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Sábado, 13 Janeiro 2024 14:14

“Savimbi era um homem muito forte, muito lúcido, mas tinha um Dark Side”

Depois do sucesso de 'Novembro', o historiador Jaime Nogueira Pinto lança um novo romance, 'Os Passageiros da Sombra', uma história de espiões, que mistura CIA, Guerra Civil em Angola, e também algumas personagens portuguesas de certo modo inspiradas na realidade.

Este seu Os Passageiros da Sombra passa-se na segunda metade da década de 1980, e tem a Guerra Civil em Angola como pano de fundo. Em 1992, na sequência dos acordos entre o MPLA e a UNITA dão-se as eleições que acabam por não trazer a prometida paz, mas percebe-se,no contexto deste romance, que uns bons anos antes já há, entre os angolanos e quem apoia um lado e o outro no conflito, aquela ideia de que o fim da Guerra Fria se aproxima e é preciso um entendimento. Ou seja, percebia-se, e sei que é um estudioso deste tema, que a solução era negociar, que não iria haver um vencedor da Guerra Civil?

Sim, havia a consciência, também, das pessoas que estavam a apoiar de fora, quer americanos, quer soviéticos, de que havia ali um equilíbrio, digamos, e que, portanto, uma vitória militar absoluta, embora estivesse teoricamente nas pretensões, acabaria por ser uma espécie de chacina. Por que havia ali um certo elemento tribal, uma competição entre as pessoas oriundas do Planalto Central, que apoiavam a UNITA, e as das cidades costeiras, que era onde o MPLA tinha a sua grande implantação. E, perante isso, houve sempre a consciência de que, num dado momento, haveria que se trabalhar para um entendimento, para uma solução pacífica. E, claro, como já sei o que houve, que aconteceu isso, talvez até tenha exagerado um bocadinho a presciência de que isso era necessário.

Os Estados Unidos, neste livro omnipresentes através da CIA, apoiavam a UNITA, era o tempo de Ronald Reagan, mas também tinham empresas petrolíferas a trabalhar em território controlado pelo MPLA. E, com os acordos de paz e as eleições vão reconhecer o Governo do MPLA rapidamente…

Vão reconhecer sim. Antes disso, algumas personagens no livro até levantam a questão: por que não uma guerra total? Há aquela figura que eu inventei, aquele dissidente da UNITA que quer fazer atentados bombistas. E um dos atentados que quer fazer é exatamente contra a indústria petrolífera. Mas claro que isto é um romance que foi escrito nos últimos cinco anos, em duas fases, e eu escrevo já com conhecimento do que se passou, coisa que as personagens não podem ter.

Mas que há uma predisposição dos Estados Unidos para se aproximarem ao MPLA é evidente?

É, porque havia muito a ideia de que os quadros estavam ali, embora a UNITA tivesse alguns excelentes quadros médios. E também lá estavam as petrolíferas, que, na altura, era, penso, a Chevron, que tinha ali aquela operação em Cabinda e, portanto, havia um certo relacionamento dos americanos com o MPLA - que eu, aliás, utilizo no livro para justificar alguns contactos através dessas relações que já existiam. Também há uma certa consciência, que as personagens também refletem, de que a partir da mudança na União Soviética, com Mikhail Gorbachev, a URSS vai acabar. Há um livro publicado em 1976, que eu li na época, que é do Emmanuel Todd, La Chute Finale, onde ele explica que um dia isso iria acontecer e porquê... É único na profecia.

Tem no romance uma referência ao livro sem dizer o nome do autor…

Pois tenho. Depois há uma personagem, da Agência, que fala de uma outra personagem, também da Agência, que diz que viajou muito na União Soviética e que os autoclismos nunca funcionavam. Essa história eu ouvi. Era um homem que viajava muito pela União Soviética. Dizia que não acreditava num império onde os autoclismos não funcionavam. Um simples autoclismo. Porque, como o número de partes componentes na indústria cada vez era maior, bastava que falhasse algum, não é? E, de certo modo, o Império Soviético cai por isso. Mas primeiro cai porque Gorbachev não é um homem para manter aquela coisa do medo. Que era fundamental. Ele não está disposto. Vê-se que não é pessoa com temperamento para exercer o terror. E o terror era preciso para que o sistema funcionasse. E depois, de facto, cai também por causa daquela competição tecnológica e económica em que o Gorbachev quer entrar com os Estados Unidos e, portanto, começa por fazer uma liberalização do sistema e acaba por deitar o sistema completamente abaixo.

