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Quinta, 02 Novembro 2023 20:40

MPLA não quer “prejudicar o seu poder hegemónico”: as sempre adiadas autárquicas em Angola em quatro perguntas e respostas

A governar o país há quase meio século, o partido segue “uma estratégia minuciosa de manutenção do poder”. Por isso, mesmo havendo “uma consciência no seio do MPLA de que, mais tarde ou mais cedo, estas eleições têm de ser realizadas”, acaba por vingar o desejo de o partido não sair prejudicado de umas autárquicas futuras, diz investigadora ao Expresso

m quase meio século de independência, Moçambique realizou seis eleições autárquicas, as últimas das quais há menos de um mês, ainda que com acusações de fraude e protestos violentos. Nos mesmos 48 anos, as autárquicas em Angola tornaram-se uma promessa permanentemente adiada. Foi assim com José Eduardo dos Santos e tem sido assim com João Lourenço.

Em entrevista ao Expresso, publicada a 2 de junho, João Lourenço considerou “arriscado” fixar uma data. Questionado sobre a existência de condições para a institucionalização das autarquias a partir de 2024, o Presidente angolano respondeu: “Tudo depende da nossa capacidade material, financeira e de organização. Acho arriscado falar em datas. Enquanto a Assembleia Nacional não concluir este processo da aprovação das leis, é melhor nem sequer fazer comentários. Às vezes cansam-me com este tipo de perguntas. Quando é que vai haver eleições autárquicas? Eu não posso convocar eleições autárquicas sem que seja na base da lei”.

Ora, “tendo em conta o lugar do Presidente no sistema político angolano, este poderia ‘desencalhar o processo’, influenciando os deputados do seu partido em maioria no Parlamento nesse sentido”, defende Cláudia Almeida, investigadora integrada no Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa. A estratégia do MPLA, no poder desde 1975, “tem passado por um desenho e controlo das regras do jogo democrático e escolha do melhor timing para introduzir as reformas necessárias à realização das autárquicas”, acrescenta, em conversa com o Expresso.

Ao contrário de Moçambique, que já realizou seis eleições autárquicas, Angola ainda não deu esse passo. Porquê?

Angola ainda não deu esse passo por conta do poder hegemónico do MPLA e da sua estratégia minuciosa de manutenção do poder, partido que governa os destinos do país desde a independência. Tal como em Moçambique, o processo de democratização em Angola fez-se de mãos dadas com um processo de pacificação de uma guerra civil que devastou o país durante quase três décadas. O fim da guerra civil em 2002 fez-se por via de uma vitória militar do MPLA sobre a UNITA e significou o reforço do poder do partido que passou por várias adaptações, entre as quais a adaptação ao multipartidarismo. A estratégia do MPLA tem passado por um desenho e controlo das regras do jogo democrático e escolha do melhor timing para introduzir as reformas necessárias à realização das autárquicas, sobretudo quando estamos perante o segundo e supostamente último mandato de João Lourenço, com sinais de desgaste e marcado por um partido histórico da oposição reforçado parlamentarmente. O que significará para o MPLA se as eleições locais se traduzirem também num resultado positivo da UNITA e de outros partidos da oposição? Que nacionalmente o MPLA controla o poder mas que localmente não totalmente, sobretudo em municípios importantes em termos de recursos naturais? O que significará em termos da representação do seu poder de Cabinda ao Cunene?

Primeiro com José Eduardo dos Santos, agora com João Lourenço, a promessa de autárquicas tem sido uma constante sempre adiada. Neste ponto nada se alterou com a mudança de Presidente?

Não diria que nada mudou. Simplesmente, a estratégia de controlo de processo para garantir o poder hegemónico do MPLA continua a ser o denominador comum. Não esquecer, citando as palavras do investigador angolano Sérgio Dundão, que a autarquia “abre espaço à existência de um poder contrário ao poder central, ou seja, de um contrapoder” – isto é, “o MPLA deixará de ter a exclusividade da representação e da governação política em todos os patamares do Estado”. Com João Lourenço houve alguns avanços, mas sempre dentro da mesma lógica de manutenção do poder. Avanços, esses, que fazem parte da necessidade de mostrar à sociedade angolana que é um Presidente diferente do seu antecessor e que o MPLA continua a ser o representante exclusivo dos interesses da nação. João Lourenço anunciou que 2020 seria o ano das autarquias em Angola, promessa que não foi cumprida apesar da auscultação pública realizada. As razões que o próprio apontou para o não cumprimento da promessa prendem-se com a pandemia de covid-19 e a conclusão do pacote legislativo autárquico. Vários analistas políticos angolanos e membros dos partidos da oposição têm sublinhado a falta de vontade política do Presidente que, por seu lado, lavando as suas mãos, tem atribuído a culpa ao Parlamento que continua sem aprovar o pacote autárquico. O certo é que, tendo em conta o lugar de João Lourenço no sistema político angolano, este poderia ‘desencalhar o processo’, influenciando os deputados do seu partido em maioria no Parlamento nesse sentido. De recordar que a proposta de lei já foi aprovada na generalidade, mas o seu processo de aprovação ‘encalhou’ na especialidade por conta da proposta de revisão pontual da Constituição, que significaria retirar a questão do gradualismo prevista no artigo 142.º, elemento do impasse no debate. Sobre esse ponto e em comparação com Moçambique, também neste país a aplicação das eleições locais começou por ser gradual, expandindo-se então às 65 autarquias nas últimas eleições de outubro deste ano. A opção pelo gradualismo é mais um exemplo de partidos com ADN autoritário e ex-movimentos de libertação nacional em África que procuram, em contexto de competição multipartidária, garantir o controlo do processo de competição eleitoral para manutenção e/ou reforço do seu poder.

A quem não interessa a realização de eleições autárquicas em Angola?

Não diria que não há um interesse de todo pela sua realização. Creio que há uma consciência no seio do MPLA de que, mais tarde ou mais cedo, estas eleições têm de ser realizadas. Mas claramente que o partido pretende que o processo de introdução de eleições locais seja feito de forma a não prejudicar o seu poder hegemónico. Não obstante, é importante referir que este tipo de eleições de natureza subnacional representa desafios para todos os partidos, nomeadamente a escolha de candidatos para as listas de vários municípios, a mobilização das bases para captação de eleitores, e depois a relação com o poder central. Por outras palavras, as eleições autárquicas são um exercício desafiante para todos os partidos e traduzem a sua influência no território angolano.

O adiamento ‘sine die’ destas eleições de maior proximidade contribui para o descontentamento da sociedade civil e o agravamento do fosso entre o cidadão comum e as elites?

No caso angolano, esse adiamento tem efetivamente contribuído para o agravamento do descontentamento social. Note-se, por exemplo, os protestos de 2019 e 2020 a exigir eleições autárquicas já. Por outro lado, a sociedade civil continua a pressionar para que haja efetivação do poder local. Destaque-se a iniciativa de vigília, em fevereiro, de ONGs [organizações não-governamentais] nacionais a exigir a institucionalização das autarquias e a rejeitar o princípio do gradualismo. O não cumprimento da promessa por parte do partido no poder em relação às autarquias também vai debilitando a imagem interna do Presidente, ao mesmo tempo que vai reforçando a noção na sociedade angolana de que a raiz do mal dos problemas do país é o MPLA. EXPRESSO

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