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Domingo, 19 Janeiro 2020 18:56

Luanda Leaks ou império de um clã a descoberto

Quando o regime angolano persegue, no país, a família presidencial, uma fuga sem precedentes de documentos confidenciais analisados pelo Consórcio Internacional dos Jornalistas de Investigação (ICIJ) oferece um olhar único sobre a gestão diária dos negócios de Isabel dos Santos e de Sindika Dokolo.

A filha do ex-chefe de Estado, e agora possível candidata às presidenciais, e o seu marido dizem tratar-se de uma campanha política. Porém há mais do que uma história por detrás da fuga «Luanda Leaks». Análise de Sonia Rolley.

«O timing da investigação levanta suspeitas». Do outro lado da linha, Sindika Dokolo não esconde o desconforto. «Um dos nossos gabinetes de avogados, PLMJ, já tinha sido pirateado em 2015», explica o marido da riquíssima angolana, Isabel dos Santos, à Radio França Internacional (RFI). Facto inédito, os «Luanda Leaks» dizem exclusivamente respeito à gestão destas duas fortunas da África Central, ele, filho do primeiro banqueiro do Zaire de Mobutu, ela, a filha mais velha do Presidente angolano, José Eduardo dos Santos, no poder em Angola durante 38 anos.

«Nós sabíamos que várias das nossas empresas tinham sido alvo de um hacker português, estes documentos foram guardados e estão, hoje, a ser instrumentalizados para controlar por completo os nossos bens no estrangeiro. Eles utilizam os órgãos de comunicação social para manipular a opinião dos governos». Sindika Dokolo denuncia a origem fraudulenta desta fuga, a condição em que foram obtidos os documentos, mas diz não ter conhecimento da dimensão da mesma.

Tratam-se no total de mais de 715 000 ficheiros, a maioria deles confidenciais. Os ficheiros detalham o funcionamento interno de cerca de 400 empresas e filiais, criadas desde 1992 e espalhadas por 41 países, onde o casal tem acções.

Trocas de e-mails, com todo o tipo de documentos em anexo, contratos públicos e privados, extractos bancários, actas de conselhos de administração, organigramas, relatórios, formulários para empréstimos ou até mesmo documentos pessoais, provenientes de contas de e-mail de funcionários da Fidequity, umas das sociedades do casal sediada em Portugal e de outras várias empresas ou prestadores de serviços.

Trata-se de uma relíquia, uma história, na realidade, incompleta e fragmentada, mas que versa sobre dez anos em português, mas também em francês, inglês, espanhol, alemão, holandês ou mesmo em somali.

Documentos que foram confiados à Plataforma de Protecção de Whistleblower de África (PPLAAF), uma jovem organização lançada por dois advogados para protegerem os responsáveis pela fuga de documentos de interesse público no continente.

A responsabilidade dos homens sombra

A investigação dos «Luanda Leaks», essa, foi confiada ao Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ) que esteve na origem dos Panama Papers e outros Offshore leaks que sacudiram as grandes fortunas mundiais.

A investigação integra mais de 120 jornalistas e 36 meios de comunicação associados, entre eles a Radio França Internacional, originários de cerca de vinte países. «Nós não conhecemos a origem da fuga. A nossa parceira PPLAAF disse-nos apenas que estes documentos são provenientes de várias empresas e de um Whistleblower que queria denunciar um comportamento criminal», explica Fergus Shiel, coordenador da investigação para o ICIJ. Ela oferece uma leitura única sobre a gestão quotidiana das duas grandes fortunas africanas e das suas interacções com outros continentes.

Nas centenas de milhares de páginas, Isabel dos Santos e Sindika Dokolo intervêm raramente de forma directa. Eles refugiam-se por de trás de meia dúzia de intermediários, homens e mulheres de confiança que colocam na liderança de uma «teia de sociedades» espalhada por todo mundo.

Os Luanda Leaks permitem esclarecer o papel de todos estes intervenientes. Gestores, advogados, notários, banqueiros, contabilistas e outros gabinetes de auditoria que, ao longo dos anos, questionaram muito pouco o controlo que a família dos Santos exerceu sobre a economia angolana, os montantes astronómicos das transações financeiras ou imobiliárias e muito menos sobre a origem da fortuna do casal.

Apesar de Isabel dos Santos e Sindika Dokolo se queixarem das restrições que lhe foram impostas, os Estados nos quais investiram nunca questionaram os montantes investidos.

