Os documentos deste processo que decorreu numa secção especial do Tribunal do Comércio dos Países Baixos revelam como foram montados os esquemas que retiraram muitos milhões de euros da Sonangol e quem decidiu o quê num triângulo que incluiu negócios com duas empresas de direito holandês.
Foi neste processo que ficaram vários testemunhos exclusivos como o de Leite da Silva, gravado num hotel do Porto em maio de 2022 por dois investigadores dos Países Baixos – o gestor contou até a forma como foi contratado pela angolana e garantiu que estava inocente de qualquer crime ou delito. Os investigadores não acreditaram
Nos últimos anos tem sido travada uma guerra jurídica nos tribunais cíveis, comerciais e na arbitragem de conflitos dos Países Baixos. Era aqui que estavam registadas várias empresas que fizeram parte do alegado esquema de burla, falsificação e gestão danosa que envolve a angolana Isabel dos Santos, o falecido marido Sindika Dokolo, o gestor português Mário Leite da Silva e outros responsáveis da Sonangol e de várias entidades que estão sob investigação não só nos Países Baixos, mas também em Portugal e Angola.
Na base das investigações holandesas, tanto na justiça cível como nos tribunais comerciais, está a chamada “transação Exem”, um negócio que começou no fim de 2006 e já depois de a companhia estatal angolana Sonangol ter comprado, por 198 milhões de euros e através da Esperaza, uma participação indireta de cerca de 15% na Galp Energia. Na realidade, a Esperaza detinha 45% da Amorim Energia, registada também em Amesterdão, que por sua vez possuía 33,34% do capital da Galp. Mas a 21 de dezembro desse mesmo ano, a Sonangol vendeu 40% das suas ações na Galp à empresa Exem Energy, igualmente sediada nos Países Baixos e controlada por Isabel dos Santos e pelo marido.
“A Exem, através de uma empresa pertencente a Isabel dos Santos nas Ilhas Virgens Britânicas [Exem Africa] ‘pagou’ apenas 15% (cerca de 11 milhões de euros) de um preço de compra não comercial de cerca de €75 milhões pela participação indireta na Galp; a empresa estatal angolana Sonangol acordou com a filha do Presidente que os restantes 85% seriam pagos a partir de dividendos futuros da Esperaza (aos quais a Sonangol, já tinha direito de qualquer forma)”, refere um documento de 15 de julho de 2022 assinado pelo advogado M.J. Drop, que representa nos Países Baixos a Esperaza Holding.
Falida formalmente desde 18 de maio de 2022, a Exem continua a ser um dos alvos de investigações civis, comerciais e criminais em Portugal, Angola e nos Países Baixos
O documento de 138 páginas é, na prática, uma citação judicial de vários suspeitos de participarem num esquema que começou há largos anos, mas que só teve um desenlace mais de uma década depois, em 2017, precisamente quando Isabel dos Santos foi demitida da liderança da Sonangol pelo presidente de Angola João Lourenço. “No período que antecedeu a sua destituição, mas sobretudo imediatamente após a mesma, Isabel dos Santos realizou uma série de operações, sempre ativamente auxiliada por outros réus desta ação, para extrair mais de 130 milhões de dólares [quase 113 milhões de euros ao câmbio atual] da Sonangol e 52,6 milhões de euros da Esperaza”, diz o documento, alertando que a Amorim Energia pagou, entre 2006/2017, 147,4 milhões de euros em dividendos à Esperaza que nunca foram distribuídos à Sonangol e a outros acionistas por influência do clã Dos Santos.
