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Segunda, 06 Abril 2020 01:11

O diário de um confinado

O Estado de Emergência visa fazer frente à pandemia do novo coronavírus e parece-nos uma decisão bastante acertada, tendo, por isso, merecido o apoio de todos os partidos políticos representados na Assembleia Nacional e dos membros do Conselho da República.

Entre as medidas previstas por este Estado de Emergência, a que mais chama a nossa atenção é o isolamento social que cada um deverá impor a si próprio. Vamos chamar-lhe “confinamento”, situação em que, por motivos de saúde e outros, vivemos há já algum tempo.

A vida em confinamento prolongado é, por si só, uma situação penosa. Revela-se uma ocasião para pormos à prova a nossa capacidade de lidar com situações difíceis.

O ser humano está formatado para viver em sociedade. Embora algumas experiências de isolamento, auto-infligido ou não, revelem ou induzam a melhorias na sua capacidade de se entender a si próprio e ao mundo que o rodeia, viver isolado está longe de ser a melhor opção.

– O País está desde as 00h00 do dia 27 de Março, em Estado de Emergência. Ainda bem que tenho em casa comida, produtos de higiene e limpeza, gasóleo para o gerador, medicamentos de primeiros socorros, ração para as galinhas e para o cachorro.

Vejo a presente situação como algo que tem de ser ultrapassado. Ao longo da sua evolução, a Humanidade tem dado provas de superação, que inspiraram os mais belos escritos. Cada obstáculo transposto - não importa a narrativa escolhida - corresponde a um erro superado.

Hoje, muito se fala nas diferentes formas de divisionismo entre os humanos, seja o racismo, seja a xenofobia, ou o tribalismo, como manifestações de fraqueza do homo sapiens.

Em situações de crise, como esta em que vivemos, as atitudes divisionistas tendem a ser explicadas e algumas forças políticas acabam por retirar daí dividendos, ainda que, para tal, tenham de se armar de discursos contrários ao plasmado na Declaração Universal dos Direitos do Homem.

- Muitas interrogações fazem-se em relação ao futuro. Alterações que vinham acontecendo nas mais diferentes esferas, devido, sobretudo, aos progressos tecno-

lógicos, mostram-se agora quase incontornáveis. A pergunta que mais se faz é se, passada esta crise, que afecta todos os países do Mundo, tanto do ponto de vista social, como económico, as coisas vão continuar como antes. Como evoluirão a Ciência, a Saúde, o Ensino, a Cultura após o Covid-19?

Mudanças são também esperadas nas relações interpessoais. Casais e famílias, já de si afastados pelos mais diferentes motivos, como o emprego e as novas tecnologias de informação e comunicação (TIC), que invadem os lares, levam-nos a questionar como tudo se vai processar doravante.

Quanto temos no bolso?

A economia mundial, já em decréscimo por causa dos diferendos entre as principais potências e organizações monetárias e comerciais internacionais, foi abalada e vai continuar a ressentir-se da pandemia. As contas finais estão por fazer e, numa era de desconfiança generalizada em relação às agências de supervisão, ficamos todos sem saber de facto o valor real de quanto temos no bolso.

A origem das reivindicações do Dia Mundial do Trabalhador tem a ver com os horários de trabalho. A exploração da mão-de-obra era, na altura, tema do dia-a-dia, com os donos das fábricas a defenderem jornadas de trabalho mais longas, na ganância pelo lucro, e os assalariados a lutarem pelo encurtamento destas, para protegerem a sua saúde física e poderem estar mais tempo com as famílias.

O avanço dos modelos de trabalho, nomeadamente da produção em série, e da tecnologia, com destaque para a robótica, chamaram a atenção para a vulnerabilidade dos postos de trabalho, virando a luta dos sindicalistas mais para a manutenção destes nas fábricas e escritórios, muitas vezes sem se observarem as condições em que tal se processava.

Com as cadeias de produção mais entrosadas, os sectores primário, secundário e terciário a falarem uma mesma língua, fortificou-se o sector de serviços e, com as novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), surgem outras teorias à volta da necessidade da presença dos utentes nos locais de emissão de documentos e da realização de transacções financeiras.

Com as novas TIC’s a do-minarem as cadeias de produção e distribuição, quando se fala em veículos “inteligentes”, questionam-se alguns métodos de gestão de recursos humanos, que priorizam a presença dos trabalhadores nas empresas, ainda que durante todo esse tempo o seu desempenho seja baixo ou quase nulo.

Se os pagamentos de emolumentos e demais taxas, assim como a emissão de documentos pode ser feita de maneira remota, por que razão os servidores precisam estar presentes nas repartições? Além de falarem num aumento exponencial dos índices de produtividade com o recurso ao chamado home office, os defensores do teletrabalho apontam para a redução das despesas por parte das empresas e repartições públicas em materiais de higiene e limpeza das instalações, água, electricidade, mobiliário, equipamentos, etc.

- O Covid-19 vai, afinal, acentuar as diferenças entre os gestores e os verdadeiros líderes, partindo-se do princípio que estes têm como prioridade as pessoas. Esta pandemia ultrapassa, de longe, as questões meramente contabilísticas, havendo a necessidade de chamar para a gestão desta crise especialistas de outras ciências humanas.

- A situação de confinamento em que vivemos desperta todos para o desenvolvimento de actividades que noutros momentos passariam por nós sem que delas nos lembrássemos. A nós apeteceu escrever esta espécie de “diário”, tirarmos notas sobre o que nos rodeia. Pelos canais de televisão e estações de rádio, seguimos o que se passa no mundo.

No princípio, anotamos os números de casos e de mortes causadas pelo Covid-19 em todo o Mundo. As estatísticas alteram-se a todo o momento e diferem tanto consoante a fonte, que deixamos de fazê-lo.