Foram transferidos do Luxemburgo para Portugal milhões em dinheiro líquido, circularam da Suíça para a França milhões em diamantes, sem que a questão pertinente tivesse sido colocada. Poderão estes fluxos explicar porque é que mais de 15 anos após o fim de uma guerra civil sangrenta o Estado angolano, que conheceu a mais elevada taxa de crescimento no continente e mesmo no mundo, tem população a viver no limiar da pobreza?

Para apagar a má reputação de um país e o risco associado a um nome, os facilitadores são fundamentais. No clã dos Santos-Dokolo, eles são: portugueses, suíços, britânicos, malteses ou até mesmo monegascos. A prestação de serviços mais baixa rondará os milhares de euros. Foram eles que permitiram a conversão de milhares de dólares em fábricas, investimento de capital, propriedades, iates e carros de luxo, em Angola, Europa e Médio Oriente. Esta é também a história dos Luanda Leaks.

Resgatar Angola ao clã dos Santos

Até ao dia 27 de Setembro de 2017, o clã dos Santos era intocável em Angola. Nesse dia, o sogro de Sindika Dokolo perde a presidência e desde então a família acumula, em Angola, contrariedades administrativos e judiciais.

«É uma batalha que o regime pretende fazer em nome da luta contra a corrupção, mas ele não ataca os mandatários das empresas públicas acusados de desvio de fundos, ataca apenas uma família que opera no sector privado», refere indignado o genro do antigo chefe de Estado.

O sucessor designado, sem dúvida contra a vontade de José Eduardo dos Santos, João Lourenço fez aquilo que nenhum especialista algum dia equacionou: a guerra total contra o clã dos Santos.

«Ele não pode estar em todas as frentes de batalha. Ele abriu o espaço democrático e tenta recuperar o controlo da soberania», assegura um próximo do Presidente, seis meses após a sua eleição.

Resgatar Angola ao clã dos Santos? No momento em que assume funções, João Lourenço, general e apparatchik, não controla nem os serviços de segurança nem a presidência do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), a antiga rebelião que é hoje o partido no poder.

João Lourenço enfrenta uma crise sem precedentes e não compreende os desafios económicos. Durante quase meio século, José Eduardo dos Santos conduziu o país com mão de ferro e os seus próximos assumiram o controlo das principais empresas de Angola. Eles investiram em todos os sectores: petróleo, diamantes, meios de comunicação e telecomunicações, bancos, construção, ramo imobiliário, alimentação e grande distribuição. As representações foram feitas através de centenas de empresas e todos os escalões. O casal estima que o volume de negócios anual ascende aos dois mil milhões de dólares. Os seus activos estão avaliados em mais de dez mil milhões.

No espaço de dois anos, o antigo homem forte de Angola perde quase tudo e fica reduzido ao «quase-exílio forçado» em Espanha, num palácio de 600 m2 com mais de 1500 de terreno, num bairro chique de Barcelona.

Como fez em quase toda a sua presidência, José Eduardo dos Santos continua mudo. Mesmo quando o seu filho José Filomeno dos Santos, ex-patrão do Fundo Soberano de Angola, passa seis meses na prisão. Em liberdade provisória e à espera do julgamento, o irmão de Isabel dos Santos é acusado de desvio e branqueamento de capitais.

A filha e o genro viram os seus bens arrestados, no passado dia 23 de Dezembro, acusados pelo Estado de terem provocado perdas de mais de mil milhões de dólares, receitas do erário público.

«Aquilo que o governo nos reclama poderia ser coberto pelas nossas acções na Unitel ou na Galp. A partir desse momento porquê congelar as nossas acções e arrestar as nossas contas pessoais? Existe a vontade de nos prejudicar».

Para ele o ataque contra a sua família é um ataque coordenado. Uma coligação de inimigos reagrupados pelos serviços secretos angolanos, activistas angolanos e estrangeiros, empresas especialistas em matéria de investigação e riscos, todos a mando de um novo regime que quer esquecer que esteve sempre no poder.

O hacker Rui Pinto na origem da fuga?

O braço armado deste «complot», segundo Sindika Dokolo, é Rui Pinto. O hacker português autor do Futebol Leaks, a maior fuga de documentos da história do futebol europeu. Mesmo se as suas acções conduziram à abertura de investigações contra jogadores, responsáveis de clubes e de agentes, a justiça portuguesa acusa-o de 90 crimes, a grande maioria ligados à violação de correspondência.

