Membro do MPLA há mais de 50 anos, Fragata diz que se houvesse autarquias, as províncias de Luanda, Cabinda e Zaire seriam governadas pela UNITA, a julgar pelos resultados das eleições de 2022.
O MPLA tem agendado, para a próxima semana, a realização do VIII Congresso Extraordinário. O que espera desse evento?
Com toda a sinceridade, não espero nada, porque os congressos extraordinários estatutariamente não podem aprovar documentos. Os congressos extraordinários são para submeter ao congresso ordinário, por exemplo, as teses sobre isso e aquilo, que serão aprovadas em congresso ordinário.
O congresso ordinário, vamos lá dizer, é o órgão de soberania do partido. Lá é que se aprovam os documentos que forem submetidos à aprovação.
Um congresso extraordinário é convocado para analisar documentos, analisar se os estatutos precisam de ser modificados e em que alíneas e artigos para submeter isso tudo a um congresso ordinário.
Portanto, se nós não violarmos os estatutos do partido - espero bem que não se violem os estatutos do partido - eu, pessoalmente, não posso esperar nada em relação a isso, a não ser para estes assuntos que eu mencionei. O congresso extraordinário não tem, estatutariamente, a possibilidade de mudar, seja o que for, em relação aos estatutos do partido.
António Venâncio impugnou as deliberações do Comité Central para a realização do Congresso Extraordinário. Que comentários tem a fazer?
Dou razão a António Venâncio, porque um congresso extraordinário não tem, estatutariamente, essa possibilidade. Se ele achar que deve impugnar, ele certamente sabe como se movimentar. Não era preciso chegar a esse extremo. Temos de levar em consideração a sociedade em que vivemos e as transformações que ocorrem. A geração dos novos militantes do MPLA já não é a minha geração: "comeram-me a carne, chupem-me os ossos". É uma geração nova, que já não conheceu a guerra.
São pessoas que, efectivamente, têm dificuldades enormes ao nível da saúde, emprego e habitação. Nós devemos analisar isso e temos aqui um bom exemplo que devemos copiar, que são os vizinhos do Índico.
Se não houver cabeças pensantes no seio da FRELIMO, Moçambique poderá ir para uma guerra civil, sobretudo se virmos os problemas que existem no Norte, onde o Estado islâmico está instalado. Em Moçambique, mais de 50% da população são islâmicas, não é como em Angola, onde a maioria é católica. O Islão é uma religião que se está a instalar agora em Angola e para a qual também devemos estar em alerta. Devemos ter cuidado com a penetração do Islão aqui. Não estou a dizer que o Islão não possa existir, nós somos um Estado laico, mas devemos proteger-nos, logicamente.
Mas, para a situação não se resvalar no que se passa em Moçambique, em Angola o que deve ser acautelado?
Não creio que haja possibilidade de acontecer o que se passa em Moçambique. Nós conhecemos muitas guerras, foi muito sangue que verteu nesta terra, para que nós estejamos aqui em paz a tentar desenvolver o nosso País da melhor maneira possível.
Portanto, eu não vejo isso. Agora, temos de olhar para todo um voto eleitoral. E aqui não estou a dizer partidário, estou a dizer eleitoral, que existem de duas, três gerações que, se não nos acautelarmos, poderemos ter um problema sério. São gerações que passam fome, que não têm emprego nem assistência médica. Essa gente, logicamente, nem que seja por "raiva", irá votar não no MPLA.
Em Angola, o Islamismo já começa a ser um problema?
Não, ainda não. Mas eu não sei se a gente poderá lutar contra isso, porque o Islão vai ser a religião do mundo, só para não dizer que já é. Você olha para a África a partir do Gabão para cima é tudo islâmico. Até a Argélia, tudo islâmico. Tirando parte da Nigéria, por isso também tem um grande problema, o resto do Senegal também, o resto é tudo islâmico.
Você olha para o Índico, é tudo islâmico até o Egipto. Então, o que dizer? Aqui ainda não está preocupante, mas nós devemos olhar para essa situação.
Como acha que o MPLA devia prevenir-se de uma situação semelhante a de Moçambique?
