Sexta, 29 de Março de 2024
Follow Us

Quarta, 08 Abril 2020 09:52

"Corrupção foi o vírus altamente contagioso" que infetou Angola - Arcebispo de Luanda

Na sua primeira entrevista à Renascença, D. Filomeno do Nascimento não foge a temas sensíveis, como a poligamia ou o "vírus da corrupção", que submergiu Angola "de forma sistémica" nos últimos 20 anos.

Volvidos 18 desde o fim da guerra civil, diz que Angola "ainda está no ano zero", mas tece elogios ao atual Presidente, João Lourenço, que "tem inspirado grande confiança em grande parte da população". Sobre a pandemia de Covid-19, lembra que o combate se faz com responsabilidade cívica e pastoral e assume que também aí a arquidiocese que dirige há seis anos tem um papel a desempenhar, agora sob um novo "enquadramento legal" da relação Estado-Igreja.

D. Filomeno do Nascimento, arcebispo de Luanda desde 2014, recebeu a Renascença em plena crise de pandemia mundial. Angola juntou-se à lista de nações afetadas pela pandemia de Covid-19 a 21 de março, dia em que as autoridades de saúde angolanas confirmaram os primeiros dois casos.

Na primeira entrevista à Renascença, o arcebispo de Luanda aborda o atual problema de saúde pública mundial e destaca que o combate à pandemia se faz, acima de tudo, com responsabilidade cívica e pastoral.

Sobre Angola fala abertamente de questões sensíveis: da poligamia, que “desestrutura a sociedade”, e da corrupção, enquanto “vírus altamente contagioso”. D. Filomeno deixa mesmo um pensamento para o futuro: "O que queremos é que o desejo de justiça não se confunda com impulsos de vingança."

O arcebispo de Luanda manifesta preocupação com a situação económica do país -- considera que os dólares de Angola deveriam ser a agricultura, a pecuária e a pesca e não o petróleo -- e diz-se apreensivo com a dependência do exterior, na ordem dos 70%, que se nota até no mais básico, como a farinha de mandioca, o milho ou o açúcar.

Como Igreja, mais do que discurso quer gestos concretos e tem por isso no terreno um projeto de cozinhas sociais/comunitárias, para o combate à fome, e uma linha de microcrédito para vendedores ambulantes. “Há famílias que têm mesmo de optar entre comerem os pais ou os filhos”, ressalta.

PANDEMIA DE COVID-19. "É a sobrevivência da nossa espécie que está em causa"

Não era suposto começar esta entrevista por este tema, mas o mundo está a viver um tempo até há alguns dias inimaginável. Como olha para este problema de saúde pública mundial?

São sinais dos novos tempos e são desafios do tempo atual, do tempo do homem. São sinais do cuidado que devemos ter com a criação. São sinais de que não somos senhores absolutos do criado. Apesar de todo o desenvolvimento científico devemos tomar consciência do limite e quando o desenvolvimento não respeita esta harmonia então degeneramos e temos estas situações.

Naturalmente que para nós esta situação torna-se preocupante e é um desafio. Um desafio a sermos responsáveis pelo nosso destino e pelo destino dos outros, a sermos pessoas responsáveis e comprometidas com a nossa felicidade e com a felicidade dos outros.

Já não há nenhuma região do mundo fora desta situação epidémica e cada um de nós deve tomar consciência das responsabilidades que tem neste domínio. É a sobrevivência da nossa espécie que está em causa, não há dúvidas de que se trata de um ataque à criação e ao homem, que está colocado no centro, como imagem sublime da beleza e da perfeição criada.

O Santo Padre, e as várias Igrejas nacionais já tomaram medidas relativas às celebrações. A Igreja em Angola pode ter um papel preponderante na prevenção, na sensibilização para evitar a proliferação deste vírus?

Isto é uma atitude de responsabilidade cívica e responsabilidade pastoral e no exercício desta última devemos criar condições para que as pessoas possam sentir-se confiantes e confortáveis.

A Conferência Episcopal de Angola incentivará as pessoas a acatarem as indicações das autoridades sanitárias, do Ministério da Saúde, da DGS, e também estamos a tomar algumas medidas junto das nossas comunidades.

