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Terça, 12 Abril 2016 20:30

Processo dos 17, página negra do Estado de Direito angolano - Marcolino Moco*

Não falemos mais do horror que foram os aspectos de natureza técnico-jurídica do "Processo dos 17", de que alguns juristas angolanos e estrangeiros falaram como muita propriedade, como o foi o caso do advogado Beja Satula, num debate na TV Zimbo ou do doutor em Direito Rui Verde, no blog Maka Angola de Rafael Marques.

Marcolino Moco | AM

O meu espanto (que não é tanto espanto!) vai para juristas que se consideram como tal, que aparecem como uma argumentação de “mobilização de massas”, no sentido, por exemplo, de nos virem dizer que como o Direito não é matemática, pode o juiz o contornar, discricionariamente, a lei, para fazer valer a sua autoridade, como aquela situação em o juiz Domingos Januário, contra uma norma bem clara, mandou os réus para a jaula, mesmo perante o efeito suspensivo e devolutivo de um recurso para o tribunal superior. 

Outros, dentro deste mesmo espírito mobilizador de massas, aconselham os seus ouvintes para que, em vez de se fixarem num processo que, com algum esforço, reconhecem injusto, encham-se de esperança em relação ao recurso para o Tribunal Supremo (TS), numa situação de esperar pelo ovo no ventre da galinha. Como se não tivesse sido este mesmo TS que se recusou a dar provimento a um pedido de habeas corpus, pelas clamorosas ilegalidades no início do kafkiano processo.

Como intelectuais que somos, se não queremos que nos vejam como guiados apenas por induções do poder político, num estado que se alardeia democrático e de direito, não vamos enfiar a cabeça na areia, como o fazem as avestruzes. Temos que reconhecer que o Processo dos 17 é uma das páginas mais negras do nosso Estado de Direito, proclamado em 1991/92, de que se esperava seguimento com o fim da guerra civil, em 2002. 

Porque as reivindicações dos genericamente chamados “revus”, sugiram por motivação política, devido a forma como foi aprovada e ao conteúdo na distribuição dos poderes, da Constituição de 2010, que espelhavam claramente a intenção de eternização no poder de José Eduardo dos Santos, que surpreendeu, inclusive, o grosso do seu próprio partido, o MPLA (uma forma um tanto quanto mais refinada que a de Nguesso ou Nkurunziza do Burundi, mas com os mesmos efeitos). 

Assim como ao seu Ministro do Interior, que nas suas intervenções, não teve pejo em manifestar as claras interferências do Executivo no processo que, na verdade, era mais político do que judicial. A partir deste reconhecimento da verdade, os juristas (juízes, procuradores e advogados) deveriam ganhar coragem para retirar a Justiça da pouca vergonha e vulgarização a que está a ser sujeita, mais do que em qualquer outro país, pelo menos, de língua portuguesa. Por exemplo, não sei se, perante esta segunda-feira tão negra, não era caso para a Ordem dos Advogados de Angola se pronunciar vigorosamente, no âmbito da sua função, nos termos gerais do artigo 193º da Constituição e de acordo com os seus Estatutos (alínea -a, do artigo 3º).

Quanto a Portugal, aparentemente, não é desta vez que os novos governantes portugueses nos surpreendem pela positiva, em relação a uma certa subserviência ao actual regime político angolano, tudo, supostamente, pela tal priorização das relações de ordem material, onde valores outros estão postos de lado. 

Eu continuo a ter muitas dúvidas se este tipo de priorização terá alguma valia colectiva para o presente e sobretudo para o futuro das relações que deverão continuar a ser privilegiadas entre os povos e estados de Angola e Portugal. 

A continuação do apadrinhamento dos negócios exuberantes da filha do presidente de Angola, em Portugal, não me deixa tranquilo, na medida em que continuará a dificultar que Portugal aja com certa independência, em relação a um regime em que em paradoxo com a prosperidade filial do seu longevo Presente, sacrifica a maioria do resto da população (em alguns casos de ascendência lusa) com a maior das misérias e desespero e cuja mínima reclamação é sujeita à maior das brutalidades. 

* Ex-primeiro ministro de Angola e ex-secretário executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa

** Texto adaptado de um artigo no último número do quinzenário AGORA

 

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