Na manhã de 19 de Maio de 1993, o embaixador José Patrício e eu, ambos fazendo parte da equipa angolana acreditada junto da Organização dos Estados Americanos (OEA) dentro de um “arranjo diplomático possível”, para permitir a presença de Angola em Washington, fomos convocados pelo novo Secretário de Estado Assistente para os Assuntos Africanos, George Moose, para mais um encontro com as autoridades americanas. Ao chegar ao Departamento de Estado, sentimos que algo importante estava prestes a acontecer, o que iria marcar uma nova era nas relações entre os dois países.
Dias antes, na audiência realizada no Congresso a 29 de Março de 1993, para a sua confirmação, George Moose afirmara que o reconhecimento do Governo angolano por parte de Washington estava a ser cuidadosamente considerado. Com base nos contactos diplomáticos na capital americana, sabíamos que o Departamento de Estado tinha elaborado um documento sobre a nova política americana para Angola que apresentava cinco opções à Casa Branca, entre as quais a da normalização de relações entre Washington e Luanda, já nessa altura, parecia merecer a anuência do Presidente Bill Clinton.
O encontro com o Secretário de Estado Assistente para os Assuntos Africanos, George Moose, foi de grande simbolismo histórico e algo raro no mundo da diplomacia. À frente de nós estava o primeiro afro-americano a ocupar essa função e a receber uma das primeiras representações diplomáticas africanas acreditadas em Washington.
George Moose entregou ao embaixador José Patrício uma carta do Secretario de Estado Warren Christopher dirigida ao Presidente José Eduardo dos Santos, datada do dia anterior, na qual comunicava uma mudança da política americana quanto à Angola com “um objectivo claro e simples: reconhecimento do direito de todos os angolanos de escolher o seu Governo através de um processo democrático, multipartidário”.
O diplomata angolano recebeu o documento como se de um troféu se tratasse. Como era hábito em reuniões no Departamento de Estado, ajeitou o bloco de notas para registar o essencial dessa conversa de transcendente implicações diplomáticas e políticas para o futuro de Angola.
Tentando fazer um balanço histórico, o Secretário de Estado Assistente para os Assuntos Africanos justificou que a Administração Clinton não tinha avançado mais depressa com o processo de reconhecimento do Governo angolano por causa do resultado inconclusivo das Eleições Presidenciais (necessidade de realização da segunda volta), a reacção de Savimbi quanto ao processo democrático e para que a posição americana não fosse entendida como uma "sanção contra Unita".
Posição diplomática insustentável
A posição americana, defendida desde a Independência de Angola e justificada com repetidas mudanças dos termos de referência para uma normalização das relações diplomáticas com Luanda, tornara-se extemporânea e insustentável perante a evolução da situação internacional, em geral, e do contexto angolano, em particular.
Num editorial publicado na edição de 14 de Abril, o reputado jornal “The New York Times” defendia que Washington já não tinha razões para continuar a negar o reconhecimento de Angola, pois “as relações diplomáticas dariam um impulso tangível ao Governo – e sublinhariam a seriedade americana relativamente aos termos do cessar-fogo”. O diário americano concluía que “Savimbi não é democrata ou combatente da liberdade, antes de acusar o líder da Unita de ser “ um barão da guerra, subjugando através da catana e da pistola, credivelmente acusado pelo massacre de civis”.
Mesmo a nível da oposição armada começava a prevalecer o sentimento de que os ventos da história estavam favoráveis ao fim de políticas e atitudes ainda influenciadas pelos ditames da Guerra Fria. Numa entrevista à Rádio TSF de Portugal a partir do Huambo e difundida a 16 de Abril, o próprio Jonas Savimbi deu a entender que o reconhecimento do Governo angolano pela administração americana era uma questão de tempo, pois poderia acontecer a qualquer altura.