Não podemos esperar que a casa esteja a arder para implementarmos as medidas necessárias. Há necessidade de agir de modo preventivo e neste sentido já estamos a transmitir às nossas comunidades algumas medidas: a tossir, com a higiene, e já encerrámos as igrejas e suspendemos a catequese. Vivemos todos interligados.

CORRUPÇÃO. "O que queremos é que o desejo de justiça não se confunda com impulsos de vingança" 

Terminou há dias a Conferência Episcopal Angola-São Tomé (CEAST), à qual D. FIlomeno preside. Um dos temas abordados foi o combate à corrupção e o repatriamento de capitais retirados ilicitamente do país. A que conclusões é que chegaram em relaçao a um tema tão sensível?

É um tema importante e incontornável, não devemos de deixar de olhar para ele. A corrupção é uma doença e toda a doença não é boa para um corpo. E a corrupção não é uma doença qualquer, é uma doença grave! Se não for combatida, naturalmente vai conduzir à destruição. A nossa conclusão é que o combate à corrupção deve entrar na cultura do dia-a-dia da nossa sociedade.

No combate à corrupção, o Estado tem desenvolvido vários procedimentos. O que nós queremos e afirmamos é que o desejo de justiça não se confunda com impulsos de vingança. Que se faça uma justiça restauradora e reparadora. Este é o grande desafio.

Este país viveu durante a duas últimas décadas, de uma forma sistémica, mergulhado na corrupção. Tínhamos a corrupção transversal em todos os ambientes da nossa sociedade. Em alguns ambientes, com um determinado grau de intensidade e noutros ambientes com um grau elevadíssimo. É do domínio público.

Isto atingiu todas as classes dirigentes deste país: militares, polícias, administradores públicos das grandes instituições, pequenas e médias empresas, ministros, palácios presidenciais. Era o modus vivendis da sociedade angolana. O estranho, a novidade, era justamente alguém estar fora deste esquema.

Claro que a maioria da população estava fora desta situação. Aliás, neste quadro de corrupção a grande maioria da população é a grande vítima. Mas de um modo geral as pessoas que estiveram à frente da gestão das coisas públicas foram tocadas por este vírus -- já que estamos a falar de vírus -- altamente contagioso com os seres humanos.

Quando procuramos interpretar o nível de desenvolvimento do país e das populações, diante dos fluxos de receitas que o país teve no período do "boom" do petróleo, percebemos que alguma coisa não funcionou e o que não funcionou foi por causa deste vírus altamente destruidor que é a corrupção.

ANGOLA E A IGREJA. "O que falhou na nossa sociedade foram as instituições governamentais, o Parlamento, a magistratura"

Outro dos temas tratados na última CEAST foi a regulamentação do acordo-quadro entre Angola e a Santa Sé. O que é que esta regulamentação traz de novo a Angola?

É um quadro que regulamenta todas as questões referentes à relação entre a Igreja e o Estado, em Angola, dando um enquadramento legal às atividades da igreja no domínio da educação, da saúde, da promoção e educação da mulher, no domínio da infância, terceira idade e outros.

Até aqui esta relação estava dependente nestes pontos, que são fundamentais, da boa vontade do poder público, dos nossos governantes. Se a pessoa fosse simpática, cordata, sensível, as coisas andavam. Se não fosse assim as coisas ficariam adiadas.

Ora, dentro do quadro no domínio da educação, a Igreja pode abrir escolas, internatos, centros de formação profissional, pode elaborar um programa específico de matérias para as suas escolas e por diante, no campo da saúde, a mesma coisa. Também se define um pouco quais são as competências do Estado e as responsabilidades do Estado em todas aquelas obras de serviço público, que são a sua grande maioria.

Mais de 80% das escolas, centros de saúde, os internatos de terceira idade, os centros de dia e por aí em diante são obras de serviço público, não são apenas viradas para os católicos ou para os cristãos, são obras ao serviço da comunidade.

E é importante que entre o Estado e a Igreja haja uma regulamentação, mesmo a nível tributário, de taxas e impostos.

Muitas das nossas obras são obras sem fins lucrativos, mas sociais. E, por exemplo, um internato que está a acolher 200/300 crianças ou jovens, que não dão qualquer contribuição, tem de pagar imposto predial, como se faz isto? O acordo-quadro vem dar um enquadramento legal a estas questões, permitindo otimizar a presença da Igreja em vários ambientes da nossa sociedade.