Eu não vejo a situação de Moçambique a reproduzir-se aqui por todos os motivos e mais um. Moçambique tem outra realidade política.
Angola só tem que olhar para isso como um sinal de alerta para ver o que é que está a correr mal, para não correr o mal aqui também, mas, nesse assunto, não estou minimamente preocupado, digo-lhe com toda a sinceridade.
Agora, estou seguro de que os nossos dirigentes estão a olhar para isso com a devida atenção, quando a casa do vizinho arde, molha a tua imediatamente.
As últimas eleições realizadas em Angola foram um aviso à navegação?
Se tivéssemos autarquias, hoje Luanda estaria a a ser governada pela UNITA, Zaire estaria a ser governada pela UNITA, Cabinda estaria a ser governada pela UNITA, portanto, as três principais praças económicas do País estaria a ser governadas pela UNITA.
Isto é um sinal também, para o qual, certamente, os pensólogos e os ideólogos do MPLA já se terão debruçado e estarão alerta. Não vejo ninguém lá em cima na estrutura superior levar isso assim de ânimo leve.
Será que o MPLA evita as autarquias por medo de partilha da administração local?
Este é um problema antiquíssimo, esse problema das autarquias. O MPLA sempre foi encontrando esta desculpa, outra desculpa A, B, C, D, porque sabe que é dentro das autarquias em que está o risco de perder o poder ao nível dos municípios, etc.
Se o MPLA tem os mecanismos que lhe permitem ir adiando, é lógico que vai usar esses mecanismos, mas o que conta é, efectivamente, o resultado final. Pode adiar por cinco anos, 10 anos, mas eventualmente não vai poder adiar mais. Nestas coisas, temos de ter muito cuidado. Houve um partido no México, o PRI, Partido Revolucionário Institucional, que governou 76 anos, no dia em que os mexicanos se fartaram dele, desapareceu. Hoje já não existe.
O MPLA pode correr este risco?
Claro, de poder, de facto, haver uma impulsão dentro do MPLA.
Espero bem que não. Eu sou do MPLA, não vou desejar mal ao meu partido, mas também tenho de ser crítico e analítico. O MPLA está no poder desde a Independência. Já viu que isso é um desgaste enorme de imagem?
Teoricamente, essa possibilidade pode existir. Se nós formos a ver os países da CPLP, em Cabo Verde saiu o PAICV, está agora o MpD, e o País está com uma pujança enorme. Ninguém morreu, Cabo Verde não desapareceu.
No Ghana acabamos de ver um exemplo bonito em que o Presidente derrotado reconheceu a derrota antes mesmo do anúncio. São as excepções que confirmam a regra.
Eu estou seguro de que os cérebros dentro do MPLA, os ideólogos, os pensólogos estão alertas, porque deve haver, certamente, uma área de sensibilidade, área que busca opinião pública.
Se nós formos buscar opinião pública, veremos que a grande maioria do povo hoje está contra o MPLA. Isso é uma coisa que é sentida na rua.
Hoje, a constatação contra o MPLA é sentida nas ruas. Quem puser uma camisola do MPLA no bairro é maltratado, é agredido. Hoje, as camisolas do MPLA só são usadas nos acontecimentos do MPLA dentro dos comités.
Uma pessoa sai hoje com uma camisola do MPLA na rua é agredida.
Até ao momento há apenas um militante que anunciou concorrer à liderança do MPLA, já a pensar no Congresso Ordinário de 2026. Certamente que haverá outros, mas evitam pronunciar-se por enquanto. O que isso significa, medo, receio?
É não pôr a carroça à frente dos bois. Não é medo nem receio.Há tempo.
As candidaturas particulares vão ser permitidas. Então, você não tem que mostrar já as suas cartas. Mesmo não mostrando as cartas, já há perseguições. A gente do Higino já está ser perseguida, portanto, não é por aí, quando chegar a altura, então é que você vai pôr os trunfos na mesa.
Fala com tanta abertura e franqueza, não tem receio de que possa sofrer alguma represália?
Que represália?! Vão-me tirar os 23.400 kwanzas que me dão como antigo combatente?
É que não é comum um membro do MPLA falar assim com tanta abertura...
