Foi uma passagem de ano agitada para Isabel dos Santos, envolvida no processo judicial que lhe arrestou bens, contas bancárias e participações em empresas por ordem do Tribunal Provincial de Luanda, acusada de ter lesado o Estado angolano em 1,13 mil milhões de dólares. Logo na manhã de novo ano a empresária twittou uma série de comentários, deu uma entrevista ao canal Al Jazeera e tentou dar outra à TV Zimbo - canal privado angolano, sem conseguir, por falta de rede que lhe permitisse entrar em antena no telejornal de horário nobre. Enquanto esperava fez um "em direto no Instagram" respondendo a perguntas dos seus seguidores em português, inglês e francês, queixando-se, por exemplo, de "não poder pagar aos fornecedores, a um contrato, um empréstimo, o que causa muitos problemas". No dia anterior, 31, Isabel dos Santos já tinha emitido um comunicado em sua defesa - refutando a maior parte das alegações judiciais e partindo para o ataque.
A defesa que a filha de José Eduardo dos Santos estará já a desenhar terá como pontos-chave que este é um processo político, que o processo judicial não foi conduzido nos termos da lei - e terá havido até má-fé - e, possivelmente, que o arresto de bens será ilegal por vários motivos (entre eles a pertença das participações e os pedidos de empréstimo, e o valor das mesmas)
À Al Jazeera, Isabel dos Santos usou o argumento político, disse que o processo é um "atentado politicamente motivado - não há dúvida sobre isso. O meu pai escolheu não se recandidatar, achando que era preciso pessoas novas, era importante, e, infelizmente, as novas pessoas estão a fazer estes ataques politicamente motivados, especialmente aos filhos dele".
Já no Twitter tinha sido esse o tom escolhido, indo mais longe e acusando o atual poder de "perseguição" à sua família, com o "objetivo de encobrir uma política económica falhada, iniciada após a saída do Presidente Dos Santos". A empresária escrevia em inglês, acusando "o atual governo [angolano, liderado pelo presidente João Lourenço] de ter lançado milhares de famílias da classe média na pobreza", notando que a situação em que é alvo "não aponta para um futuro brilhante da justiça angolana", já que, diz, "ignora os direitos de defesa que são a base fundamental de qualquer sistema de justiça credível". O que lhe está a acontecer, acusa, "ilustra o ressurgimento de arbitrariedades em Angola".
O argumento do Estado de direito
Nesta senda, à Al Jazeera, Isabel dos Santos disse-se "preocupada porque um Estado de direito, que acredito que Angola deva ser, é chave para um investidor". E justificou dizendo que é um dos maiores investidores em Angola: "Fundei muitas empresas que não estão ligadas ao Estado, em media, telecom, centros comerciais." Também referiu o processo do irmão, José Filomeno, que foi acusado de ter desviado do país 500 milhões de dólares e está em julgamento: "Ele esteve em prisão preventiva durante nove meses - embora legalmente fossem só quatro permitidos -, uma violação de direitos humanos, legais, e não podia pagar o advogado, teve de pedir um oficioso para o representar", disse a meia-irmã. "E estou preocupada que estes casos judiciais sejam só politicamente instrumentais, para uma estratégia de denegrir a herança do presidente Dos Santos", concluiu.
O ativista Rafael Marques reagiu a esta argumentação, aos microfones da Rádio Voz da América: "Ninguém está acima da lei, é o trabalho da justiça e cabe agora contra-argumentar os factos para provar se os factos apresentados pela PGR são injustos ou não", disse. "Eu próprio tenho denunciado muitos casos de injustiça do sistema judicial mas com factos, agora pergunte-se quais são os factos para rebater aqui nesta questão", acrescentou.
O siteMaka Angola, da responsabilidade deste ativista, argumentava que "não há qualquer fundamento legal para apoiar a teoria de conspiração de Isabel dos Santos nem para que esta se vitimize". Num artigo assinado por Rui Verde, o site explicava o arresto: "O arresto civil é uma apreensão de bens de um devedor decretada por um tribunal comum, mediante solicitação de um credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito. Quer isto dizer que o Estado entendeu que detém um crédito sobre Isabel dos Santos e tem medo de não receber o que esta lhe deve, por isso veio pedir que lhe fossem dadas garantias, e essas garantias são o património que lhe foi apreendido. O Estado acredita que Isabel lhe deve dinheiro e quer assegurar-se de que vai receber esse dinheiro. É disto que se trata nesta decisão."