“Nós, na UNITA, estamos conformados que isso vai acontecer”, disse o líder rebelde antes de acrescentar que “os Estados Unidos, como a única superpotência hoje, após desaparecimento da URSS, devia ter sempre a possibilidade de ajudar os angolanos a encontrar a paz”.
O líder rebelde não deixou, no entanto, de advertir que “para nós não será um sobressalto quando o regime do Presidente Clinton reconhecer o regime do outro lado”.
Nesse mesmo dia, o jornal americano “The Christian Science Monitor” publicou uma entrevista com Savimbi, feita pelo seu repórter John Battersby a partir do Huambo, na qual aquele deixou claro que tinha um objectivo a atingir e que não se compadecia com as críticas que lhe estavam a ser feitas pela opinião pública internacional. O jornalista norte-americano escreveu que apesar de nos últimos meses o líder da UNITA se ter tornado num pária internacional, ele estava “confiante que as suas forças rebeldes podem ditar os termos de uma solução política” em Angola, depois de terem assumido o controlo do Huambo, a segunda cidade do país.
Com efeito, Jonas Savimbi manifestou pouca preocupação com as condenações de que a UNITA estava a ser alvo interna e externamente, pelo facto de ter recomeçado a guerra em Angola ao afirmar que “se pensamos que o que estamos a fazer é correcto em termos da nossa própria evolução, a perda de apoio internacional não nos vai impedir de alcançar os nossos objectivos”. Fazendo alusão à sua experiência e ao seu relacionamento com o mundo exterior, o líder da UNITA afirmou que “nos 34 anos da minha carreira política ganhei e perdi apoios” antes de concluir de forma quase profética que “não se pode dominar a comunidade internacional”.
Para o “The Christian Science Monitor”, as relações entre Washington e Jonas Savimbi tinham atingido o seu ponto mais baixo em Janeiro de 1993, quando a UNITA tomou militarmente a cidade do Soyo e ameaçou atacar os interesses petrolíferos americanos em Cabinda. O jornal frisou que houve, entretanto, uma certa mudança, uma vez que “a queda do Huambo ... fez com que a UNITA ganhasse nova influência nos EUA”.
Na entrevista, o líder da UNITA reconheceu que “mais cedo ou mais tarde a Administração americana vai reconhecer o regime em Luanda”. Manifestando pouca preocupação com essa eventualidade, adiantou que pretendia que Washington desempenhasse sempre “um papel em Angola, mesmo se reconhecer o regime do MPLA”.
O jornalista escreveu que a UNITA tinha reforçado militarmente a sua posição com a tomada do Huambo e o Governo angolano sofrido “a sua mais pesada derrota” desde 1975. Nas palavras de Savimbi, “tivemos que ripostar e ganhamos”, enquanto que os seus comandantes revelaram ao repórter que a UNITA estava a preparar-se para controlar as capitais de mais quatro províncias:
Moxico, Malanje, Bié e Cuando Cubango. Afirmaram que a possibilidade do desencadeamento de outras acções militares estava dependente dos resultados das negociações em curso na altura em Abidjan, capital da Côte d´Ivoire. Para o “The Christian Science Monitor”, a produção petrolífera em Angola poderia ficar afectada com uma possível escalada da guerra, dado que a UNITA cercara o Soyo e começara a aumentar a sua presença militar em Cabinda.
Reconhecimento de um Novo Dia
No dia 19 de Maio de 1993, no final de uma audiência com o Arcebispo sul-africano Desmond Tutu, o Presidente Bill Clinton anunciou, publicamente, o reconhecimento do Governo angolano, porque este “concordou em assinar esse acordo de paz, deu posse à Assembleia Nacional democraticamente eleita e ofereceu à UNITA a participação no Governo a todos os níveis”.
A decisão americana tomara também em consideração as posições expressas pelo Presidente do Congresso Nacional Africano (ANC), Nelson Mandela, e outros líderes africanos, preocupados com o facto de que a atitude militarista da UNITA estava a encorajar grupos radicais da extrema-direita e esquerda a tomar posições que poderiam fazer perigar o processo democrático e de transformações na própria África do Sul.
