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Segunda, 29 Dezembro 2014 14:21

A democracia que nos foi servida em 2014 – Reginaldo Silva

Não se afigura muito fácil fazer em síntese e com aquele mínimo de objectividade, mesmo estando no terreno da opinião, uma avaliação política equilibrada do que foi ano de 2014 em Angola, se quisermos ser mais taxativos entre dois valores opostos, como o bom e o mau, o aceitável e o reprovável, o recomendável e o detestável, ou ainda entre o que devia ser melhor ou pior para a salvaguarda dos próprios interesses nacionais.

É intenção nesta incursão ultrapassarmos de algum modo o exercício que é organizar/hierarquizar os factos mais marcantes no âmbito de uma retrospectiva mais clássica, onde se começa pelos mais impactantes e se vai descendo até ao “fait-divers”.

Sem ignorarmos a importância das “árvores”, concentraremos este flash-back na “floresta”, que foi no conjunto o ano que está praticamente terminado e ainda sem termos em conta o conteúdo da Mensagem de Ano  Novo do  Chefe de Estado e Líder do maioritário.

Na altura em que redigíamos estas linhas a convite do editor-chefe deste semanário, do outro lado da barricada Isaías Samakuva já havia lançado as suas “farpas” por esta ocasião, partilhando com os seus correligionários todas as suas decepções e angustias, pois não conseguimos divisar nas suas palavras nenhuma pontinha de satisfação ou mesmo de esperança.

Samakuva deixou claramente entender que 2014 foi mais um ano para esquecer, tendo em conta a ausência de qualquer tipo de progressos ao ponto, segundo ele, da democracia se ter tornado “numa miragem e a reconciliação nacional uma quimera”.

Eventualmente, a mensagem de José Eduardo dos Santos (JES) pode vir a afectar alguns dos ajuizamentos que aqui se farão, pelo que desde já aqui fica esta salvaguarda, apenas por cautela.

Não acreditamos, contudo, tendo em conta a previsibilidade do discurso político de JES, que este derradeiro pronunciamento possa vir a introduzir alguma alteração mais significativa na valorização da paisagem política de 2014, para efeitos de análise.

Tendo como referência o conteúdo das suas anteriores intervenções quer no âmbito da “Mensagem sobre o Estado da Nação” no Parlamento, quer depois na abertura e encerramento do Vº Congresso Extraordinário do MPLA, não são pois de esperar outras novidades por aí além.

Para JES o país esteve bem e até já se recomenda, numa altura em que todos os protagonistas da vida política e social estão a participar activamente no processo, sem qualquer tipo de problemas.

Em resumo em 2014 as duas principais referências políticas nacionais no mínimo deram-nos a conhecer países diferentes e contraditórios, mas com o mesmo nome e a coabitarem dentro dos mesmos limites geográficos.

Certamente que os dois políticos só podem ter falado da Angola que é de todos nós, porque não vivem num outro país, o que nos desafia enquanto observadores da realidade sem outras preferências ao nível das opções politico-partidárias disponíveis, a fazer um exercício verdadeiramente cirúrgico para tentar chegar ao âmago de uma questão que a todos interessa mas é tratada de forma tão distinta e tão contraditória.

Para este exercício, a “floresta” em causa é o conjunto dos grandes “sinais de fumo” que foram sendo emitidos pelos principais protagonistas da vida política angolana ao longo de 2014.

Esta leitura permite-nos chegar a algumas conclusões sobre as tendências mais reveladoras do estado de saúde actual do nosso processo democrático ou de democratização.

Falamos mais exactamente da qualidade da nossa imberbe democracia e da forma como ela tem vindo a ser encarada por cada um dos cidadãos, não sendo muito difícil de concluir que o balanço do seu desempenho ainda deixa muito a desejar se nos quisermos aproximar dos sentimentos que palpitam na via pública.

Que democracia nos foi servida em 2014?

Trata-se da questão principal desta avaliação anual para sermos mais concretos, já que não é muito aconselhável tentarmos olhar para todos os lados, sob o risco de nos perdermos na sua imensidão e complexidade.

Estamos a falar de um país pós-conflito, mas que já tem cerca de 12 anos de paz militar e dois pleitos eleitorais realizados com relativo sucesso, o que na nossa avaliação deveria ter produzido uma “paisagem mais arejada”  do ponto de vista da consolidação do Estado Democrático de Direito.

Em 2014 e tendo em conta os sinais emitidos sobretudo pelo protagonista mais influente/poderoso da vida política angolana, que é aquele a quem neste âmbito se devem assacar maiores responsabilidades, não se registaram avanços sensíveis ou significativos no que toca à  qualidade da democratização das instituições e da própria coabitação politico-partidária.

