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Quinta, 29 Agosto 2019 12:22

Tortura e Maus Tratos: O direito de discordar o dever de dizer porquê

O secretário de Estado do Interior disse, na terça-feira, em Luanda, num seminário sobre a matéria, que Angola “está sem registos de tortura e maus tratos”, o que discordo em absoluto, com base no dia-a-dia nacional.

O secretário de Estado, que falava num encontro sobre a Convenção das Nações Unidas, organizado pelo Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos, contra todas as formas de tortura e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, ratificado, este ano, pelo nosso país, ao fazer a declaração não teve em conta a realidade do quotidiano angolano que qualquer cidadão, mesmo o menos atento, conhece. Quanto mais não seja, porque as novas tecnologias de comunicação não deixam ignorá-la.

A criança que tem de percorrer a pé, muitas vezes sozinha e de barriga vazia, quilómetros e quilómetros, sujeita a toda a espécie de perigos, para aprender a ler e a escrever, sentada em lata vazia de leite que nunca provou, ou de uma pedra, não é vítima de violência física e psicológica? A que é obrigada a acompanhar os pais, pastores, no abandono da aldeia natal, na procura de pasto para o gado, sua única forma de sustento, e vê passar por ela outras em viaturas, que custam o que sequer conseguem imaginar, não sofre a violência da desigualdade? E a que deixou de receber merenda escolar a que tem direito, porque sim? E a que vagueia pelas ruas da cidade de mão estendida? O homem esfarrapado e sujo que vasculha os contentores de lixo é bem tratado? E o deficiente físico que não consegue transpor os mil e um obstáculos com que se depara no quotidiano? E a zungueira, com bebé às costas, bacia à cabeça, com o que lhe havia de permitir, à noite, no regresso ao cubíco, dar de comer à família e fica sem nada porque o polícia lhe levou tudo e depois vê a traficante de dinheiro num vão de escadas a receber, de um “moço de recados”, notas de todas as cores, valores e origens, que deviam estar nos bancos e nas casas de câmbio? E as cadeias superlotadas de pilha-galinhas e afins - alguns nem isso -, enquanto os larápios de “colarinho branco”, que se serviram do erário como se fosse cofre particular, se pavoneiam cá dentro e lá fora, de carteiras recheadas de cartões dourados e platinados? E as lágrimas da mãe a escorrerem-lhe pelos sulcos do rosto sofrido, quase carta cartográfica das gretas das terras secas, sem cultivo, por não conseguir alimentar os filhos? E os camponeses a olharem as lavras com a certeza, feita de tantos anos iguais, de saberem não poder comercializar o que semearam porque as vias de acesso a locais onde o deviam fazer são intransitáveis porque criminosamente mal feitas, de forma a sobrar dinheiro para corruptos de profissão? E os lutos causados pelos medicamentos surripiados de estabelecimentos de saúde, por gatunos insensíveis à dor do povo, para serem vendidos na via pública, juntamente, jinguba batata-doce e mandioca, calças e sapatos?

Todos estes exemplos que mencionámos, entre tantos outros que podiam ser apresentados, comprovam que a tortura e os maus tratos, nos seus diversos aspectos, prevalecem, ainda, entre nós. E que o caminho para os derrubar é longo, cheio de obstáculos que é preciso derrubar. Não basta assinar, mesmo ratificar, acordos.

Numa coisa, não a única, estou de acordo com o que o secretário de Estado do Interior disse no seminário de terça-feira, dado a conhecer num despacho da Angop: a vontade do Executivo “assegurar a aplicação dos instrumentos jurídicos internacionais que proíbem a tortura e todas as formas de crueldade e humilhação”. A esmagadora maioria dos angolanos também.

Por Luciano Rocha / JA

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