É esta a questão fulcral do processo - os negócios que o tribunal considera terem sido feitos em proveito de Isabel dos Santos, mas pagos pelo Estado, ou com compras de capital ou sob a forma de empréstimo. O processo está a agitar Angola desde que no dia 30 de dezembro a Procuradoria-Geral da República (PGR) emitiu a nota na qual se dizia que o Serviço Nacional de Recuperação de Ativos intentara uma providência cautelar de arresto no Tribunal Provincial de Luanda - bem-sucedida - na sequência de negócios celebrados pelos três empresários - Isabel dos Santos, o seu marido Sindika Dokolo e o português, braço direito da empresária, Mário da Silva - com o Estado angolano, através da Sodiam, empresa pública de venda de diamantes, e com a Sonangol, petrolífera estatal, que teriam sido lesivos em quase 1,2 mil milhões de dólares.
O arresto das participações de Isabel dos Santos foi em nove empresas angolanas - Banco BIC, Unitel, Banco BFA, Finstar, ZAP Media, Cimangola II SA, Condis - centros comerciais Candando, Continente Angola e Sodiba, distribuição de bebidas. Mas poderá vir a ter também consequências em Portugal, já que a empresária tem uma posição de peso no capital de quatro empresas. As empresas arrestadas têm também exposição direta a companhias portuguesas.
Muitas das operações que estão agora sob a mira judicial - seja nas questões ligadas à Sonangol (de que Isabel dos Santos foi líder) até à empresa de joias Griscogo - propriedade do casal Isabel e Sindica Dokolo e que vendeu o diamante maior de Angola - ou a questão da possível alienação da Unitel - tinham sido referidas em vários artigos e investigações por Rafael Marques, facto que levou a empresária a acusá-lo de estar por detrás de uma investigação que estaria para ser publicada pelo jornal britânico The Guardian e pelo consórcio de jornalistas de investigação dos Panamá Papers . "Não trabalho para o The Guardian", reagiu o jornalista/ativista à Rádio Voz da América.
O argumento judicial
É certo que a argumentação judicial será uma das linhas da defesa da empresária, e é nesse sentido que vai o comunicado que foi divulgado no dia 31 ao final da tarde. Neste comunicado faz-se várias vezes referência à "boa-fé" das autoridades judiciais angolanas e justifica-se que a empresária não tinha qualquer conhecimento do processo e, "desconhecendo o teor da acusação contra si, não teve oportunidade de apresentar defesa".
Diz que "o tribunal afirma que fundou a sua convicção nos documentos juntos aos autos pelo requerente PGR e nos depoimentos constantes da acta de inquirição de testemunhas" e pergunta: "Quem são estas testemunhas que revelam ter conhecimento direto da maioria dos factos sobre os quais depuseram? E que documentos são estes apresentados ao tribunal?", concluindo que "os factos dados como provados para fundamentar o decretamento do arresto de bens de Isabel dos Santos padecem de evidentes falsidades, imprecisões e omissões".
No Twitter, Isabel dos Santos diria também que não teve oportunidade de se defender das "falsas acusações" baseadas em "documentos fabricados". O julgamento, acusa, "foi feito em segredo total sem que os advogados ou os diretores das minhas companhias fossem informados dos procedimentos". "Não tive direito a recurso", diz. É o que chama um "julgamento sumário".
O argumento dos valores em questão
Explicando os negócios que estão em causa, na sua versão, nesse comunicado, Isabel dos Santos recusa a "afirmação que está a ocultar património obtido à custa do Estado transferindo para outras entidades" e avança para outra das linhas de defesa: a de que o património arrestado é muito maior do que o que está indicado pelo Estado: "Não existe racional ou justificação para o valor apresentado no despacho sentença de 1.136.966.825,56 valor no qual supostamente o Estado foi lesado", lê-se.
Segundo fontes angolanas, a defesa estará a preparar a contra-argumentação somando todos os valores e apresentado uma soma diferente da que está no processo: 200 milhões da empresa de joias Griscono, menos de 100 milhões da Galp, menos de 100 milhões da Unitel. A defesa argumentará também que os bens arrestados têm um valor muito superior àquele pelo qual o Estado angolano se sente lesado.
Este foi um assunto bastante discutido ontem na imprensa em Angola. O Jornal de Angola, por exemplo, consultando especialistas, dizia que "o valor das empresas de Isabel dos Santos é difícil de quantificar", apresentando a riqueza total da filha do ex-presidente: "Em Janeiro de 2019, a revista Forbes atribuiu à empresária uma fortuna de 2,3 mil milhões de dólares, depois de perdas que cortaram a riqueza da angolana dos 2,7 mil milhões em 2018 face ao ano precedente, quando também já tinha registado um rombo de 400 milhões, baixando-a dos 3,1 mil milhões de dólares."