Como baliza incontornável desta avaliação, temos a assumpção da diferença e da divergência, com todas as suas consequências, mas sempre num clima plural, de unidade nacional e de respeito/aceitação de quem não pensa como nós, mas não deixa de ter os mesmos direitos de assim agir.

Isto para não falarmos já da questão ainda mais complicada que foi o respeito da própria Constituição (CRA-2010) na vertente dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos.

Entre violências, violações, manipulações e omissões, a fotografia das liberdades continuou a estar muito tremida para os gostos de quem vê nesta “instabilidade sísmica” motivações politicamente pouco saudáveis e justificáveis.

Efectivamente foi-nos dado a observar os pormenores de um retrato bastante sintomático, isto é, ainda mais revelador da verdadeira política que está a ser aplicada pelo Executivo para além das aparências em que gostaríamos de acreditar, mas que cada vez nos iludem mais.

Em termos mais gerais, o evoluir da vida política no país continuou a ser marcado por um excesso de tensão e nervosismo que já não devia em principio ter qualquer correspondência com o anterior potencial que o conflito militar alimentou durante décadas, até que Jonas Savimbi desapareceu definitivamente da cena política em 2002.

Forçada ou não, o problema é que esta correspondência mantém-se e está bem viva, tendo sido utilizada permanentemente como arma de arremesso, sobretudo sempre que o debate político se aproximou da figura do Presidente da República, que em 2014 foi elevado a um patamar quase celestial, a fazer lembrar-nos um pouco o que se passa na Coreia do Norte.

Tal crispação parece-nos ter sido o resultado da implementação de uma certa estratégia de defesa/ataque, numa altura em que o partido no poder mostrou ainda mais claramente a sua intenção de estreitar ao máximo a margem de manobra da oposição, ao mesmo tempo que o Executivo endurecia a sua postura no relacionamento com os sectores mais críticos e independentes da sociedade civil.

Em termos mais mediáticos, o destaque vai, certamente, para o tratamento violento dispensado a todas as tentativas de manifestação dos “revús”.

A justificar toda esta truculência,  a única razão que parece fazer algum sentido, é o receio do efeito multiplicador da bola de neve, que começa sempre bem pequena, tendo como pano de fundo a experiência do que se passou nas “primaveras árabes”.

O conhecimento resultante da informação estatística ao nível das sondagens de opinião, sobre as verdadeiras percentagens da aceitação do Executivo no seio da população, parece ter sido um outro “conselheiro” que esteve na origem desta necessidade imperativa de pelo menos em Luanda se “matar a cobra ainda dentro do ovo”.

Em 2014 ficou ainda mais visível o paradoxo da actuação de um partido que foi oficialmente reeleito em 2012 com uma maioria qualificada, o que lhe daria em principio um maior à vontade e confiança para lidar com a contestação que  não deixa de ser um elemento igualmente estruturante da própria democracia, quando ela é autêntica.

De facto, faz muito pouco sentido (a alimentar conhecidas e recorrentes dúvidas e suspeitas) que com um resultado tão expressivo, se observem em Angola tantos receios com a movimentação pública de minoritárias sensibilidades políticas orgânicas e não orgânicas não controladas pelo actual poder, que não pode ter a pretensão de querer tutelar tudo e todos.

Num contexto em que o principal garante da estabilidade que são as Forças Armadas (unificadas) já não inspira qualquer cuidado, como resultado da consolidação do próprio processo da paz  militar, fica muito difícil perceber quais foram as razões efectivas que levaram que em 2014 o país voltasse a viver debaixo de um estranho e preocupante fogo cruzado de informações (ou desinformações?).

Todas estas informações sobre a existência de alegadas ameaças subversivas e anti-constitucionais, foram produzidas por fontes oficiais com claros propósitos políticos de manipulação da opinião pública e publicada.

A falta de uma melhor avaliação, estamos convencidos que internamente deixou de haver há já algum tempo qualquer força que tenha uma tal capacidade, o que é um dos grandes ganhos da própria paz, senão mesmo o maior.

Em conclusão e do ponto de vista do processo de democratização, o país percorreu os últimos 365 dias ao som de uma “batucada confusa” que não nos convenceu minimamente, se estivermos realmente preocupados com a qualidade da democracia que nos foi servida sem aspas, num país que nunca teve qualquer tradição relacionada com a vivência deste sistema.

Sem aspas, porque embora sabendo que a democracia não é bem um prato de comida que nos é servido, mas sim um processo dinâmico que é edificado com a participação de todos e a vários níveis, em 2014 os angolanos de uma forma geral tiveram muito pouco voto nesta matéria.

Não tendo voto, acabaram por mesmo por ser servidos, por sinal muito mal servidos, por “quem de direito”, que já não pensa como no passado quando “a democracia e os direitos humanos não enchiam a barriga”,  mas mesmo assim ainda entende que uma “boa dieta” também não faz mal a ninguém.

Por Reginaldo Silva

morromaianga.com

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