Falida formalmente desde 18 de maio de 2022, a Exem continua a ser um dos alvos de investigações civis, comerciais e criminais em Portugal, Angola e nos Países Baixos - neste último caso no Gabinete de Fraude Grave do Ministério Público (MP) local. A 27 de agosto de 2020, o MP holandês impôs até uma medida cautelar criminal, uma espécie de apreensão ou arresto, sobre as ações que a Exem detinha no capital da Esperaza. De resto, uma boa parte dos documentos das investigações que decorrem nos Países Baixos têm chegado ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), onde decorrem cerca de 20 inquéritos criminais que visam Isabel dos Santos e vários antigos sócios e colaboradores de extrema confiança, incluindo Mário Leite da Silva, que desde há uns anos voltou a concentrar a sua atividade em Portugal, tornando-se administrador de várias empresas de Domingos de Matos, um dos sócios da Altri e também um dos principais acionistas da Medialivre, a dona de órgãos de informação como a CMTV, o Now, o CM, o Record e o Jornal de Negócios. Leite da Silva é até um dos administradores da empresa de media e também é vogal da administração de várias sociedades anónimas criadas em 2024 – como a Servilivre e a Livre One – também presididas pelo empresário Domingos Matos.
O circuito do dinheiro suspeito
Outro documento fundamental para compreender as investigações que decorrem nos Países Baixos é um relatório de investigação sobre a Esperaza Holding BV, de 31 de outubro de 2022, que faz parte de um processo aberto num tribunal especializado em disputas comerciais internacionais, o Tribunal Comercial dos Países Baixos. Neste caso, o inquérito decorreu numa das secções especializadas, a Câmara das Sociedades do Tribunal de Recurso de Amesterdão – a Câmara das Sociedades é composta por um presidente, dois advogados (juízes do tribunal) e dois peritos profissionais.
Com 181 páginas e da autoria de dois peritos nomeados pelo tribunal, Willem Jan Van Andel e Eveline Neele, o relatório menciona e reproduz dezenas de documentos bancários, emails e testemunhos com vista a cumprir o despacho de 17 de setembro de 2020 das autoridades holandesas que, a pedido da Sonangol e da Esperaza, ordenaram uma investigação aos já citados negócios e relações perigosas da Esperaza. Apesar de várias tentativas, os peritos não conseguiram obter e gravar o testemunho de Isabel dos Santos, mas fizeram-no com, por exemplo, Mário Leite da Silva e o antigo CFO [administrador Financeiro] da Sonangol Sarju Raikundalia, tendo-se deslocado a Portugal para inquirir estes dois antigos colaboradores da filha do ex-presidente José Eduardo dos Santos.
Foram de resto estes especialistas holandeses que, com base em inúmeros documentos e testemunhos, reconstituíram o que se terá passado nas horas em que foram tomadas as decisões de transferir muitos milhões da Esperaza para a Exem Energy, bem como outras movimentações financeiras, apressadas e igualmente com cifras elevadas, ocorridas imediatamente após Isabel dos Santos ter sido demitida em novembro de 2017 do cargo de presidente da Sonangol. No relatório a que acedemos, e que já é do conhecimento do MP português e da Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC) da Polícia Judiciária (PJ), constam declarações como esta: “Este email confirma mais uma vez que se tratou de um enorme trabalho apressado – ‘estão à espera que isto seja assinado’ e ‘uma vez que não teremos tempo de pedir a um consultor fiscal’. A questão do porquê de tudo isto ter de ser feito com vapor e água a ferver – quando estas eram decisões importantes – não é levantada por ninguém no contacto por email”, referiram os investigadores, que deram pouca importância às justificações do advogado Jorge Brito Pereira quando este justificou que a questão do pagamento dos dividendos da Esperaza já se arrastava desde 2014.
“Se sou informado de que dois acionistas [Sonangol e Esperaza] tomaram uma decisão e me instruem para acelerar tudo, é o que eu faço”, disse o advogado quando testemunhou na sede do próprio escritório de Lisboa e perante o perito Van Andel, a 31 de maio de 2022, acrescentando que “seria a última pessoa a perguntar” ao seu cliente “a razão da urgência, a menos que houvesse uma razão para suspeitar que algo estranho estava a acontecer (e não foi esse o caso, como vos expliquei)”.