O distanciamento da conta de General Dino
Outro dos pontos da defesa de Isabel dos Santos é negar, primeiro no comunicado, e depois no Twitter, ter alguma coisa a ver com uma conta do BCP em nome de Leopoldino Fragoso Nascimento, que foi alvo de uma intervenção policial portuguesa quando tentava fazer uma transferência de dez milhões de euros para a Rússia. Segundo o Tribunal angolano, esta transferência seria a prova de que se estaria "a ocultar o património obtido às custas do Estado, transferindo-os para outras entidades". De acordo com o despacho, a operação de transferência foi bloqueada pela Unidade de Informação Financeira (UIF) da Polícia Judiciária portuguesa e seria para uma sociedade chamada Woromin Finance Limited num banco na Rússia - informação que o DN confirmou ser verdadeira.
O comunicado oficial referia ser "falsa e forjada esta ligação", apelando para que a PGR angolana, "se estiver de boa-fé, informar sobre os detalhes a suposta instrução bancária de Isabel dos Santos" relativamente à conta bancária de Leopoldino. E, num tweet na manhã de quarta-feira, dizia que "não tendo Isabel dos Santos nenhuma ligação a este assunto". Um tweet anterior, entretanto desaparecido ou apagado mas a que o DN teve acesso, dizia que era "falsa" a notícia e que Isabel dos Santos não teria dado "essa ordem de transferência": "Atenção aos jornalistas pois é uma mentira!"
Leopoldino Nascimento, também conhecido como General Dino, foi chefe das Comunicações do gabinete presidencial de José Eduardo dos Santos e depois consultor do general Kopelipa - o homem da segurança e braço direito de José Eduardo dos Santos. Depois da mudança do poder, General Dino dedicou-se à sua empresa, o grupo Cochan, que fundara em 2009 e que anuncia ter investimentos nas áreas do petróleo, agroindustrial, distribuição, imobiliário e transportes.
O grupo é dono, nomeadamente, dos centros comerciais Xiami e dos supermercados Kero. Detém também, a título de exemplo, a Biocom, "a única empresa de Angola a produzir e a comercializar açúcar, etanol e energia elétrica a partir da biomassa" e tem também interesses no petróleo. Recentemente foi alvo de um processo do Estado angolano que lhe exigiu o pagamento de um empréstimo de 29 milhões de dólares que teria sido usado para a compra de uma participação no Banco Económico, ex-BESA.
A explicação dos outros negócios
Já no comunicado, Isabel dos Santos fez questão de refutar todas as acusações, do negócio da Galp, que, disse, ser "o investimento mais rentável na história da Sonangol" - embora, desde a chegada ao poder em Angola de João Lourenço, eleito Presidente em 2017, tenham sido recorrentes notícias que apontam para a saída da Sonangol da Galp. Isabel dos Santos recorda que em 2005, quando da entrada da petrolífera portuguesa, a participação da Sonangol estava avaliada em cerca de 429 milhões de euros, face aos atuais cerca de 960 milhões de euros.
Em causa estão os 40% que pertencem a Isabel dos Santos, na Esperanza, que é detida nos outros 60% pela Sonangol e tem uma participação na Galp. A Esperaza detém também 45% do capital da Amorim Energia, holding que tem uma posição de 33,34% na petrolífera portuguesa. Indiretamente, os angolanos controlam assim 15% da Galp. "A Esperaza [joint venture entre a Sonangol e a Exem Energy, esta de Isabel dos Santos e do marido] recebeu até esta data mais de 217 milhões de euros em dividendos e, tendo como referência o preço atual das ações da Galp Energia em bolsa e após o reembolso do passivo existente, o valor líquido da Esperaza ascende atualmente a cerca de 1,6 mil milhões de euros", argumenta o comunicado.
Mas sobre este negócio, o Tribunal Provincial de Luanda tem outra versão: deu como provado que a dívida da Exem Energy BV para com a Sonangol "não se mostra paga" e que a Exem deve à petrolífera estatal mais de 75 milhões de dólares, no âmbito da aquisição da participação na petrolífera portuguesa.
A empresária desmente também a venda da participação na Unitel "a um suposto cidadão árabe, devendo então a PGR, caso esteja de boa-fé, informar o público do nome do cidadão árabe contactado e pormenores das datas de reunião e outras diligências realizadas. E os contactos com autoridades japonesas "para realizar investimentos de um bilião de Dólares, devendo igualmente a PGR, caso esteja de boa-fé, informar o público que entidades japonesas foram supostamente contactadas pela requerida e em que datas".
Os partidos angolanos reagiram positivamente ao processo. Marcial Dachala, porta-voz da UNITA, disse que Angola é um Estado de direito pelo que se deve deixar "a justiça fazer o seu trabalho" para "no final se tirar as conclusões que se devem. Não posso dar um julgamento de valor sobre aquilo que ainda não está definitivamente decidido", disse. DN