Fala do terror e como este está na lógica de alguns sistemas. Esse terror também existe na UNITA de Jonas Savimbi, como mostra no seu livro, mas o líder guerrilheiro nunca é nomeado, é sempre chamado de Mike Victor ou...

É Mike Victor, MV ou Mais Velho, exatamente.

Conheceu Savimbi pessoalmente. As personagens descrevem-no como um homem encantador, inteligente, intelectual, bom conversador, mas, ao mesmo tempo, uma figura que podia ser tenebrosa…

…Sim. Tinha um chamado Dark Side. Hoje sabe-se mais sobre isso, sobre o famoso caso da queima das bruxas. E sobre a morte dos dissidentes, e das famílias, que foi, de facto, um golpe forte na imagem dele e do movimento rebelde. Foi um golpe na consciência até de muita gente que o apoiava. O balanço das coisas, no fundo, é um balanço entre razão de Estado e os princípios éticos. A Divisão África, que era quem tinha a operação da CIA em Angola, estava muito, muito apostada em apoiar Savimbi, porque aquilo, na altura, estava a correr bem. E pronto, não olhavam...

Na época, Savimbi era visto como um peão vencedor.

Era, sem dúvida. E era, de facto, uma pessoa com muita força, um homem muito lúcido.

É conhecida a sua relação com Angola. Começou há quantos anos?

Eu não tinha antecedentes de ligação a Angola. Quer dizer, o meu pai era industrial, e talvez em tempos tenha vendido alguns têxteis para Angola, mas, de resto, não tinha nenhuma ligação. Foi na tropa que começou. Porque eu era de uma especialidade chamada Ação Psicológica, em que as mobilizações eram individuais e os mais bem classificados não eram mobilizados. Eu, como toda a minha vida - que nessa altura ainda não era muito longa -, tinha sido um defensor do Ultramar e da Guerra de África, dessas coisas todas, achei que o mínimo que fazia quando chegasse à tropa era ir lá. Portanto, voluntariei-me. Depois, como nunca mais me chamavam, troquei com um camarada meu de curso, que estava mobilizado para Angola, um mês antes do 25 de Abril. E fui para lá logo a seguir. Portanto, apanhei todo aquele período complicado lá e cá. E depois tive um mandado de captura no 28 de Setembro, e vieram aqui prender-me em Lisboa. Mas eu estava na altura em Carmona. Fui para a África do Sul. A Zezinha estava comigo e fui para a África do Sul, fomos os dois. Demorámos uma semana e atravessámos Angola, levados à boleia, porque nós não guiávamos. Atravessámos toda a Angola, desde Carmona, hoje Uíge, até à fronteira e depois passámos para a Namíbia, que na altura era o Sudoeste Africano. Eu tenho isso tudo contado no meu livro Jogos Africanos, está lá.

Na Jamba, bastião da UNITA, esteve várias vezes.

Muitos anos depois sim. A partir dos Anos 1980...

E, nessa relação com Angola, como surge também a sua aproximação ao MPLA?

A partir de uma certa altura, por um conjunto de circunstâncias, e também por essa questão da paz, que se pensou possível com o acordo para as eleições de 1992. Estabeleço, assim, uma relação muito próxima com o general João de Matos.

Chefe de Estado Maior das Forças Armadas de Angola, as FAA, sucessoras das FAPLA.

Exatamente. Lembro-me de que almocei com o João de Matos no dia do 4 de abril, que era o dia dos anos do meu filho, o dia da assinatura da paz angolana. Almoçámos num restaurante em Paço d’Arcos.

Da paz final? Em 2002?

Sim. No 4 de abril, almoçámos nos Arcos, em Paço d’Arcos. E ele já estava fora. Ele foi afastado. E foi substituído pelo general Armando da Cruz Neto. Que é quem assina a paz com a UNITA depois da morte de Savimbi.

Pessoalmente sentiu um choque na morte de Savimbi? Recorda-se daquela forma trágica como foi perseguido no mato e, depois de morto, a ser fotografado com o corpo cravejado de balas, o uniforme ensanguentado?