A Igreja Católica teve um papel fundamental na democratização de Angola no pós-guerra e na definição e consolidação de um conjunto de valores-base na sociedade. Acha que a Igreja Católica falhou na moralização da classe política?

A minha resposta é não. Não, por duas razões: primeiro, a Igreja sempre se esforçou por moralizar, por alertar, por apontar caminhos de justiça social, de gestão responsável daquilo que diz respeito a todos e pertence a todos. Faltaram sim, ouvidos. Faltaram consciências. Primou o livre arbítrio de cada um. Eu posso, faço e desfaço. Houve este sentir-se “senhores do mundo”, “proprietários da nação”.

Esta foi a grande falha daqueles que, se quisessem, poderiam ter tido outras atitudes, pelo comportamento mais responsável e mais sério. Por outro lado, a Igreja ainda chegou a pensar em criar uma escola para a formação de líderes políticos, mas sabemos que vivíamos num regime de partido único, em que o monopólio da educação, da comunicação, o monopólio da economia, tudo dependia do partido que estava no poder, o partido do Governo. Atribuíam a si todas essas esferas, porque sabiam justamente do impacto, da influência que tinham na formação da consciência, no despertar da consciência de cidadania e, portanto, nas mudanças do tipo de sociedade que estamos a desenvolver e na capacidade de questionamento e de interpelação das políticas implementadas pelo partido no poder e pelo Governo.

Por tudo isto também não foi possível da nossa parte criar estes centros, que era intenção da Conferência Episcopal de Angola, preparando lideranças políticas para que os cristãos pudessem fazer as suas opções, e os diferentes partidos políticos pudessem gerir de acordo com aquilo que são os princípios fundamentais da doutrina social da Igreja.

Nós dizemos que o que falhou na nossa sociedade foram as instituições governamentais, falhou o próprio Parlamento, que não assumiu a sua função de representante do eleitorado, a sua função fiscalizadora perante as políticas governativas, falhou ainda a magistratura e poderíamos dizer que não faltaram incentivos às melhores práticas. Mas a história é mestre, a história é uma escola e com ela devemos aprender que os nossos atos deixam os seus rastos. Os nossos atos são sempre passíveis de análise e de juízo. Agora as pessoas confrontam-se com aquilo que de algum modo criaram e que, inconscientemente, procuraram.

Imperou o medo?

Sim e não. Temos de compreender isso atendendo ao desenvolvimento da sociedade angolana. Nós, depois da proclamação da independência, mergulhámos numa situação de conflito militar, com várias nuances étnicas, teológicas e com dificuldades de gestão da coisa pública. Havia uma consciência política, nacionalista, mas tudo ficou confuso com o início da guerra civil. Quando esta terminou o desejo de todos era a reconstrução da nação, a começar pelo próprio homem, pela própria sociedade. Isto não se deu de forma tranquila.

A guerra terminou como terminou e favoreceu quem tinha o poder na mão, que continuou a sentir-se senhor de todas as coisas, sem obrigação de prestação de contas a quem quer que seja. O povo envolvido por isto olhava as coisas à distância, envolvido pela máquina de propaganda dos que geriam e governavam o país. Ao mesmo tempo, as poucas vozes que foram surgindo na sociedade civil, mas que aos poucos eram cada vez mais numerosas, manifestavam por outro lado que o medo não existia em absoluto. Havia uma camada da população, que em silêncio consentia, permitia e suportava e gemia com a situação, mas também apareciam aquelas vozes, aquelas pessoas que iam falando e se iam destacando, o Estado não está bem.

Uma sociedade com comportamentos mistos...

Por um lado receio e medo, mas por outro também sinais de muita coragem, de muita capacidade de denúncia, encontramos isto em muitos movimentos que foram surgindo na nossa sociedade, já desde os anos 70. Temos por exemplo a Associação Cívica de Angola (ACA), criada logo nos finais dos anos 70, que apelava à cidadania, à responsabilidade dos cidadãos na construção da sociedade, à reivindicação dos seus direitos, sobre a necessidade de terem voz. Não era uma associação partidária, o assento era justamente a cidadania, para ser mais aglutinadora, mais mobilizadora.