A acusação mais grave é a tentativa de extorsão de uma poderosa agência desportiva. O Ministério Público português afirma que Rui Pinto teria pedido cerca de um milhão de euros em troca da supressão de informação pertencente à sociedade Doyen Sports. O Whistleblower foi detido no passado dia 19 de Janeiro de 2019 em Budapeste, na Hungria, e extraditado para Portugal. Entre as empresas que Rui Pinto terá pirateado desde 2016, estão várias ligadas à empresária Isabel dos Santos, entre elas a Fidequity. É o que revela a revista Sábado numa investigação publicada no dia 17 de Outubro de 2019.

O advogado francês William Bourdon, co-fundador e presidente do PPLAAF, e a portuguesa Ana Gomes, antiga euro-deputada uma das vozes mais críticas do clã dos Santos, são os defensores mais ferrenhos de Rui Pinto.

Segundo Sindika Dokolo, os Luanda Leaks seriam uma das peças montadas, lentamente, por João Lourenço e que teria como última finalidade a execução pública do casal. «Este não se contenta em ser designado chefe de Estado, atrevendo-se a renegar a mão daquele que o alimentou durante anos, sem temer nem as consequências ou confidências», retorque Sindika Dokolo.

O medo mudou de campo. Desde há já várias semanas que o clã se sente mesmo ameaçado, incluindo no estrangeiro, o seu último refúgio. Luanda multiplica os procedimentos com vista à obtenção de sanções nacionais e o arresto dos bens do casal. Na Europa, assim como nos Estados Unidos, e procura atingi-los até mesmo na República Democrática do Congo.  Contas, acções, propriedades que poderiam representar mil milhões de dólares para um país que desde 2014, com a queda do preço do barril de petróleo, está quase à beira de default.

«Não tenho medo de perder tudo, já vi o meu pai passar pelo mesmo», assegura o filho do milionário congolês Augustin Dokolo Sanu, conhecido por ter criado o primeiro banco privado do antigo Zaire. Nos últimos anos do reinado do Marechal Mobutu, o homem de negócios congolês viu os bens do seu pai serem confiscados, razão pela qual ele seria hoje ligado «a montagens de holdings complexas, com o objectivo de proteger ao máximo as espoliações dos poderes políticos», acrescenta.

Como na época do seu pai, Sindika Dokolo vê nesta sucessão de acontecimentos um sinal de um certo ciúme: «Eles só podem ter medo do peso político da minha mulher para estarem a fazer isso. Eles querem nos responsabilizar por todos os actos de corrupção e pela falência de Angola». O homem de negócios congolês lembra que o novo chefe de Estado já está a meio do mandato, as eleições aproximam-se e que muito em breve será tempo de se fazer um balanço.

«Nós temos 2000 funcionários directos em Angola, depois temos ainda empregos indirectos com os postos de venda da Unitel e da Zap. Nós pagamos impostos na Europa e somos o primeiro contribuinte fiscal em Angola. Nós trabalhamos e investimos neste país mais, mais do que qualquer outro grupo», explica.

O casal de antigos oligarcas garante ter pago no ano passado 250 milhões de dólares ao Estado angolano pelas respectivas empresas sujeitas ao fisco do país.

Atrás do casal: A história de uma casta no poder

Furioso com o que ele considera como dois pesos e duas medidas, o empresário congolês não é parco em nomes. Ele cita logo Manuel Vicente, antigo colaborador próximo do seu sogro e que se tornou, com o seu sucessor, o pior inimigo do clã.

É a reviravolta de uma aliança. Presidente da Sonangol até 2012, é Manuel Vicente que dá o seu acordo ao esquema que permite a Isabel dos Santos e Sindika Dokolo, em 2006, entrar no capital da Galp, o gigante de energia português.

Cinco anos mais tarde, Manuel Vicente é suspeito pelo Fundo Monetário Internacional de ter desviado 32 mil milhões de dólares dos cofres públicos. Na altura Luanda vem em sua defesa evocando «operações para-fiscais» realizadas por empresas a pedido do governo, mas que «não foram registadas no orçamento geral do Estado».

«O quase-délfim», Manuel Vicente é nomeado ministro de Estado para a Coordenação Económica e em 2012 chega a vice-Presidente, ano da compra do joalheiro suíço Grisogono pela Sodiam, empresa de diamantes do Estado e um dos suportes financeiros daquele que na altura ainda é genro do Presidente.

Ameaçado por um processo em Portugal por ter dado, segundo o Ministério Público português, cerca de um milhão a um juiz para tentar abafar dois escândalos de branqueamento de capitais. Manuel Vicente bem pode desmentir o caso, em 2017 perde a protecção de José Eduardo dos Santos e o cargo de vice-Presidente.