Virámos a nossa atenção para alguns líderes mundiais, cuja postura diante da situação é, no mínimo, curiosa. Nesse capítulo, os presidentes dos Estados Unidos, Donald Trump, e do Brasil, Jair Bolsonaro, encabeçam as anotações, sobretudo, pelo facto de estarem a remar contra a maré, a seguirem na contramão do que são as medidas e orientações das autoridades sanitárias dos seus países e dos organismos internacionais.

Trump diz que os EUA não foram feitos para fechar e, a menos que lhe caia a trave em cima, não deixa de forçar a porta. Já Bolsonaro prefere mencionar o seu passado de atleta e militar para minimizar a pandemia, a que chamou de “gripezinha” e “resfriadinho”.

Em casa, não somos os únicos a virar-nos para a escrita. O rapaz que aqui vive tem-nos feito chegar textos, em que fala de assuntos do dia-a-dia. Até agora, são quatro com os seguintes títulos: “A nossa juventude”, “É bom ouvir conselhos”, “Os pneus dos meios de transporte” e “O perfume”.

Infelizmente, ainda não conseguimos dar-lhes forma para serem publicados. Talvez um dia o façamos. Mas, o que importa são as preocupações manifestas e que denotam a inquietação de um jovem para com as questões de cariz filosófico, como o “cheio” e o “vazio”, assim como em relação ao conflito de gerações.

Em “O perfume”, por exemplo, fala-nos de alguém que, na infância, ganhou a alcunha de “Garrafa”. Já lhe dissemos que os perfumes não vêm em garrafas, mas em frascos. Entretanto, é de notar que, indo à procura nas perfumarias, desconseguiu de encontrar um que lhe agradasse e aos próximos. “Garrafa” era único, inigualável. É o que se passa com cada um de nós.

Cada um morre sozinho

- As televisões continuam a passar anúncios de espectáculos que não podem acontecer por irem contra as determinações dos Estados para combater o novo coronavírus. A resposta é que os shows já estavam previstos e a publicidade paga. Mas isso não pode ser considerado publicidade enganosa?

Pelo Mundo, cresce o número de projectos artísticos desenvolvidos com recurso à internet. Músicos e pintores estão na linha da frente. O Mundo agradece.

- Agentes da Polícia e funcionários da Saúde vieram cá ao condomínio buscar um indivíduo que voltou há dias de uma viagem do estrangeiro. Pelo que sabemos, estava em casa em quarentena quando foi pego, mas as autoridades lá saberão as razões pelas quais recorreram a tal atitude mais musculada.

A explicação que se dá para as atitudes de quem viola a quarentena é sempre a mesma: egoísmo. “Morro, mas levo mais alguém comi-go”. Esquecem-se essas pessoas que a Morte é um acto individual e, a menos que acreditemos na reencarnação, cada qual morre absolutamente só, mesmo que a nossa Morte aconteça no meio de uma multidão.

Quando muitos caem à nossa direita e mais à esquerda, sem que o nosso corpo seja tocado, a Bíblia Sagrada é a primeira a ser citada. Mesmo quando se é levado pela Morte, muitas dúvidas se levantam sobre o lugar para onde se vai.

- Parentes e amigos ficam sem saber bem o que fazer quando os seus entes queridos partem. Em situações similares, os serviços fúnebres têm-se revelado dolorosos para os familiares, obrigados a ver os falecidos serem sepultados sem despedida.

As autoridades determinam um máximo de 50 elementos para os funerais de pessoas não provocados pelo Covid-19. As vítimas mortais do novo coronovírus devem ser sepultadas sob comando das autoridades sanitárias.

- Os Jogos Olímpicos de Tóquio, Japão, foram adiados para 23 de Julho devido à pandemia de Covid-19. Longe estamos de se poderem fazer contas sobre o reflexo desta pandemia no Desporto. Campeonatos e provas que mobilizem multidões estão sus-

pensos. Clubes, associações, federações, cadeias de televisão, etc., registam abalos de tesouraria. Mas, uma coisa é certa: no fim desta crise, tudo ficará bem.

- O novo coronavírus chegou ao Mar. Os mercados de peixe em Luanda estão vazios e as peixeiras têm as bancas vazias. As da zunga têm faltado ao serviço. Pudera. Sem o que vender e com o risco de contágio ou de serem abordadas pela Polícia, ficam em casa. Sempre relaxados em casa, alguns maridos ainda estão por perceber o quanto valem essas mulheres.

- À José Saramago, escritor português, Prémio Nobel da Literatura (1998), autor de “Ensaio Sobre a Cegueira (1995), é atribuída a frase “Se podes olhar, vê; se podes ver, repara”. Ao ouvirmos tais palavras repetidas por um locutor de televisão, recomeçamos a ler “Ensaio Sobre a Lucidez” (2004). Ler é a melhor forma que achamos para passar este confinamento.

- Enquanto lavamos as mãos (perdemos a conta de quantas vezes fazemos isso por dia), lembramo-nos de o Velho Adão insistir que estas devem ser lavadas até aos cotovelos. Ele, um homem simples do mar, que só aprendeu a ler e escrever na tropa, mas escrevia versos e cantava fados, enquanto entralhava ou remendava as redes, mencionava que os cirurgiões não são burros nenhuns e por isso usam batas de mangas curtas e fazem sempre isso antes e depois de cada operação.

Ficar em casa tem sempre um quê de nostalgia, mas, recordar alguém que marcou a nossa vida e os seus ensinamentos ajuda a passar o tempo. Pois é: lavar as mãos inclui os antebraços. O aniversário do Velho Adão era a 31 de Março.

Por Osvaldo Gonçalves / JA

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