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Sexta, 19 Agosto 2016 23:05

“Crise da peça e do quadro” - Reginaldo Silva

Praticamente já com 37 anos de poder, o Presidente José Eduardo dos Santos que se prepara assinalar no, dia 28 de Agosto, o seu 74º aniversário natalício, pelo que é do domínio público, apenas uma vez no seio do MPLA, ao longo do seu já longevo consulado foi alvo do que  alguém considerou ter sido “a primeira e única uma manifestação interna de aberta contestação à sua liderança”.

Por Reginaldo Silva | Arquivo AO24

Não tão aberta quanto isso, pois, ao que se sabe, nenhum dos “contestários” chegou ao ponto de sugerir, e muito menos de exigir, a sua substituição, tendo tudo ficado mais ou menos implícito nas duras e frontais críticas “artísticas” que foram dirigidas ao desempenho pessoal e político do “Camarada José Eduardo dos Santos”

A história regista que este facto relevante ocorreu no recinto desportivo do Futungo de Belas a 28 de Agosto de 1982, no dia em que José Eduardo dos Santos completava o seu 40 aniversário, quatro anos depois de ter assumido por “herança” a direcção do partido e do governo, na sequência do falecimento por doença em Moscovo de Agostinho Neto, que já o havia indicado para seu sucessor caso as coisas corressem pelo pior na capital russa, o que veio a acontecer. Esta interessante revelação pertence ao actual Presidente cabo-verdeano, o Comandante Pedro Pires, que diz ter falado com Agostinho Neto, na escala técnica que o seu avião efectuou no arquipélago, na derradeira viagem que “Guia Imortal da Revolução Angolana” realizou em vida.

A manifestação  foi protagonizado por um grupo de conhecidos militantes afectos a sede nacional do MPLA, entre directores, chefes de secção e outros  funcionários que trabalhavam na época naquele influente organismo do partido que governa o país há mais de 25 anos consecutivos.

Nos anais do MPLA o célebre e transcendente caso ficou conhecido como a “crise da peça e do quadro”, exactamente porque o conteúdo “manifestação de contestação” foi transmitido por intermédio daqueles dois veículos artísticos.

O quadro, encomendado a um caricaturista português que na altura, salvo erro, trabalhava no Jornal de Angola, tinha como elemento central a figura do Presidente José Eduardo dos Santos directamente associada a outros símbolos como uma mulher, uma viola e uma bola de futebol, numa clara relação de cumplicidade e promiscuidade de acordo a única leitura política possível do mesmo. Foi de facto uma “pedrada no charco” cuja intenção era naturalmente chamar a atenção do Presidente para o que os seus críticos da época achavam não ser o melhor comportamento para o sucessor de Agostinho Neto.

O quadro em causa que nesta altura já deveria estar exposto num museu do MPLA, se este partido tivesse outras preocupações com a conservação e exibição pública do seu acervo histórico, foi a oferta do grupo da sede nacional do partido a José Eduardo dos Santos pelo seu 40º aniversário.

Por seu lado a dita “peça” assumiu a forma de um ou vários jograis, com os seus entusiasmados participantes a recitarem alto e bom som diante de José Eduardo dos Santos textos bastante críticos em relação ao seu desempenho e do governo.

Foi de facto uma noite muito complicada para os rígidos padrões políticos de um regime que se reclamava seguidor da teoria e da praxis marxista-leninista, com o principal “inquilino” do Futungo de Belas, no meio de uma estranha festa de anos entre os seus camaradas, sem perceber muito bem o que lhe estava a acontecer.

Uma das pessoas que esteve presente ao acto recorda-se que terminada a “sessão cultural” e já à saída do Futungo de Belas, nas conversas que foi possível manter, todos manifestavam bastante perplexidade pelo que tinham acabado de ver e ouvir. Alguns, segundo a nossa fonte, perceberam imediatamente que algo de muito grave tinha acontecido naquele 28 de Agosto de 1982. Restava apenas aguardar pelas consequências.

E elas não tardaram muito.

Cerca de três meses depois reuniu-se em Luanda o Comité Central do MPLA-Partido do Trabalho na sua 11ª sessão ordinária que decorreu entre os dias 30 de Novembro e 8 de Dezembro.

Das resoluções finais tornadas públicas, para além do afastamento de Ambrósio Lukoki do Secretariado do Comité Central e do Bureau Político, nada mais transpirou em relação às medidas tomadas contra os militantes da sede nacional que protagonizaram a manifestação de contestação ocorrida no Futungo de Belas.

Coube ao próprio Presidente José Eduardo dos Santos falar em público, dois dias depois, durante as celebrações de mais um aniversário do MPLA, a 10 de Dezembro, da gravidade de que se tinha revestido a “sessão cultural” que marcou o seu aniversário e das duras medidas que em consequência foram adoptadas para penalizar os seus protagonistas.

