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Quarta, 14 Outubro 2015 22:46

O Julgamento Será Inevitavelmente Político – Reginaldo Silva

Depois de em Julho último ter aqui escrito que Angola tinha nas suas cadeias os primeiros presos políticos desta 3ª República iniciada com a com a CRA-2010, todos os factos e actos subsequentes do “processo révu” vieram confirmar plenamente a nossa avaliação inicial, incluindo os prognósticos.

A cereja em cima deste bolo que tem vindo a crescer diariamente é a acusação do MP, cujo texto, que já é do conhecimento público, acabou por retirar do nosso horizonte todas as dúvidas que ainda alimentávamos em relação a consistência deste processo que é efectivamente de intenções.

Em abono da verdade há uma novidade nesta acusação que de facto não constava das nossas contas iniciais que é a possibilidade de dois dos réus virem a ser condenados por falsificação, sendo um de identidade e outro de documentação.

Curiosamente, são no nosso ranking os dois réus mais odiados pelo “establishment” que em principio deverão continuar presos, caso venham a ser condenados pelo crime de falsificação, como tudo leva a crer que vai acontecer.

Todos os outros, incluindo os dois, mesmo que venham a ser condenados pelos “actos preparatórios” previstos no artigo 28 a três anos de cadeia no máximo, deverão em princípio ser soltos pois a lei admite a conversão da pena de reclusão em multa diária.

Esta “novidade” trouxe-nos de volta à memória os contornos nebulosos do “processo Miala”, que também começou com uma cabeluda história de tentativas, golpes e rebeliões, mas acabou com o principal e único suspeito da “trama” a ser condenado apenas por ter cometido um crime ao nível da disciplina militar, por o General se ter recusado a comparecer em parada onde deveria ser despromovido por castigo aplicado pelo Comandante em Chefe.

Chegados a este ponto do processo com todos os atropelos que se conhecem e já com o mesmo (bem ou mal) introduzido em Tribunal, voltamos a não ter muitas dúvidas quanto ao facto do julgamento vir a ser fundamentalmente político, tendo como referência inspiradora mais recente, o que se passou com Marcos Mavungo em Cabinda.

Em toda a acusação feita não conseguimos encontrar um único facto passível de ser considerado crime, para além de supostos planos e intenções, que só mesmo o saco sem fundo que é o conceito não definido na Lei dos Crimes contra a Segurança de Estado de “actos preparatórios” pode acolher e dar o devido tratamento judicial.

O problema mais grave é que o “acto preparatório” está perfeitamente definido no Código Penal em vigor no país, não sendo de uma forma geral considerado crime, a não ser que no decorrer dos preparativos conducentes a uma prática delituosa, os suspeitos tenham incorrido já numa violação provada da lei.

No caso em apreciação seria, por exemplo, no dia do “flagrante delito com mandato de captura”, os policias terem encontrado no local onde os suspeitos se encontravam a discutir política com base num ou dois livros, armas de fogo carregadas e sem a respectiva licença.

Aí sim, teríamos um soberbo flagrante delito, o que daria uma outra densidade/consistência à própria investigação/acusação, como foi o que aconteceu recentemente nos Estados Unidos com o caso dos três rebeldes brancos que acabaram por ser condenados a mais de 10 anos de prisão efectiva por atentarem contra o Estado de Direito.

Embora tenha sido ligeiramente “recauchutada”, a Lei dos Crimes Contra a Segurança de Estado, cuja matriz de 1978 remonta aos tempos mais tenebrosos e violentos do regime de partido único, tem o seu articulado povoado por potenciais conflitos com os direitos e as liberdades fundamentais dos cidadãos, conforme constam da Constituição aprovada em 2010.

Em sede deste tipo de conflito, só mesmo o Tribunal Constitucional pode produzir a necessária jurisprudência para se esclarecer o direito que deve ser aplicado em determinada situação quando ocorrem interpretações divergentes da legislação aplicável.

Num país que se assume como democrático, ter tido reuniões com A ou B; discutir livros sejam eles mais ou menos “golpistas”; pensar no futuro de Angola de forma diferente do “establishment“; elaborar uma lista de um hipotético “Governo de Salvação Nacional” onde pelo que julgo saber até eu consto e logo eu que tenho uma fobia por mandar nos outros, podem ser “actos preparatórios” de tudo e de nada, de acordo com as conveniências de quem faz a avaliação.

O crime dos “actos preparatórios” é um pano imenso que dá para fazer todas as mangas de todos os casacos, é uma verdadeira manta de retalhos que dá para cobrir o que bem entendermos, numa altura em que a independência do poder judicial angolano voltou quase a estaca zero.

Este é para nós o elemento mais preocupante e perturbador da actual conjuntura “que estamos com ela”, pois tudo pode ser feito a coberto do Estado de Direito, bastando para tal que seja emitida uma “Ordem Superior.”

Em abono da verdade, o judicial tem apenas saído dessa estaca para dar umas voltas independentes em situações mais pacíficas, isto é, que não choquem com os interesses fundamentais do actual poder político.

Entramos efectivamente na fase da judicialização da vida política do país, que outras sociedades já conheceram, com a particularidade da nossa obedecer aos ditames do poder político o que não é bem a regra deste fenómeno contemporâneo.

Por Reginaldo Silva

RA

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