Sim. Há aí muitas lendas e teorias da conspiração que dizem que foram os americanos, os israelitas. Mas não. Eles, na UNITA, eram um grupo ainda grande, umas centenas, que já estavam em fuga. E as tropas governamentais, das FAA, estavam atrás deles. E acaba morto. Aliás, quem me comunica a morte do doutor Savimbi é o general Nunda. Que depois foi chefe de Estado-Maior.

O general Nunda vem da UNITA, mas, depois do fracasso da paz de 1992, deixa as FALA e fica nas novas FAA, não é?

Exatamente. Porque quando o doutor Savimbi, depois das eleições, quer recomeçar a guerra, Nunda opõe-se. Lembra que já não há apoio dos americanos. E diz que, para recomeçarem, deviam convocar um congresso da UNITA. E o doutor Savimbi não gostou disso. Nunda teve um ataque à casa dele. Estava já no Huambo. Eles já estavam todos no Huambo nesta altura. Ele teve um ataque à casa dele. Que foi repelido pela segurança dele. Os atacantes deixaram algumas baixas. E quando ele foi ver, um dos mortos era alguém muito próximo do próprio doutor Savimbi. Portanto, ele aí percebeu. E depois o doutor Savimbi manda retirar-lhe a segurança. Mas há um sobrinho de Nunda que está nas Comunicações, que o avisa. Naquela altura, o Huambo estava partilhado. Ainda havia um governador do MPLA, do Governo. Ele pede então ajuda e o general João de Matos manda dois helicópteros. Retiram-no, a ele e à família. E vai para Luanda. Há umas tentativas de o porem a falar contra Savimbi e ele recusa-se. E depois o general Ndalu e o general Matos dizem que ele não tem nada que falar contra coisa nenhuma. Pode ficar ali. E chegou mais tarde a chefe do Estado Maior.

Houve essa cooptação dos dissidentes da UNITA, a uma certa altura. Um dos segredos da paz em Angola?

Foi uma medida bastante inteligente do presidente José Eduardo dos Santos. Porque a UNITA tinha muita força. Mesmo quando o doutor Savimbi foi morto em 2002, a UNITA ainda tinha muita força. No Norte, sobretudo, tinha muita tropa. E, portanto, havia ali um perigo, que era uma fragmentação da UNITA. E, se houvesse essa fragmentação, estou convencido de que ainda hoje estariam em guerra. Há muitas guerras dessas em África. Eduardo dos Santos, nisso, fez muita pressão para que não houvesse represálias, que era para, exatamente, eles se entregarem. E foi isso que aconteceu. Houve a rendição do Norte.

Indo agora mais ao romance, que gira em volta da morte misteriosa de um operacional da CIA junto da UNITA. Tem personagens muito interessantes como Hector, um dos espiões-chefes.

Hector é um velho WASP, quer dizer, é um WASP típico, mas com uma mãe russa. Eu também tenho uma preocupação, que já tive, aliás, no Novembro, o meu anterior romance, que é contar a outra história que nunca é contada.

Sentiu necessidade também de pôr no livro um agente da CIA luso-americano, Frank. Da Nova Inglaterra, de mãe açoriana, muito católica.

Sim. Como é uma zona dos Estados Unidos que eu conheço bem, achei graça.

E as figuras femininas? Construir a agente Linda foi mais difícil?

Não, não foi.

Não sente essa diferença de imaginar um homem ou uma mulher?

Não conheci uma Linda, mas conheci várias mulheres que, juntas, podem dar a Linda deste livro. Aquela história dela é que foi completamente inventada por mim. Aquela história dos vários romances dela que acabam por correr mal.

E o português Carlos? O próprio autor serviu de inspiração para criar a personagem?

Carlos é uma personagem que pode ter coisas minhas. O pai do Carlos também tem algumas coisas. O pai do Carlos diz umas brutalidades que são às vezes as minhas. Mas eu sou mais o Carlos do que o pai...

Carlos tem um perfil interessante, pois sendo alguém que sofreu com a perda do império é um pragmático. Aceita a realidade.

É, não, não quer estar morto. É um resistente e é um sobrevivente.

De novo, isso é o autor, não é?

Também sou.

E há outras personagens que parecem inspiradas em alguém que conhecemos. Por exemplo, o falecido jornalista Rúben de Carvalho inspirou-o na criação de um militante comunista que ajuda Carlos a ir a Luanda.

