir as pessoas – como sucedeu na realidade. Como podem vir, depois, na mesma TPA, oficiais da polícia dizer que as pessoas deveriam ficar em casa durante os três dias de greve, se foi a própria TPA que disse às pessoas que a greve estava a ser desconvocada e, por isso, todos deviam ir trabalhar no dia seguinte?”
Mais, avisa Paulo de Carvalho: “Se o MPLA continuar a auto-destruir-se, em vez de se atualizar e se modernizar (como querem os seus verdadeiros militantes), o resultado será apenas o seu afastamento do poder – ou pelas urnas, ou pela força”.
Reginaldo Silva chama a este manifesto de Paulo de Carvalho um “verdadeiro ato de coragem política, raro dentro do MPLA”, que “viralizou nas redes sociais e não só” e “mobilizou o debate no seio do partido”. Luzia Moniz salienta que “a oposição interna a Lourenço tornou-se audível, o que não acontecia desde o reinado de José Eduardo dos Santos”, há quem esteja “descontente com o rumo que o líder está a dar ao partido”.
Os reparos, conselhos e críticas de Paulo de Carvalho causaram algum desconforto à cúpula do partido, assumiu ao Observador um membro do Comité Central. Mas não ao porta-voz do partido: “O MPLA é um partido democrático que tem dentre os seus pilares o pluralismo de opinião. Somos mais de quatro milhões de militantes a pensarem com as suas próprias cabeças, é natural que não haja unanimidade em todos os assuntos”, reagiu Hilário Esteves ao Observador.
“É natural que sobre este ou aquele tema haja vozes discordantes, entretanto, nos órgãos e organismos próprios do partido as pessoas exprimem as suas opiniões. Julgamos ser absolutamente normal, num partido de matriz democrática”, reforçou. Mas a resposta tem uma nuance. Paulo de Carvalho tornou pública a sua análise que coloca em causa as decisões e afirmações do Presidente nesta matéria.
Um “país em colapso social” e um “Presidente pouco empático”
Antes do deputado, também o general histórico do partido, um dos homens-fortes de José Eduardo dos Santos, diplomata e pré-candidato à liderança do MPLA (por si só, um facto inédito, “nunca ninguém apresentou uma candidatura pública ao lugar”, confirma Luzia Moniz) saiu ao terreiro. É preciso ouvir as ruas, disse o antigo governador de Luanda, numa mensagem tornada pública. Logo no primeiro dia da paralisação, invocou o direito consagrado no artigo 47.º da Constituição da República de Angola, que garante a participação dos cidadãos na vida pública e política.
Valdir Cónego diz que o povo angolano “já não quer mais o Presidente João Lourenço” e que os militantes do partido “clamam pela sua saída da liderança do partido por manchar o bom nome e reputação do MPLA nestes 50 anos, sendo o pior Presidente da história de Angola” e da história do partido.
Até sábado, o porta-voz do MPLA dizia desconhecer este pedido de providência cautelar: “Desconhecemos este assunto. Nunca fomos notificados pelo Tribunal Constitucional sobre esse tema. A ser verdade, está a dar-me uma novidade”.
“A juventude tem desempenhado um papel dinâmico e consciente, afirmando-se como um segmento fundamental da sociedade angolana. A sua participação é legítima e deve ser respeitada e ouvida”, realçou Higino Carneiro. “O momento exige escuta ativa, responsabilidade e concertação, com o objetivo de promover o progresso sustentável e um desenvolvimento equitativo para todos os cidadãos”, concluiu.
Ora uma das críticas mais repetidas a João Lourenço é precisamente a sua incapacidade para ouvir. “O Presidente está alheio ao clamor das pessoas”, desaprova Reginaldo Silva.
Um outro pré-candidato à presidência do MPLA e do país e membro do Comité Central não se ficou só pelas palavras. Valdir Cónego levou uma providência cautelar ao Tribunal Constitucional para suspender João Lourenço da direção do partido até ao congresso eletivo.
