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Terça, 20 Janeiro 2015 14:30

Reginaldo Silva: Ser ou não ser Charlie?

Antes de mais e para inicio de prosa é bom que fique claro, até como ponto prévio, que não ser Charlie, não é, necessariamente, ser anti-Charlie, nem pouco mais ou menos, mas também pode ser, como é evidente.

Afinal de contas o célebre “to be or not to be”, segundo alguns interpretes do famoso dramaturgo-filósofo, é exactamente tudo isto e mais alguma coisa, com o  homem a ser por ele magistralmente  “retratado na sua forma mais pura, com suas contradições e desejos, sem nenhuma máscara”.

No caso do signatário e ainda a título de esclarecimento preliminar, não ser Charlie significa que não é necessário sê-lo para estar de acordo com todos quantos acham que a liberdade de expressão é o bem maior a proteger, quando há choques com outros direitos e princípios.

Uma protecção, sobretudo contra os próprios choques, quando estes são assumidos pelo outro lado da barricada como sendo a própria arma de arremesso, para fazerem valer os tais direitos supostamente beliscados pela liberdade de expressão, que é bestial para uns, mas também se pode transformar rapidamente para outros numa grande besta, que é preciso abater a todo o custo.

Com o que se passou agora em Paris, estamos ainda mais convencidos que assim deve ser, que tudo, depois da vida, começa e termina com a liberdade e que só com esta vale a pena estarmos vivos.

Quando não a temos, continua a valer a pena viver desde que lutemos por ela a todo o tempo.

As pessoas que por qualquer motivo são obrigadas a viver em prisão perpétua, talvez percebam melhor a validade deste casamento entre a vida e a liberdade, que de facto não admite o divórcio.

Por outras palavras e por mais que isto nos custe, até do ponto de vista pessoal ou colectivo, é a liberdade de expressão que tem de ser defendida antes de tudo o mais, tendo como bandeira a própria razão de estarmos vivos, pelo que o seu usufruto em circunstância alguma pode pôr em causa a continuidade dos nossos curtos dias por estas paragens mais terrenas.

O problema é que com esta abordagem absoluta também podemos estar a permitir e a defender que outras pessoas menos simpáticas que não pensam como nós- que podem ser barbudos mais bronzeados, mas também podem ser caucasianos com a cabeça bem rapada- usem a liberdade de expressão para ferir/matar, promovendo e incentivando a violência mais física e sanguinária, que está tipificada como sendo crime em quase todo o lado.

Podemos de facto estar diante da situação em que o paciente morre da cura.

Parafraseando a conhecida expressão, é aqui que a “porca da liberdade torce o rabo da polêmica”, num continente onde o maior genocídio, que ainda está bastante fresco, o do Rwanda (1994), teve exactamente origem numa mobilização feita através de uma estação emissora.

Para mim a dita cuja bem poderia ficar na história, como a “rádio dos mil ódios” numa estranha homenagem ao seu nome original, onde os ódios se chamavam colinas e o inflamado locutor até vestia batina, ajoelhava-se e fazia o sinal da cruz, para além de salpicar as pessoas com água benta na hora do sagrado sacramento do baptismo.

Todos estes e outros desafios que se colocam à gestão da liberdade de expressão são neste momento tema para os mais diferentes e acalorados debates, lamentavelmente, por força do massacre dos cartunistas do Charlie Hebdo, cujo perfil editorial,  como sabemos está muito longe de merecer o consenso da opinião publicada, por tudo quanto já nos foi dado a ouvir, ver e ler, desde o New Yorquer até aos nossos comentaristas locais.

Pessoalmente, como já tive a oportunidade de me confessar na minha página do facebook, não morro de amores pelo CH, nem o seu projecto faz parte das minhas referências.

Acho que é sempre possível dizer e desenhar as mesmas coisas sem termos necessidade de violentarmos a consciência e as crenças dos outros, mas também sem sermos nós próprios vítimas da auto-censura, que hoje é o principal recurso das chamadas “ditaduras perfeitas”, também conhecidas por “ditaduras inteligentes”, que são variantes das “democracias de fachada”.

Entendo que todas as religiões, como fenómenos sociais cada vez mais mediatizados, são criticáveis.

Não deve haver tabus, nem excepções.

É tudo uma questão de “savoir-faire” ou de “savoir-dire”.

Afinal de contas, ser civilizado também é ser-se elegante e bem educado.

Mas o problema ainda mais bicudo é que quando deixamos aberta a “possibilidade Ak-47″, seja em que circunstância e sob que pretexto for, incluindo os mais antropológicos/sociológicos/ históricos, estamos a soltar todos os demónios que connosco coabitam, estão bem vivos e só estão a espera de uma oportunidade para exibirem os seus dotes.

Por fim há que também deixar aqui bem claro que os jornalistas são cidadãos como todos os outros e vivem em sociedades regulamentadas por leis.

Os limites e a responsabilidade são fronteiras que não podem ignorar mesmo que o quisessem, por força dos próprios mecanismos coercivos existentes em qualquer Estado de Direito, aos quais competirá sempre em ultima distância dirimir todos os conflitos resultantes da difícil coabitação de direitos e de civilizações.

Para já não me parece haver outra alternativa, se quisermos continuar a viver de forma civilizada, admitindo todas as diferenças e choques.

Para além disso, só vejo o caos…

 

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