Nesta época tínhamos o grande confronto UNITA/MPLA. Estavam ali como uma voz independente e autónoma, olhando justamente para Angola. Portanto, não faltavam esses gestos de coragem, alguns mesmo heroicos. Muitos foram perseguidos, perderam o emprego, não puderam progredir na carreira profissional, ficaram como pessoas de 2ª classe e muitas destas pessoas eram muito competentes, muito capazes. Porém, ao mesmo tempo, por uma questão de acomodação, não querendo perder o emprego, não querendo perder a estabilidade económica e financeira, a sustentabilidade das famílias, preferiam ficar nos seus lugares. Com isto não queriam dizer que aprovavam todas aquelas coisas. Portanto, temos que compreender as pessoas dentro do contexto político que nós vivemos durante muitos anos.

E com o fim da guerra o quadro alterou-se?

Quando vem o fim da guerra e se entra no período de paz, há todo esse benefício da dúvida, este acreditar que as coisas vão evoluir, mas como nação ainda não tivemos praticamente nenhum ano. Estamos no ano zero. Nós nascemos como um país fragmentado, em regiões, em zonas de guerrilha, de semi-guerrilha, zonas de segurança, zonas de relativa estabilidade. Vamos dar o benefício da dúvida e vamos ver se pela via do diálogo, pela via parlamentar, pela via da participação cívica, as coisas se transformam. Chegou-se a um ponto em que os sinais já eram evidentes.

Depois de 2014, praticamente, posso dizer, que havia já esse clima de saturação, de insatisfação, os vários movimentos de contestação, mesmo académicos, círculos de bairro, tiveram que tomar outra forma, que deu justamente esta mudança dentro do próprio partido. O atual Presidente da República tomou as rédeas do país e Angola vai tomando esta nova configuração. Tem inspirado grande confiança em grande parte da população, ceticismo em alguns observadores externos e resistências noutros setores da sociedade, mas acreditamos que o caminho não pode ser outro, senão o caminho da restauração dos princípios, da legalidade, da justiça, do bem da comunidade, no centro do agir e do pensar político.

O modelo económico devia ter outras bases?

Somos um país com uma produção do mercado interno muito reduzida. Angola vive 70% dependente do exterior, como é com a farinha de mandioca, de milho, como é com o açúcar, o óleo. Os dólares de Angola não deviam ser o petróleo, mas a nossa agricultura, a pecuária, a pesca, a capacidade da indústria transformadora. Essa seria a sustentabilidade da nossa economia. Não tendo isto a funcionar em pleno, não é possível gerar empregos. O grande empregador não deve ser o Estado, mas as empresas, as fazendas, os prestadores de serviços, a construção civil. Neste momento, por razões conjunturais, estamos como estamos.

No domínio do combate à pobreza, a Igreja está em sintonia com as preocupações do Governo, ambos estamos de acordo quanto à situação de pobreza que se vive e que é preciso uma mão solidária. Desenvolvemos uma ou outra campanha pelo país. A nível da Arquidiocese de Luanda estamos a implementar o projeto das cozinhas sociais /comunitárias, que funcionam nas paróquias. São servidas refeições quentes às pessoas mais necessitadas, em 34 paróquias de Luanda e a oferta de uma cesta básica, uma espécie de banco alimentar para famílias mais carenciadas. Não funciona a nível de todas as paróquias, mas pelo menos em 12 paróquias já é uma realidade.

É um programa que pretendemos estender às periferias. Mesmo na cidade há dificuldade em assegurar as três refeições por dia, há famílias que têm mesmo de optar entre comerem os pais ou os filhos. São decisões muito dolorosas, suportadas com o espírito de sacrifício da maternidade e paternidade, que existe ainda bem vincado na nossa cultura, nas nossas famílias.

Nesta luta contra a pobreza, nós queremos contribuir para a mudança de mentalidade, não vamos privilegiar uma ação assistencialista. Talvez não sejam as ideais, mas as possíveis, nos dias de hoje, que é gerar a auto-sustentabilidade das próprias famílias. Temos programas de microcrédito para as vendedoras ambulantes, para os rapazes que ficam na rua vendendo pequenos utensílios. Procuramos envolvê-los nestes microprogramas.