Aí é que está o problema. Os membros do MPLA deviam falar assim, e o nosso partido estaria saudável, forte, coeso.
Eu não tenho nada a perder. Falo o que eu vivo, a realidade do meu partido. Entrei no MPLA em 1971. No dia 21 deste mês, vou fazer 53 anos de MPLA. Simplesmente estou a falar aquilo que diria, 99,9 por cento dos militantes do MPLA pensam, só que não têm coragem de dizer.
Nós temos um Comité Central com pelo menos 700 pessoas. Porquê? Numa reunião, se um falar um minuto, são pelo menos 4, 5 horas, se houver uma resposta, no mínimo são mais 10 horas, teoricamente.
Miúdas de 18 anos num Comité Central!... Eu entrei para o Comité Central depois de ter galgado todos os degraus, a partir de baixo. Tinha 40 anos.
O que é que um miúdo de 18 anos conhece da vida, para não dizer já do MPLA , da vida para estar num Comité Central? Essa miudagem toda está lá para fazer número, para fazer contagem, para fazer levantar a mão.
Mas acha que é propositado?
Claro que é propositado? Você sabe quantos membros têm o Comité Central do maior partido do mundo, o Partido Comunista Chinês, que tem para cima de um milhão de membros? Tem 220 membros. São 220 cabeças chinesas a pensar China.
Olhando para o País às portas dos 50 anos da proclamação da Independência, o que lhe ocorre?
Temos tudo para ser um Dubai de África. Já fomos do primeiro ao quarto produtor de quase tudo a nível mundial, do café, de farinha de peixe, etc. O petróleo vinha em quinto lugar.
Temos a maior bacia hidrográfica de África. Rio é coisa que não falta. Aqui em Luanda temos três rios, mas falta água nas casas das pessoas, portanto, é complicado.
Quem tem que olhar para isto não sou eu, quem tem que olhar para isto é o nosso ‘pai grande’, como Presidente da República e presidente do partido, e depois aqueles que se dizem serem seus auxiliares, esses também têm que olhar para isso.
Este País poderia ser enorme. No tempo da outra senhora, toda esta África aqui ao lado comia daqui. Hoje estamos a importar milho da Zâmbia. O Planalto Central era só milho e com milho vinham os derivados, a fuba, etc... Temos de reverter isso tudo, temos de ir outra vez, a estas grandes possibilidades que Angola tem.
A Namíbia não tem rios, mas não falta água nas torneiras a qualquer hora do dia e da noite, e é água do Cunene. Nós aqui com três rios, aqui à volta de Luanda, a maior parte de Luanda não tem água. Quando uma pessoa fala, quando um cidadão fala, quando um militante fala, não é porque está a apontar o dedo, está simplesmente a relatar aquilo que ele sente, que observa, que vê e aquilo que acaba, no fundo, por ser a realidade.
Sente-se frustrado?
Claro que sinto uma grande tristeza. Eu sou o mais velho que conheceu a Angola da outra senhora, onde não faltava nada. A única coisa que faltava aos angolanos naquela altura era a Independência política, porque, de resto, nada. Você comprava um cacho de banana por 2,5 escudos. Nós produzíamos tudo e éramos uns dos maiores exportadores de bananas. Camabatela produzia e exportava carne bovina e tínhamos o açúcar da Tentativa.
É lógico que eu nunca me posso sentir feliz, porque conheci a Angola da outra senhora e conheço esta Angola também, que, até a partir de um certo tempo, começou a descarrilar. Não posso sentir-me feliz Se você perguntar aí a um mais velho qualquer da minha idade, certamente que ele vai começar a chorar.
O Presidente Biden esteve cá e anunciou mil milhões de dólares para a segurança alimentar. Você acha que isso vai acabar com a fome? Isso vai resolver alguma coisa?
Primeiro, o Presidente Biden não pode prometer nada, quem promete hoje é o Trump. Ao nível da política externa, o Presidente cessante não tem poderes para nada, coisas que engajam o Estado. O único que tem competências para isso é o Trump e vamos ver como é que ele vai olhar para Angola.