Alguns meses mais tarde com a chegada de João Lourenço ao poder, torna-se na peça chave do xadrez político em Angola.

Apesar do compromisso na luta contra a corrupção, o novo chefe de Estado, pressiona a antiga potência colonial, não para o arresto dos bens, mas para arquivar as acusações contra Manuel Vicente, prometendo que a justiça julgá-lo-ia mais tarde.

Manuel Vicente continua presente, não obstante as revelações do FMI, as perseguições em Portugal, o facto de ser renegado pelo patriarca e a humilhação de figurar em vigésimo quarto lugar nas listas do MPLA nas últimas eleições.

É um dos seus próximos, Carlos Saturnino, que volta a assumir o cargo de PCA da Sonangol que faz as primeiras acusações contra «a engenheira» Isabel dos Santos, acusando-a publicamente durante a Assembleia Geral de 2018 de ter desviado 135 milhões de dólares através de empresas offshore.

A assinatura de Sindika Dokolo

Uma das revelações dos Luanda Leaks é ver o nome de Sindika Dokolo, empresário compulsivo, homem culto e um quase opositor no seu país, a República Democrática do Congo, figurar nos milhares de páginas de documentos confidenciais. Sempre disposto a promover, em entrevistas, os talentos empresariais da mulher, ele foi demasiadas vezes relegado para segundo plano de uma história de sucesso descrita, como se apenas um dos dois do casal pudesse ser «coroado», em ocorrência Isabel dos Santos que faz a sua entrada na lista das grandes fortunas mundiais da revista norte-americana Forbes.

Sem dúvida menos exposto que a sua esposa, é, no entanto, a sua assinatura que descobrimos em vários contratos dos mais ousados esquemas financeiros, nomeadamente na Europa, contratos que valeram a Isabel dos Santos o título de mulher mais rica de África.

Foram as suas participações em empresas estrangeiras, ao lado de das grandes empresas de Estado que estão hoje na origem do arresto dos bens do casal em Angola.

Os Luanda Leaks vão sem dúvida dar argumentos aos inimigos de uma das famílias mais ricas e protegidas de África. É a palavra do clã contra a dos seus próprios gestores, daí a necessidade de travar uma batalhar sobre a origem e tratamento destes documentos.

Várias acções da iniciativa do governo angolano estão actualmente em curso, em Angola e noutros países ocidentais. Elas dever-se-ão multiplicar nas próximas semanas, após as revelações da equipa de jornalistas coordenados pela ICIJ.

Entre as quatro grandes redes de serviço profissional no mundo (ndlr : o « Big Four ») que trabalharam com Isabel dos Santos e com o seu marido, o gigante americano da auditoria PricewaterhouseCoopers prometeu uma investigação sobre as alegações que o grupo qualifica de «muito graves e muito preocupantes». E já veio anunciar a vontade de colocar um termo às colaborações com as empresas detidas pelo casal. Porém, até à data da publicação desta investigação, poucas personalidades e instituições que foram contactadas aceitaram responder às acusações.

Quatro dias antes da publicação desta investigação, Isabel dos Santos admitiu candidatar-se à eleição de 2022. O tom está dado. A batalha não será apenas judicial, será igualmente política e mediática. Enquanto isso, o marido Sindika Dokolo promete tudo justificar, desde o recurso quase sistemático aos dispositivos sediados nas praças financeiras conhecidas pela discrição nos montantes emprestados ou investidos pelo Estado angolano e pelos bancos angolanos e estrangeiros, assim como a partilha das acções e dos dividendos.

«É muito difícil para alguém que vem de Angola ou da RDC - países que estão na lista negra dos mercados europeus - abrir uma conta em solo europeu», assegura à RFI este filho da elite da África central. «Se se é como eu, uma personalidade politicamente exposta desde 2001, é quase impossível».

Para além das suas origens, Sindika Dokolo apresenta-se como um homem de negócios como tantos outros, rico e com bons contactos, à imagem do milionário francês François Pinault, coleccionador como ele.

Ele compara facilmente as suas actividades com as dos grandes grupos como a Total ou a Bolloré e desafia a imprensa internacional a investigar as actividades desses mesmos grupos.

«Podem-me acusar de recorrer a esquemas financeiros sediados em paraísos fiscais, mas é ilegal? Para começar eu não os utilizo para investimentos na Europa. Eu utilizo-os porque Angola não permite o sistema de dupla tributação. Não há razão para que pague duas vezes os meus impostos», concluiu. RFI

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