Terminado o encontro no Departamento de Estado com o Secretário de Estado Assistente para os Assuntos Africanos, George Moose, e analisado o conteúdo da carta do Secretario de Estado Warren Christopher, sobre a normalização das relações diplomáticas, o embaixador José Patrício telefonou ao Presidente José Eduardo dos Santos para dar a boa nova. Desde que abandonara o seu cargo de Assessor de Imprensa no Futungo de Belas para chefiar a Missão Permanente de Angola junto da Organização dos Estados Americanos (OEA) que guardava religiosamente o número privado do “Chefe”, como gostava de frisar, esperando o momento certo para informar que estava cumprida a missão que levara a Washington esta equipa que também incluía o embaixador Alfredo Salvaterra.
No dia 17 de Junho, o Presidente José Eduardo dos Santos endereçou uma mensagem ao Secretário de Estado, Warren Christopher, a qual transmitia “a concordância do Governo angolano relativamente à consumação desse acto que consideramos de especial importância para o incremento das relações a todos os níveis entre os nossos dois países”. Para ele, o reconhecimento, “do qual advirão, decerto, vantagens mútuas para os respectivos povos, representa, igualmente, uma valiosa contribuição aos esforços que o governo angolano envida no sentido do restabelecimento da paz e no da consolidação da democracia em Angola”.
O Chefe de Estado angolano aproveitou a oportunidade para sublinhar que “o Governo angolano atribui aos Estados Unidos da América, na qualidade de observador do processo de paz, uma função vital para as acções que terá ainda de empreender com vista a defender as instituições democráticas e a impedir a tentativa de subversão do poder legitimamente instituído que a UNITA procura a todo o custo levar a cabo”.
*Embaixador de Carreira
Diplomacia angolana e ventos da mudança
Desde a realização das eleições multipartidárias de 29 e 30 de Setembro de 1992, consideradas livres e justas pela comunidade internacional, a diplomacia angolana conseguira conquistar um espaço de intervenção cada vez mais crescente em Washington.
No dia 5 de Maio de 1993, um grupo de cerca de 45 Congressistas democratas e republicanos enviou uma carta ao Presidente Bill Clinton manifestando a sua preocupação com a degradação da situação em Angola e pressionando a Casa Branca a “reconhecer o Governo de Angola legalmente eleito para demonstrar o apoio americano à democracia em África", uma vez que, no seu entender, tal posição "seria consistente com todos os princípios dos padrões americanos de equidade e justiça”. Os legisladores americanos advertiram que “o não reconhecimento do Governo de Angola dá a impressão de anuência ao recurso a meios militares por parte de Jonas Savimbi para chegar ao poder em Angola”.
Três dias depois, o influente afro-americano e líder dos direitos cívicos, o Reverendo Jesse Jackson, escrevia ao Assessor Especial do Presidente para os Assuntos de Segurança, Anthony Lake, argumentando, também, que a Administração Clinton precisava de “agir agora”, pois “o não reconhecimento de dos Santos envia um sinal errado aos que querem manter o poder pela força, em vez de eleições livres e justas”.
A questão de Angola conseguira impor-se na agenda política americana e constituía um dos temas de debate sobre questões africanas. Num crescendo desta pressão diplomática, a edição de 15 de Maio do programa televisivo “O Contraditório com Jesse Jackson” (Both Sides with Jesse Jackson) da cadeia “Cable News Network” (CNN) foi consagrado a uma análise sobre a problemática da normalização das relações diplomáticas entre Washington e Luanda. Foram convidados, entre outras entidades, o Senador democrata Paul Simon, um entendido sobre questões africanas, o representante da UNITA, Marcos Samondo e eu, em nome do Governo angolano.