América só tem uma coisa: interesses. Vamos ver também como é que Trump vai olhar para Angola. Ele sabe muito bem que está aqui a Chevron, que já está aqui a 60 e tal anos, sabe muito bem que há outros interesses, que há interesses no Corredor do Lobito. Enfim, há muita coisa. Nós hoje já deixámos de ser soviéticos, já deixámos de ser chineses, nós somos americanos hoje, em termos de estar bem. Portanto, ele também sabe quem nós somos, temos uma posição geoestratégica que controla o Atlântico Sul. A ilha de Santa Helena, que devia ser angolana, está aqui a 200 milhas económicas daqui.
Se Angola fecha, o Atlântico acabou. Ele tem noção dessa posição geostratégica e que nós temos ao nível do Golfo da Guiné, na luta do combate às drogas, sobretudo na Guiné, com a Guiné-Bissau, etc.
Portanto, ele tem consciência, ciência disso tudo.
Portanto, vamos ver como é que ele vai olhar para este país.
O que tem falhado em relação às políticas públicas, sobretudo à questão da fome no País?
O que tem falhado é, efectivamente, quem manda no País e quem assessora o mandante do País para se fazerem as políticas correctas.
O Presidente João Lourenço disse, por exemplo, que a fome é relativa. Vocês, quando saírem, vejam o contentor de lixo que está em frente à minha casa, se calhar, vão ver três ou quatro pessoas ali a lutar, a tirar garrafas, comida. Como é que a fome é relativa? Há sim, fome no País.
O nosso Presidente sabe que há fome no País. Agora, ele não vai dizer que há fome no País, nem eu diria. Se mandasse, eu diria que sim, que é relativa, que é assado e cozido. Eu também não ia dizer que há fome, mas que há fome há fome.
Há fome no País, e toda a gente vê isso. Uma vez eu vi uma coisa que me deixou chocado: um camião com sacos de arroz a subir o Eixo Viário e as pessoas a picarem os sacos de arroz... então como não há fome no País, se as pessoas andam a furar sacos para apanhar o feijão, para apanhar o arroz que cai na estrada, até grão a grão.
Como reverter situação?
Epá, eu não mando, não estou nos meandros, porque uma coisa é aquilo que nós vemos cá fora e outra é aquilo que acontece lá dentro e o que acontece lá dentro, naqueles buracos do poder eu não sei, como cidadão, não tenho uma resposta para poder dizer isto pode acabar assim, pode acabar assado.
O Presidente da República tinha o combate à corrupção como o seu cavalo de batalha. Será que esse combate está a ser feito nos moldes que o senhor esperava?
Eu nem digo esperava, eu desejaria ver e não estou a ver. Começa por aí. Quando você tem oligarquias estabelecidas que mandam no País, como é que se faz o combate à corrupção? Primeiro ponto.
Segundo, nós temos uma autoridade contra a corrupção ou a alta corrupção já no tempo do Zé Du. Quem foi o primeiro que geriu essa autoridade? Quem? Não há suicidas.
Nós temos uma autoridade contra a corrupção, mas não esteve lá ninguém para presidir a essa autoridade.
Portanto, esta luta contra a corrupção é um problema que, para além de endémico, é, sobretudo, sistémico. Enquanto for sistémico, vai ser difícil combatê-la.
Quer dizer que está condenado ao fracasso?
Sim, por causa do sistema, por causa da endemia do problema sistema.
Durante o debate sobre a divisão política e administrativa do País, houve vozes discordantes em relação a essa questão. Muitos acham que isso seria prioridade?
Claro que não. Estávamos muito bem como estávamos. Talvez seria dividir a província do Kuando-Kubango em duas ou três, porque é, de facto, enorme. Você anda 500 quilómetros e não vê uma alma. Eu estou de acordo com a divisão do Kuando-Kubanco e do Moxico. Dessas duas províncias, podiam nascer mais cinco ou seis, para tornar acessível e possível a administração do Estado nessas localidades.
Eu preciso do Bilhete de Identidade e tenho de fazer 4 mil quilómetros para ir e vir. Para mim, justificava-se a divisão destas duas províncias, mas o resto não. Para mim, são coisas. NJ