Com base em vários documentos e sobretudo num email obtido, os investigadores dos Países Baixos garantiram no relatório que “qualquer decisão” sobre o dividendo de 131,5 milhões de euros transferido para a Sonangol e para a Exem de Isabel dos Santos “não foi tomada a 14 de novembro de 2017, mas antes na (tarde) noite de 15 de novembro de 2017, muitas horas depois de Isabel dos Santos (e Sarju Raikundalia e Manuel Lemos) terem sido demitidos de administradores da Sonangol”. Ao longo de vários meses de investigação, Van Andel e Eveline Neele conduziram sempre o caso no sentido de verificarem quando foram dadas e executadas as ordens de pagamento e por quem. Em causa estavam várias transferências de muitos milhões de dólares efetuadas das contas da Sonangol para empresas controladas por Isabel dos Santos e pelo marido.
Num dos casos, quase 38,2 milhões de dólares (33 milhões de euros) foram transferidos, alegadamente por ordem de Isabel dos Santos e Sarju Raikundalia, da conta do Eurobic/Sonangol para a conta Emirates NBD/Matter Business Solutions (empresa com sede no Dubai). “Das horas em que os emails foram enviados (às 18h01 e às 20h43 de 15 de novembro de 2017), parece que a ordem de pagamento foi dada – e o pagamento efetuado – muitas horas depois de Isabel dos Santos ter sido despedida como presidente da Administração da Sonangol (e Raikundalia como CFO)”, especifica o relatório.
Na altura dos pagamentos, a empresária Paula Oliveira e Mário Leite da Silva eram os diretores da Matter, mas a mulher era o único acionista da empresa registada no Dubai poucos meses antes, a 1 de fevereiro de 2017, conforme os dados oficiais da DMCC, a autoridade do registo de empresas nos Emirados Árabes Unidos. De resto, foram estes dois diretores da Matter que remeteram para a Sonangol Ltd., uma subsidiária inglesa da Sonangol, 40 faturas datadas de 2 de novembro de 2017 – 36 com um total de 23,55 milhões de euros e quatro com 1,14 milhões de dólares (hoje, 991 mil euros). Depois, a 15 de novembro, seguiram mais 15 faturas: 12 com um total de 6,25 milhões de euros e três com mais 2,03 milhões de dólares (1,8 milhões de euros). Destaque ainda para mais oito faturas, enviadas a 16 desse mês, mas datadas de 14 de novembro de 2017, com um total de 19,65 milhões de dólares (17,1 milhões de euros).
Condenados por má gestão
Antes de o relatório estar pronto, e instado a comentar algumas das pré-conclusões, Mário Leite da Silva reconheceu que emitiu 143 faturas à Sonangol, a maioria das quais antes da assinatura do acordo entre a Matter e a Sonangol, justificando que a implementação do projeto de reestruturação da Sonangol fora aprovada em março de 2017 pela direção da empresa com efeitos a partir de junho de 2016. “Este comentário não retira o facto de ser altamente invulgar que um acordo com um terceiro ‘genuíno’ noutra parte do mundo (Dubai), no valor de muitos milhões de euros, seja concluído oralmente e só seja posto por escrito muito tempo depois e quando muitos milhões já foram pagos. Este curso dos acontecimentos cria, no mínimo, a aparência de que a Matter não era um terceiro real, mas um terceiro controlado por Isabel dos Santos, o que torna a aparente amizade entre Dos Santos e Paula Oliveira ainda mais grave”, concluíram depois os investigadores
Para Van Andel, Eveline Neele, após ter sido despedida às 13h do dia 15 de novembro de 2017, Isabel dos Santos montou uma operação em colaboração com Leite da Silva, Sarju Raikundalia, Brito Pereira, Manuel Lemos e um alto quadro do Eurobic (Nuno Ribeiro da Cunha, que depois se suicidou em Lisboa), tendo conseguido que em dois dias fossem feitas transferências num total de cerca de 129 milhões de dólares (112 milhões de euros hoje), dinheiro retirado da Sonangol e transferido para empresas controladas por Isabel dos Santos e pelo marido.
Por isso, o relatório holandês considerou que as decisões alegadamente tomadas por Isabel dos Santos e os seus homens de confiança foram nulas, até porque houve casos em que aconteceram de forma retroativa. Como sucedeu com a resolução de pagar quase 132 milhões de euros em dividendos. “Numerosas pessoas (jurídicas) cooperaram neste curso desconcertante dos acontecimentos, o que resultou em que Dos Santos tenha obtido de forma fraudulenta acesso a €52,6 milhões de fundos da Esperaza”, concluiu Van Andel, o perito principal.