Estamos a procurar, finalmente, neste domínio, a criação na cidade de três grandes centros sociais, com foco no combate à fome. Seriam centros que serviriam diariamente refeições quentes para pessoas necessitadas. A exemplo do trabalho que já é feito pelas cozinhas sociais, teríamos identificados na periferia estes centros, para apoiar estas pessoas, no domínio nutricional.

Mas esse projeto ainda não está implementado...

Está em fase de implementação. Já identificámos as áreas, agora precisamos de passar à construção dos centros e a mobilização das equipas e dos meios. É algo que esperamos que no prazo de 1 ano possamos concretizar.

O projecto do microcrédito abrange já quantas pessoas? Dispõe desses dados?

Neste momento não tenho dados e para não falhar nos números prefiro não falar. Está a ser um projecto muito interessante.

ANGOLA, HOJE E NO FUTURO. "Somos o país da região austral com o maior número de mães solteiras, de mulheres abandonadas"

 

Desde a sua nomeação, D. Filomeno definiu como grandes objetivos da relação Igreja/Estado as bases sólidas de uma sociedade, alicerçadas na educação da juventude, no emprego e no combate à pobreza. Que balanço faz deste período?

 

Há pontos que registam já muito avanço, se falarmos no domínio da Educação, no domínio do combate à pobreza. Mas há muitos pontos que estão dependentes da situação económica que Angola vive, como a criação de emprego, para os quais não basta o simples querer. São resultado da robustez de uma economia e a nossa situação não vive bons momentos. Somos muitos dependentes do petróleo, tudo gira à volta disto.

A Igreja centrada na intervenção social, aproveitando a proximidade às pessoas...

 

Sim, há esta proximidade, que gera confiança e faz com que os compromissos se desenvolvam. E responsabiliza-nos também! Nós, como Igreja, não podemos limitar-nos apenas ao discurso do dia-a-dia, as pessoas precisam de gestos concretos e que a Igreja ponha os recursos e a experiência que tem em vários ambientes, com capacidade de envolver pessoas e instituições ao serviço destas franjas da população, mais fragilizadas e carenciadas.

Na senda de novos princípios de que falava há pouco, acha que cabe uma restauração do conceito de família? Faço esta pergunta tendo em conta uma questão entendida como tabu, que é a poligamia, que desestrutura esse conceito de núcleo familiar e que é hoje um grave problema social em Angola. Como é que a Igreja olha para esta questão, tida ainda como cultural?

Não é que seja tida como muito cultural. Eu digo que há hoje um aproveitamento, uma deturpação daquilo que era a poligamia tradicional. Era de facto um regime de vida familiar, mas com as suas normas, os seus princípios, que nunca criaram conflitos entre os membros da própria família, entre as várias esposas e os vários filhos, que viviam, assim podemos dizer, de modo harmonioso, dentro de um determinado mundo cultural, dentro de uma determinada visão do conceito de família. Esta realidade que temos hoje é a de um homem com várias esposas, mas sem qualquer vínculo cultural, sem qualquer referência a este princípio tradicional da poligamia. Na poligamia cultural as esposas conheciam-se, não havia segredos, os filhos conheciam-se. A família sabia. O que nós temos é uma situação totalmente diferente.

Hoje, eu penso que uma família monogâmica é um fator importantíssimo na estruturação da sociedade, na estabilidade emocional e psicológica das pessoas, dos próprios filhos e no desenvolvimento harmónico e social. Quer queiramos quer não, uma situação de promiscuidade familiar desorienta e desarticula toda a família, que é o cerne, é o fundamento. Se as pessoas em casa encontram esta estabilidade têm consigo o fundamental, para que possam, com serenidade, desenvolver todas as outras dimensões da vida.

Para além do problema social que acaba por despoletar, pelo abandono de milhares de crianças por parte dos pais...

Nós temos tido um grande problema nos últimos anos aqui em Angola. Temos, por um lado, um conceito de família bem enraizado, muito cultivado, valoriza-se muito a família, dizemos é bom ter família. As pessoas até dizem: 'mas estes são todos parentes?' Mas temos também esta situação, que vai aumentando, de paternidade e maternidade irresponsável. Angola, na região austral, é o país com o maior número de mães solteiras, de mulheres abandonadas, que são mães e são pais. São viúvas de esposos vivos. Isto é um drama! Não só para a própria pessoa, que está nesta situação, mas para a própria sociedade.

Tem havido evolução dos casamentos católicos?

