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Quarta, 17 Agosto 2016 10:30

Quando as Ordens Superiores passaram a ocupar na "Constituição" um poder arbitrário

Está instalado em Angola aquilo a que poderíamos chamar, sem qualquer tipo de reservas, de caos institucional.

Isto é, assiste-se neste momento à institucionalização do "Quinto Poder", que, de modo discricionário e irrepreensível, atenta contra todos os princípios democráticos consagrados na Constituição do país e universalmente entendidos como sendo a base de qualquer Estado democrático de direito contemporâneo que se preze, de facto, e que tenha como visão a construção de uma sociedade em que a pessoa humana seja o edifício sobre o qual assenta qualquer país.

Por Nok Nogueira | NJ

O "Quinto Poder" em Angola, numa análise incisiva e simplista, equivale à face mais perversa de um certo Estado que, em pleno contexto da afirmação democrática, ou tentativa deste, age ainda com as marcas de um Estado autoritário, movido e patrocinado sobretudo por um sentimento de aquiescência, impunidade e de ausência do primado da lei perante uma espécie de "absolutismo militar", que desrespeita todos os princípios possíveis e imaginários instituídos pelo Estado democrático de direito.

Estamos a falar de um "Quinto Poder" que atropela os superiores interesses decorrentes da implantação da democracia em Angola (não "a que nos foi imposta", que esta interessa apenas às conveniências político-partidárias), mas aquela que resulta de uma conquista e da afirmação dos fundamentos inalienáveis no entendimento doutrinário sobre o princípio da separação de poderes no campo político, que respeita precisamente qualquer um dos poderes clássicos: Executivo, Legislativo e Judicial; e o considerado Quarto Poder, tipificado nos termos doutrinários como o direito de livre expressão, de informar e de ser informado.

Este "Quinto Poder" em Angola tem a "legítima" prerrogativa de sobrepor-se a qualquer um desses poderes clássicos e ao princípio da separação dos mesmos, na medida em que, não só usurpa como deturpa o princípio da convivência democrática ao instituir uma espécie de mecanismo arbitrário de legitimação, que contraria no todo qualquer norma do direito positivo que se apresente diante de si nos termos da lei. Estamos precisamente, no âmbito do exercício deste "Quinto Poder", a falar das Ordens Superiores. Uma figura que passou a substituir os tribunais e todos os outros órgãos do Estado.

As Ordens Superiores passaram a ocupar na "Constituição" do país um poder arbitrário que legitima, se for preciso, a eliminação física de qualquer sujeito de direito que se oponha ao seu cumprimento. As Ordens Superiores passaram a ser o rosto da devassidão dos princípios mais elementares da pseudo-convivência democrática em Angola.

Ou seja, as Ordens Superiores passaram a incorporar o somatório de todos os poderes em UM SÓ e contam, para a sua estrita e devota observância, com as forças da ordem e segurança do país, nomeadamente a Polícia Nacional e as Forças Armadas Angolanas (FAA), e um outro tipo de contingente de forças militares ou paramilitares que, no (in)cumprimento de qualquer missão, apresentam-se como doutos sacerdotes deste princípio normativo do novo "ordenamento jurídico angolano".

Num Estado que leve a sério estas questões - que mexem não só com a sua sobrevivência, mas com o bem essencial que é a vida humana, o direito à vida como consagra a Constituição da República -, hoje estaríamos provavelmente a questionar a natureza dessa arbitrariedade que são as Ordens Superiores, cuja emanação é vinculativamente associado ao Poder Político. Se for o caso, estamos perante um estado de coisas e de sítio em que o poder político se mostra insaciável nos seus apetites de poder pelo poder.

O que se passou na sexta-feira, 5, no Zango 3, onde o Posto de Comando Unificado local procede a demolições grosseiras sem prévio aviso às famílias visadas, é uma demonstração clara de que não há princípio legal nenhum que pare as chamadas Ordens Superiores. Aliás, razão pela qual deputados à Assembleia Nacional (que representam o Poder Legislativo), o provedor de Justiça (que representa o Poder Judicial), órgãos de comunicação (ao serviço do Quarto Poder) tenham sido humilhados por militares que lhes barraram o acesso ao local das demolições, alegando precisamente as ditas Ordens Superiores.

Olhando para o quadro nestes termos faltou ver no local um outro poder, o Executivo, a quem não interessou até aqui fiscalizar o cumprimento de um instrutivo por si mesmo imposto e daí não termos ouvido até agora a reacção ao assassinato de um adolescente de 14 anos por parte do Ministério da Família e Promoção da Mulher, do Instituto Nacional da Criança, e, obviamente, do partido no poder. Em outras paragens democráticas nenhum partido político ficaria indiferente à barbárie do Zango, nem que fosse para lamentar, em nota de imprensa, a morte do menor.

Estranhamente, Angola deverá ser o único país no mundo que detém uma maioria parlamentar que não só entra surda e sai calada do hemiciclo, como, diante dos vários descasos, faz tal qual a avestruz: enterra a cabeça na areia como como lídimo direito de não ver, não ouvir e calar, se for preciso.

É bom que se entenda que a morte de uma criança, aliás, o assassinato bárbaro de uma criança de 14 anos, como é o caso do menino Rufino Marciano António, por parte de forças militares (provado por um vídeo que já é viral nas redes sociais, muito embora já o tivessem tentado eliminar) é a destruição da base sobre a qual assenta a única réstia de esperança de um Estado: as pessoas.

Instituir as chamadas Ordens Superiores em substituição do primado da lei e da Constituição remete o Estado para um estágio de mendicidade moral e legal. É precisamente substituir um Estado pelo outro, neste caso, por um Estado autoritário que, diante dos princípios democráticos, consagrados na Constituição do país, os substitui por um conjunto de arbitrariedades sem qualquer estofo.

Para terminar, é bom que o Estado-Maior General das FAA não tome o povo por ignorante. O seu comunicado em reacção ao assassinato do adolescente, uma semana quase depois, é ordinário e insensível, primeiro, porque mente e, segundo, porque lança o escárnio sobre família enlutada e toma-nos a todos por parvos. Rufino é filho, neto, irmão, sobrinho, amigo de qualquer um de nós.

 

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