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Quarta, 10 Setembro 2025 13:20

A ONU está à beira da irrelevância?

A Organização das Nações Unidas nasceu, em 1945, como um dos resultados mais importantes da 2º guerra mundial, com a grande promessa de impedir que a humanidade voltasse a mergulhar no abismo da guerra, tal como foi na época.

Era o tempo do pós-guerra, e as potências vitoriosas acreditaram que poderiam criar de facto um sistema de segurança colectiva capaz de equilibrar interesses e, ao mesmo tempo, preservar a paz a nível do sistema internacional. No entanto, quase oitenta anos depois da sua criação, é legítimo nos perguntarmos: será que a ONU ainda cumpre esse papel idealista, ou estamos a assistir um colapso silencioso da sua relevância?

Quem olha para o Conselho de Segurança da ONU, percebe facilmente a contradição. Tal estrutura, ao invés de vez de funcionar como guardião da paz, tornou-se nos últimos anos um palco de disputas entre as grandes potências. Vê-se claramente a Rússia, China e Estados Unidos, cada um a sua própria maneira, a transformarem o veto num instrumento de bloqueio permanente. A guerra da Ucrânia é um exemplo claro e gritante desta premissa: enquanto cidades eram arrasadas pela instrumentalização de meios bélicos desproporcionais, a ONU mostrou-se impotente, limitada a discursos que pouco alteraram a realidade no terreno. O mesmo se repete em Gaza, onde a paralisia do Conselho de Segurança deixou milhões à mercê de bombardeamentos e bloqueios.

O grande pai do realismo político, Hans Morgenthau, dizia que a política internacional é “a luta constante pelo poder” e essa frase parece resumir bem o destino da ONU, uma vez que esta tem se mostrado presa aos cálculos estratégicos dos Estados mais fortes.

Sem dúvidas, trata-se de uma situação bastante complicada porque, à medida em que a ONU se enfraquece, surgem outros espaços de decisão no interior do sistema internacional, os quais podemos aqui considerar como subsistemas internacionais. Os BRICS+, o G20, a União Africana e até fóruns militares informais, como a recente aproximação entre China, Rússia, Irão e Coreia do Norte, ganham terreno. Temos que admitir que, formalmente estas estruturas não substituem a ONU, mas acabam tendo algum impacto do ponto de vista da redução do seu peso político sobre determinadas questões de âmbito global.

Tal como afirmava Raymond Aron, a ordem internacional não é eterna, ela é sempre “provisória e frágil”, sujeita ao jogo de forças e à capacidade de adaptação das instituições. O que vemos hoje é a lenta substituição da centralidade da ONU por uma diplomacia de blocos, menos universal e mais pragmática.

CRISE DE REPRESENTATIVIDADE

Outro ponto crítico é a falta de representatividade. O mundo mudou radicalmente desde 1945, mas a arquitetura da ONU permanece quase a mesma. O continente Africano, com 54 Estados, não tem um único assento permanente no Conselho de Segurança, e desde muito cedo, têm vindo a reivindicar um espaço no referido Conselho, para poder de algum modo moldar a agenda do Conselho no que toca a olhar para alguns conflitos que afectam o continente, descontinuando assim a logica da priorização das grandes potências.

A América Latina por sua vez continua marginalizada. A Índia, com mais de 1,4 bilhão de habitantes, não participa das grandes decisões. Essa discrepância mina a legitimidade da instituição e alimenta a ideia de que a ONU é apenas um clube elitista. Tal como dizia Hedley Bull, no clássico A Sociedade Anárquica, as instituições internacionais só sobrevivem enquanto refletem os interesses comuns dos Estados; quando deixam de fazê-lo, tornam-se obsoletas.

ANARQUIA DOS BLOCOS

A consequência desse esvaziamento é previsível: se a ONU se tornar irrelevante, o mundo pode entrar numa fase de fragmentação, em que blocos regionais definem as regras à sua maneira. Isso significa menos cooperação em temas globais e mais disputas por influência. Questões como mudanças climáticas, pandemias ou fluxos migratórios ficariam reféns de acordos parciais, sem coordenação global. O multilateralismo, tão proclamado, daria lugar a uma espécie de “anarquia organizada”, onde cada potência dita as normas no seu espaço de influência.

O perigo maior não é a ONU desaparecer de um dia para o outro, mas perder a sua relevância no silêncio das diplomacias. Continuará a existir como fórum simbólico, mas sem peso real nas grandes decisões. E se isso acontecer, será um fracasso colectivo, onde a humanidade terá desperdiçado o único espaço universal de diálogo que conseguiu construir por cima de muitos conflitos bélicos. Como advertia Norberto Bobbio, “a paz perpétua não é um dado, é uma tarefa”; se os Estados não estiverem dispostos a reformar e revitalizar o sistema multilateral, viveremos cada vez mais sob a lei do mais forte.

O desafio, portanto, é claro: ou os países aceitam repensar a ONU, ampliando a sua representatividade e restaurando a sua eficácia, ou resignam-se a um futuro em que as grandes potências e os blocos regionais ditam as regras do jogo. Entre a esperança e a irrelevância, a ONU está numa encruzilhada histórica.

JUVENAL QUICASSA, Especialista em Relações Internacionais.

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