Mais de um ano depois deste relatório, a 15 de junho de 2023, o Tribunal de Recurso de Amesterdão ratificou boa parte das conclusões do documento e condenou uma série de responsáveis pela “má gestão” da Esperaza Holding BV, nomeadamente Isabel dos Santos, Mário Leite da Silva, Sarju Raikundalia, entre outros. Na decisão de 44 páginas a que acedemos, o tribunal justificou que os documentos que os investigadores conseguiram, incluindo mensagens de correio eletrónico, não deixavam dúvidas de que existiu “má gestão” da Esperaza devido a diversos estratagemas montados para esse fim. “Assim, Isabel dos Santos, com a colaboração de Raikundalia, Manuel Lemos [que morreu em março de 2023], Mário Leite da Silva, Konema Mwenenge [sócio e amigo de infância de Sindika Dokolo] e Robert Van Lier [advogado nos Países Baixos], e usando decisões falsas, porque retroativas e incorretas, enriqueceu à custa da Esperaza (e/ou da Sonangol) ao mandar pagar à Exem um montante de 52,6 milhões de euros em dividendos, sem estar autorizada a fazê-lo”, refere a decisão.
"Isabel dos Santos, com a colaboração de Raikundalia, Manuel Lemos, Mário Leite da Silva, Konema Mwenenge e Robert Van Lier, e usando decisões falsas, porque retroativas e incorretas, enriqueceu à custa da Esperaza (e/ou da Sonangol) ao mandar pagar à Exem um montante de 52,6 milhões de euros em dividendos, sem estar autorizada a fazê-lo”. Excerto da decisão do tribunal dos Países Baixos
Sobre a atuação de Mário Leite da Silva e as justificações de que nada de ilegal tinha feito e que se tinha limitado a cumprir ordens, o tribunal destacou que o gestor tinha a obrigação de saber que estava a participar em vários atos nulos ou ilegais, mas que ainda assim “participou conscientemente na ocultação” de vários documentos que “tentaram criar a aparência, contrária à verdade, de que a tomada de decisão e a ordem de pagamento” tinham tido lugar antes da destituição de Isabel dos Santos de administradora da Sonangol. “Mário Leite da Silva também participou conscientemente no projeto de Isabel dos Santos”, com a sentença a acrescentar que o gestor deu instruções a advogados – por exemplo, a Brito Pereira, que não foi condenado neste processo – para prepararem com urgência decisões jurídicas e ainda assinou deliberações como diretor da Esperaza para se proceder ao pagamento de dividendos à Exem”. Finalmente, a sentença do tribunal deu como provado que o gestor português esteve diretamente envolvido no acordo de pagamento da Sonangol à Exem e que tratou das diretrizes que seguiram para os bancos agilizarem e pagarem avultadas quantias.
Na decisão final, o tribunal destacou que até os custos da investigação teriam de ser pagos solidariamente pelos condenados no processo: um total de 181.500 euros, fora os juros que começariam a contar duas semanas após a data da decisão, ou seja, após o final de junho de 2023. Segundo várias fontes judiciais contactadas e que solicitaram o anonimato, esta decisão abre a porta a futuras decisões judiciais de avultadas indemnizações que também já estão em curso nos tribunais dos Países Baixos, mas o processo do Tribunal de Recurso de Amesterdão é também muito importante porque contém um conjunto de documentos inéditos e vários testemunhos exclusivos como o de Mário Leite da Silva, o antigo conselheiro e homem de confiança de Isabel dos Santos. O gestor falou durante cerca de cinco horas e começou por se focar na forma como foi contratado e começou a trabalhar com o Isabel e Sindika Dokolo.
Este artigo é o primeiro da investigação exclusiva sobre as revelações de Mário Leite da Silva, o homem de confiança de Isabel dos Santos. Acompanhe os outros textos nos próximos dias CNN Portugal