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Sábado, 04 Abril 2020 21:19

Covid-19: Angolanos sabem proteger-se do coronavírus mas pedem proteção da fome

A covid-19 já entrou no vocabulário dos “musseques” de Luanda, onde os habitantes sabem como se proteger, mas temem os efeitos do estado de emergência que os proíbe de biscates e pequenas vendas que lhes garantem a sobrevivência diária.

Nos bairros de autoconstrução e ruas apertadas, esburacadas e poeirentas amontoam-se milhões de luandenses, informados sobre a melhor maneira de se defenderem do novo coronavírus, mas com poucos meios para o fazer, mais não seja porque a água não chega a todas as casas.

Com a entrada em vigor, na sexta-feira, do estado de emergência, que vai restringir a circulação de pessoas durante pelo menos 15 dias, as preocupações crescem. Se não tiverem o que vender, muitos também não vão ter o que comer.

“A nossa preocupação aqui não é bem o coronavírus, nós conseguimos nos proteger e estar nas nossas casas sem sair, mas o povo daqui depende da comida comprando pelo quilo: a pessoa trabalhou hoje e compra o quilo de arroz hoje. Estar a dar 15 dias à pessoa que depende do quilo, do hoje para amanhã, fica como?”, questiona Paulino Agostinho, morador no Catinton.

Aqui faltam água e desinfetantes para prevenir a epidemia, mas sobretudo a possibilidade, para quem depende de uma subsistência diária de alguns kwanzas, de ficar confinado em casa 15 dias.

“Vamos ficar no quintal? Não tem comida, não tem água, não tem desinfetante, ninguém pode sair para o mercado. Eu não vou aceitar, se tenho fome, ficar trancado em casa”, desafia o morador, sublinhando que “a fome” é que vai complicar, porque “todo mundo depende do biscato”.

O vizinho José Oliveira concorda: “Nós podemos ficar em casa 15 dias sem problema nenhum, mas o maior problema é a alimentação, a água. O bidon está a 100 kwanzas (17 cêntimos), vamos fazer o quê? Eu faço biscato, compro umas coisinhas para poder revender. É complicado”.

Maria Sebastião, “zungueira” (vendedora ambulante), junta-se para dizer que precisa de sair do bairro para “comprar negócio para ‘zungar’” e adquirir “um quilo de arroz”.

“Esses 15 dias, nós não vamos aguentar. Não vamos conseguir nos proteger, porque a fome é demais”, desabafa.

Todos se mostram preocupados com a doença, o que significa que a mensagem transmitida incessantemente nas televisões e rádios angolanas, e pelas autoridades de saúde que se deslocam aos bairros, está a ser bem acolhida.

Incluindo por crianças como Josemar e Valdemar, que repetem o que a mãe lhe ensinou: “Devemos levar as mãos com água, sabão e lixívia”.

O mesmo diz José Manuel, “músico do bairro do Catinton”, junto à entrada caótica e atapetada de lixo do Mercado 1.º de Agosto, atravessada por uma maré incessante e ruidosa de carros que buzinam, “roboteiros” que levam cargas nos carrinhos de mão e “zungueiras” que circulam em todas as direções, trazendo e levando mercadorias.

“Estamos assustados com essa doença, queremos usar as máscaras, lavar as mãos com água e sabão e lixívia”, mas a “água aqui no bairro está difícil”, afirma à Lusa, enquanto outros transeuntes se juntam à volta, tentando fazer ouvir a voz e as queixas.

A “zungueira” Ana Garcia também “lava a mão com água e sabão” quando pode, mas não vai conseguir parar de vender: “Não tenho nada na minha casa. Se parar de vir vender as minhas crianças vão morrer com fome”.

Numa pequena loja de costura, Esperança João afadiga-se a despachar o seu novo “bestseller”: máscaras de pano.

“Compramos alguns panos e elásticos para fazer esse tipo de máscaras e facilitar às pessoas que não tem dinheiro para dar 400 kwanzas. Então fizemos máscaras de 100, 200 e 300 kwanzas. Estamos a vender muitas, sobretudo as de 100 kwanzas porque queremos ajudar as pessoas”, salienta.

Mas, na sexta-feira, tudo pode mudar: “Ouvimos na rádio que temos de ficar em casa e estamos muito preocupados. É daqui que conseguimos o pão de cada dia para os nossos filhos. Estamos muito preocupados e tristes, sabemos que a doença está a afetar todo o país, mas ficar em casa… não vejo solução”, desabafa, confiando na “oração”.

Uma das clientes das coloridas máscaras é Sheila, moradora no Povoado, mais conhecido como Areia Branca, bairro insalubre que ganhou atenção mediática devido ao escândalo “Luanda Leaks” quando se soube que os seus habitantes tinham sido vítimas de despejo por causa de um projeto megalómano da empresária Isabel dos Santos que nunca avançou.

Carregando um saco de limões para “juntar com água fervida e fazer um sumo para combater os vírus”, Sheila lamenta-se: “Dizem que temos de usar água e sabão, agora eu pergunto: as pessoas que não têm água, como é que fica? Se ninguém pode sair fora, como é que ficar? Vai ser difícil ninguém sair fora nem para vender”.

João Alferes Kingimbo sabe que o “vírus é altamente agressivo” e destaca que devem ser tomados todos os cuidados preventivos para conter a covid-19.

“Aqui no bairro temos as mínimas condições, temos água canalizada”, diz, mostrando a água, sabão e lixívia com que higieniza as mãos frequentemente.

Kingimbo afirma ainda que as pessoas mais informadas “fazem passar a mensagem às restantes” e sabe que a partir de sexta-feira vai haver “uma paragem total de toda a movimentação”.

Mas acha, como muitos dos outros moradores, que as pessoas tiveram pouco tempo para se prepararem para o estado de emergência, declarado pelo Presidente da República, João Lourenço, na quarta-feira.

“Hoje é quinta-feira, acho que é pouco tempo para as pessoas serem devidamente informadas. Devia-se antecipar a informação para que todos estivessem em condições para estarem preparados para entrar nesse estado de emergência”.

O estado de emergência pressupõe a suspensão parcial de alguns direitos, incluindo de residência, circulação e migração para qualquer parte do território nacional e outras restrições que as autoridades julguem necessárias para se reduzir o risco de contágio por circulação comunitária.

As medidas podem incluir "confinamento compulsivo” em domicílio próprio ou estabelecimento de saúde e interdição das deslocações e permanência na via pública, que não sejam justificadas, por exemplo no exercício de atividades profissionais, assistência médica ou abastecimento de bens.

O novo coronavírus, responsável pela pandemia da covid-19, já infetou mais 480 mil pessoas em todo o mundo, das quais morreram perto de 22.000.

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