Sim, aparece. Eu dei-me muito bem com o Rúben. Mas vamos lá ver. Não se pode confundir ficção e realidade. A história que eu refiro nunca se passou com o Rúben. O Rúben nem sequer andou na Faculdade Direito.

Mas há características da personagem que são...

Sim, pu-lo no livro, porque o conhecia e, pronto, arranjei as coisas. Mesmo até o enquadramento urbano que eu lhe dei, o sítio onde mora e tudo isso, tudo isso foi pensado... Podia haver assim uma história. Ele enquadrava-se perfeitamente nisso.

E há outras personagens que lembram ao leitor certas figuras públicas.

Sim, pode ser. É uma graça. Dá-se muito o ambiente social através das personagens secundárias ou terciárias, não é? Terciárias naquela situação, naquele momento. É o que o Eça faz com aquelas personagens dele, com o Dâmaso Salcede ou o conselheiro Acácio... Quer dizer, são personagens-tipo de comportamentos sociais...

Ficam mais na memória até do que a personagem principal?

A personagem principal é sempre muito mais complexa. Aliás, a ideologia, se reparar, a técnica, uma boa técnica, de fazer uma pregação ideológica através da ficção, é sempre através de personagens secundárias, pondo as personagens secundárias simpáticas do lado de que o autor gosta. E as personagens secundárias do que ele não gosta, são más. Porque, se faz essa pregação ideológica nas primeiras personagens, o romance é uma chatice. Porque é uma coisa pedagógica, maniqueísta, irreal. Aquelas coisas do realismo socialista, não há paciência.

Quem escreve este livro vê-se também que é alguém que, além de ter uma história de vida longa e bem preenchida, é alguém que lê muito. Percebe-se que lê memórias, mas também há aqui um grande leitor de livros de espionagem, não há?

Sim, eu gosto muito de ler espionagem. Leio muito o Le Carré, o Len Deighton, o Tom Clancy, li o Volkoff e o William F. Buckley também, que são menos conhecidos. Claro que li os clássicos, Conrad, por exemplo. Aliás, faço aí uma longa referência ao Heart of Darkness, que inspirou depois o filme do Coppola, o Apocalipse Now. Portanto, tenho muitas referências de leitura. Depois há outra coisa, eu tenho uma mania muito grande de pôr o Ulisses. Tenho sempre coisas do Ulisses. Acho que é uma personagem fundamental.

Mas a forma natural como faz uso dessa erudição, a referência aos livros, também a filmes ou músicas, é muito bem conseguida.

Talvez, entra naturalmente nas coisas. Eu tenho essa costela de leitor, que agradeço aos meus pais e aos meus tios. Todos me puseram a ler, muito miúdo. E tive sempre gosto pelos clássicos, que li muito cedo e voltei a ler. Claro, o valor dos clássicos é que a gente pode lê-los, relê-los, e tris-lê-los, em idades diferentes, e está sempre a descobrir coisas. Por acaso, nos últimos anos, reli muito Shakespeare e também aparecem ali, muitas vezes, referências, são coisas universais.

Este é o seu segundo romance, depois de Novembro.

Que vai agora ser reeditado. Já tem não sei se quatro ou cinco edições. É um romance que começa no verão de 1973 e acaba precisamente em novembro de 1975.

E que tem também a componente fortemente política presente neste Os passageiros da Sombra.

Tem uma componente política, mas tem uma componente talvez mais pessoal do que este. Escrevi muitos livros, talvez uma vintena. Mas nunca me tinha atrevido, até ao Novembro, a escrever ficção, porque achava que a ficção era uma coisa, uma coisa a que eu não chegava, que ou eram os grandes clássicos, os Dickens, os Balzac, os Stendhal, o Scott Fitzgerald, enfim, todos os grandes escritores; ou então eram os escritores de sucesso, que vendem milhares de livros, mas que a gente lê cinco linhas e aquilo não é literatura. E não me achava nem tão bom como uns, nem tão mau como outros, talvez haja um lugar algures no meio.

Agora que já se atreveu duas vezes, vai haver um terceiro romance?

É capaz de haver, se Deus quiser. Há uma coisa que um dia vou ver se me atrevo a fazer, que é conto. Porque eu tenho na minha vida várias situações muito interessantes para contos, mas não sei se tenho essa arte do conto, que é uma arte mais depurada, mais complicada, porque tem uma exigência de chave, de brevidade, não sei se tenho capacidade. 

Diário de Notícias

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