“O país entrou no colapso social, onde a fome, a miséria e pobreza extrema assolam mais de 25 milhões de cidadãos angolanos”, alegou no documento a que o Observador teve acesso. O militante considera que “a causa do vandalismo é a fome e os efeitos foram mais graves, resultando na morte de mais de 30 cidadãos angolanos, culpa de quem dirige a nossa nação Angola, no caso, culpa do Presidente João Lourenço”.
"Não houve um telefonema, uma nota de solidariedade quando o meu vice-presidente foi preso, nenhuma visita à cadeia, de nenhum político, nenhum partido, nenhum deputado, nenhum membro da sociedade civil" Francisco Paciente, presidente da Associação Nacional de Taxistas Angolanos
"Não houve um telefonema, uma nota de solidariedade quando o meu vice-presidente foi preso, nenhuma visita à cadeia, de nenhum político, nenhum partido, nenhum deputado, nenhum membro da sociedade civil" Francisco Paciente, presidente da Associação Nacional de Taxistas Angolanos
Valdir Cónego diz que o povo angolano “já não quer mais o Presidente João Lourenço” e que os militantes do partido “clamam pela sua saída da liderança do partido por manchar o bom nome e reputação do MPLA nestes 50 anos, sendo o pior Presidente da história de Angola” e da história do partido.
Até sábado, o porta-voz do MPLA dizia desconhecer este pedido de providência cautelar: “Desconhecemos este assunto. Nunca fomos notificados pelo Tribunal Constitucional sobre esse tema. A ser verdade, está a dar-me uma novidade”.
Se este militante pede a saída de João Lourenço da liderança do MPLA, o movimento cívico Mudei lançou uma petição pública em que pede a sua destituição de Presidente de Angola, por “repressão, autoritarismo, violações sistemáticas dos direitos humanos e execuções sumárias”.
“O MPLA está a sentir desta vez com maior intensidade o impacto destes protestos e isto pode ter outras repercussões. Vamos ver se João Lourenço escutou o que tantas vozes disseram e se passa a ser o Presidente de todos os angolanos e não apenas o presidente do MPLA e o Comandante em Chefe das Forças Armadas e chefe do Governo” apela Reginaldo Silva. “É muito pouco empático, não faz sentido esta mensagem da teoria da conspiração sobre os protestos, o que aconteceu foi espontâneo. A ocasião fez o ladrão e o ladrão apareceu numa população que sobrevive no limite do desespero social”, conclui.
“Estamos sozinhos, atirados à nossa sorte”
Quem se queixa de “interferências e aproveitamento político” da paralisação dos taxistas é mesmo Fernando Paciente, cuja leitura da situação toca na de João Lourenço. “Há grupos de milícias digitais que nem estão em Angola que vão atiçando para nova vaga de paralisações, sem se solidarizarem-se connosco sequer e causando perigo para os rostos vísiveis da liderança dos taxistas”, acusou.
O presidente da ANATA, antes de ser detido, manifestava a sua desilusão com partidos e ativistas sociais na conversa com o Observador: “Vão para as redes sociais, partilham informação relevante sobre paralisações sem falarem connosco, sem contactarem diretamente connosco”.
Recusando-se a identificar a quem se referia, limitava-se a, numa voz pausada, reclamar o apoio que diz que não teve: “Não houve um telefonema, uma nota de solidariedade quando o meu vice-presidente foi preso, nenhuma visita à cadeia, de nenhum político, nenhum partido, nenhum deputado, nenhum membro da sociedade civil”. Com uma exceção, a Ordem dos Advogados que se tem multiplicado na ajuda aos 1500 detidos.
“Estamos sozinhos, atirados à nossa sorte, quando esperávamos contar com o apoio dos partidos da oposição e da sociedade civil”, ueixa-se Francisco Paciência. Desta vez não pode desconvocar e o seu vice convocar de novo. Continuam os dois detidos, acusados de terrorismo, incitação à violência e associação criminosa. Novas paralisações dificilmente virão do lado dos taxistas tão cedo. Observador