Há um número cada vez maior de casamentos. Embora a nível mundial os jovens não queiram compromissos de estabilidade, quase que fogem de compromissos estáveis, preferem uma relação de convivência, sem grandes compromissos, nós notamos que entre nós ainda há este sentido de matrimónio, com vínculo que estabiliza, que oficializa a vida familiar. Temos cursos para preparação do matrimónio frequentado por jovens católicos e não católicos.

Sobre a liberdade religiosa e a forma como em Angola foram proliferando muitas seitas e outras práticas: nos últimos anos, o Governo procurou disciplinar este setor, acabando com algumas, até pela ausência de compromissos fiscais. Isto reflete a moralização da própria sociedade em geral ou é apenas um caminho? Algumas destas práticas estão mais contidas?

Antes de mais devemos salvaguardar o princípio da liberdade religiosa, que está ligado ao princípio da liberdade de consciência, e as pessoas são livres de exprimirem os sentimentos, as convicções, as crenças que têm, e de as praticarem desde que não choquem, não ofendam aquilo que é aceitável como padrões de respeito pela dignidade própria e a dos outros.

Agora há um outro plano, que é a regulamentação da prática religiosa e acreditamos que em Angola este aspecto ainda não foi suficientemente pensado e devidamente estudado. Precisamos de uma legislação mais bem elaborada, mais sólida e que depois seja verdadeiramente verificada e acompanhada. Isto não tem sucedido, de tal modo que vemos aí grupos religiosos que surgem como grupos empresariais, como clínicas de saúde e tantas outras coisas, que por fim desorienta a própria sociedade e o próprio indivíduo em sociedade e põem até em causa a própria segurança dos cidadãos. É um tema de atualidade, para alguns é tabu, não se deve falar disso, cada um acredita no que acredita, faz o que bem entender, mas a vida em sociedade precisa de regras. O que eu digo sobre este ponto, liberdade total no respeito pelo bem dos outros, pelo maior bem da sociedade, mas que haja leis bem claras e bem definidas.

D. Filomeno enquanto grande apologista da cultura da tolerância – e isso é sempre realçado pela comunidade católica – como é que olha para estes casos com contorno de racismo, que proliferam no mundo inteiro, e para algumas práticas recorrentes de diversos países relativamente aos refugiados?

O racismo é uma expressão de pobreza antropológica, pobreza espiritual, pobreza cultural. Nós temos diante de nós o homem, o outro ser, no qual eu contemplo parte do meu eu, com especificidades próprias, diferentes do meu universo, mas que fazem parte do meu universo.

Em relação às atitudes de rejeição do outro, a questão da migração, sabemos que isto resulta de vários fatores. Nem sempre podemos acusar as pessoas, que têm esta atitude de receios em relação aos migrantes, automaticamente racistas ou xenófobas. Nós estamos no mundo e sabemos o que é que pode causar estas atitudes. Precisamos sim de desenvolver cada vez mais a cultura que o evangelho nos traduz numa palavra muito próxima, muito simples, que parece quase infantil, que é o amor ao próximo.

Eu acho que aí atingimos o nível mais alto da racionalidade e da afectividade humana, não ver o outro com receio, não se assustar com a presença do outro, mas procurar descobri-lo. Quando nós dermos estes passos, nós iremos superar muitas dessas situações, que afligem hoje a humanidade em várias partes do mundo.

Eu não faço nenhuma condenação genérica, desta ou daquela pessoa, que reage deste modo em relação à raça. Cada um tem a sua história, tem a sua vivência, as suas experiências, vivemos cada um com os seus traumas, isso não justifica tudo, evidentemente. Devemos ter a capacidade de fazer um caminho para ultrapassar e superar e eu vou justamente nesta linha da educação, a linha da abertura, cada vez mais aos raios do sol, que todos os dias nos ilumina e mostram-nos a grandeza e a beleza do universo, que é a grandeza e a beleza do homem, do homem que acolhe e do homem que espera ser acolhido.


D. Filomeno do Nascimento Vieira Dias, 61 anos. Arcebispo de Luanda desde 2014, é também presidente da CEAST – Conferência Episcopal de Angola e São Tomé, desde 2015.

Desde 2014 que é Conselheiro Pontifício para a Cultura na Santa Sé.

Rate this item
(1 Vote)