“ O Comité Central traçou orientações para serem executadas pelo seu Bureau Político e pelo Secretariado e tomou algumas medidas disciplinares para corrigir alguns erros de membros do Partido que utilizaram incorrectamente o direito de crítica e não observaram com rigor os princípios do centralismo democrático previstos nos nossos estatutos”.

Sem se referir explicitamente ao espectacular episódio do seu aniversário, José Eduardo dos Santos não deixou, porém, qualquer dúvida que em causa estavam os militantes da sede nacional do seu partido pela participação que tinham tido no Futungo de Belas.

“Fizeram várias críticas, algumas das quais infundadas e inadmissíveis por terem ultrapassado o foro da crítica, e, aliás, foram feitas fora das células e dos comités, isto é, fora das estruturas do Partido.

Esta é uma atitude incorrecta, que estava a desviar a atenção de alguns membros para contradições secundárias, num momento de grande agressividade do imperialismo em que se exige unidade de pensamento e de acção”.

Estava assim ditada a sentença e traçado destino de todos quantos, há 19 anos atrás, tinham ousado criticar o Chefe diante de sua “majestade” e nos seus domínios particulares, com a agravante de ter sido na data do seu próprio aniversário. Em matéria de ousadia, era efectivamente, demais, para a época.

Em relação às punições, José Eduardo dos Santos limitou-se a anunciar que tinham sido “tomadas medidas enérgicas que serão transmitidas aos comités e às organizações de base pelos canais do Partido”.

A opinião pública pouco mais soube depois deste discurso, do destino que então conheceram os “assanhados” quadros da sede nacional do PT que se envolveram na “crise da peça e do quadro”.

Tratou-se de uma corajosa demonstração de frontalidade crítica que três meses depois viria a custar muito caro aos promotores da iniciativa. Alguns deles até hoje ainda carregam, sobretudo na memória, as marcas das agruras e do ostracismo a que foram sujeitos posteriormente pelo regime, como resultado de tanta ousadia para época.

Pelo que se sabe nenhum deles foi, entretanto, alvo de qualquer violência física ou psicológica mais directa, tão ao gosto dos homens da Disa, na altura já “amansada” em Minse, que tiveram a sua guarda durante algum tempo vários dos “manifestantes”.

Este desenvolvimento posterior seria, aliás, matéria suficiente para um próximo artigo sobre o episódio, caso, naturalmente, as fontes afectas ao processo se disponibilizassem a abrir o seus arquivos quer institucionais como pessoais. Tal possibilidade desde já não se afigura muito fácil de concretizar devido, sobretudo, a cultura do silêncio muito em voga no seio do próprio MPLA, que só agora parece ter apostado numa outra postura mais transparente e dinâmica, no seu relacionamento com a comunicação social, de acordo com recentes declarações do seu antigo porta-voz, Norberto dos Santos (Kwata-Kanawa).

Pelo que se sabe a maior parte dos envolvidos na “crise da peça e do quadro” foram afastados dos cargos que ocupavam no aparelho partidário, alguns deles foram mesmo expulsos das fileiras do PT e outros conheceram ainda os calabouços da segurança de estado. Nenhum deles ao que julgamos saber foi julgado por um tribunal normal.

A crise em causa depois da tragédia do 27 de Maio, acabou por ser o maior choque interno que o “sólido” MPLA conheceu no pós-independência, com todas as consequências que José Eduardo dos Santos soube capitalizar da melhor forma em prol do reforço do seu poder pessoal e da estabilidade do seu mandato, que na altura estava a dar os seus primeiros passos, cerca de três anos depois de ter assumido a liderança nacional.

Alguns analistas são mesmo da opinião que foi a partir desta crise, que Eduardo dos Santos se libertou definitivamente de todos os guardiões do passado “netista” o maior das quais era sem dúvida Lúcio Lara. Outros analistas vão um pouco mais longe ao considerarem que no bastidores da “crise da peça e do quadro” estiveram de facto poderosas forças políticas internas que estavam interessadas em controlar ao máximo os passos do jovem Presidente não permitindo que ele afirmasse totalmente o seu estilo mais pessoal de conduzir os destinos do Partido e do Estado, fazendo-lhe recordar sempre que a substituição de Agostinho Neto “foi necessária mas não era possível”.

Digamos que na história do MPLA, a implantação do chamado “futunguismo” teve inicio na sequência do episódio registado por ocasião do 40º aniversário natalício de Eduardo dos Santos

De algum modo, a “barraca” organizada pelo grupo da sede nacional do MPLA terá justificado, em parte, os primeiros poderes especiais que lhe foram conferidos pela 11ª reunião ordinária do CC do PT, ao que se seguiram um conjunto de actos práticos assumidos por José Eduardo dos Santos visíveis particularmente no afastamento de alguns conhecidos barões do partido do centro do poder.

 

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