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Quarta, 24 Mai 2017 19:01

"Silêncio terrível" da política portuguesa sobre o '27 de maio' em Angola

A política portuguesa, à esquerda e à direita, remeteu-se a um "silêncio terrível" durante 40 anos sobre o alegado golpe de Estado de 27 de maio de 1977 em Angola, lamenta o irmão de uma das vítimas.

"Isto foi dramático, uma situação extremamente complicada. Para a esquerda portuguesa, o MPLA era um regime de esquerda e 'a Esquerda não reprime', como faz o Pinochet, no Chile, ou o Videla, na Argentina. A Esquerda não mata. Isto é o que, ingenuamente, dizem as pessoas de esquerda", disse à agência Lusa Edgar Valles, irmão da militante comunista Sita Valles, assassinada na repressão que se seguiu ao alegado golpe.

Sita Valles era uma "idealista absoluta" que achou que poderia salvar Angola - Extratos de entrevista de Edgar Valles à agência Lusa

No sábado cumprem-se 40 anos sobre o 27 de maio de 1977, descrito como uma tentativa de golpe de Estado por "fracionistas" do próprio Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), então já no poder do país recém-independente, contra o Presidente Agostinho Neto e "bureau político" do partido.

Segundo vários relatos, milhares terão morrido na resposta do regime angolano, nomeadamente os dirigentes Nito Alves, então ministro da Administração Interna, José Van-Dúnem, e a sua mulher, Sita Valles.

Edgar Valles, que cita cálculos feitos pela Amnistia Internacional, fala em 30 mil vítimas mortais na repressão que se seguiu contra os "fracionistas" ou "Nitistas", como eram conhecidos então.

"[A esquerda, principalmente o PCP] não 'aceitava' que o MPLA, sendo constituído por pessoas de esquerda, matasse tanta gente. É um bocado como os crimes de Estaline, as pessoas não aceitavam e, por isso, as pessoas de esquerda preferiam não falar no assunto", recordou o irmão de Sita Valles, que nos anos 1970 chegou a ser a número dois da União de Estudantes Comunistas (UEC), organização juvenil dos estudantes comunistas portugueses.

"O PCP, apesar de saber que estava a ser assassinada muita gente, praticou um silêncio total", lamentou Edgar Valles, acrescentando que o lado da direita não fica melhor na fotografia.

"As pessoas da chamada direita, como achavam que quem estava a ser vítima desta repressão tão feroz era gente de esquerda, ficaram também em silêncio, com este pensamento: 'Eles meteram-se na boca do lobo, o problema é deles'", observou.

Assim, salientou o advogado, "durante estes 40 anos houve um silêncio terrível" sobre os acontecimentos de maio de 1977 em Angola,

"Uma situação que pode ser considerada a maior repressão que alguma vez houve em África", opinou.

Edgar Valles participa hoje numa audição pública no Parlamento português organizada pelo Bloco de Esquerda, a propósito dos 40 anos do alegado golpe "Nitista".

"Estou muito entusiasmado com esta sessão e reconhecido ao Bloco de Esquerda por ter agarrado este assunto, porque há forças políticas que apenas por calculismo, por sentirem que ainda é importante fazerem negócios com Angola, mas com receio de que a abordagem deste tema possa influenciar as relações económicas, preferem pura e simplesmente olhar para o lado, assobiar e fingir que não é nada consigo. O Bloco de Esquerda, pelo menos teve esse mérito", realçou o irmão de Sita Valles.

Na iniciativa de hoje no Parlamento participam ainda um sobrevivente da repressão do MPLA que se seguiu ao golpe, José Reis, e a irmã de um militante do MPLA fuzilado na época, Rui Coelho.

Sita Valles era uma idealista absoluta" que achou que poderia salvar Angola -- Edgar Valles

Edgar Valles considera a sua irmã Sita, morta no alegado golpe de Estado em Angola de 27 de maio de 1977, uma "idealista absoluta" que errou ao achar que poderia mudar um regime com um "movimento de massas".

No sábado cumprem-se 40 anos sobre o 27 de maio de 1977, descrito como uma tentativa de golpe de Estado por "fracionistas" do próprio Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), então já no poder do país recém-independente, contra o Presidente Agostinho Neto e "bureau político" do partido.

Segundo vários relatos, milhares terão morrido na resposta do regime angolano, nomeadamente os dirigentes Nito Alves, então ministro da Administração Interna, José Van-Dúnem, e a sua mulher, Sita Valles.

Edgar Valles, que cita cálculos feitos pela Amnistia Internacional, fala em 30 mil vítimas mortais na repressão que se seguiu contra os "fracionistas" ou "Nitistas", como eram conhecidos então.

"Ela tinha esta conceção, que é a conceção marxista de que as mudanças de regime não são feitas por golpes de Estado, mas sim por movimentos de massas", contou Edgar Valles em entrevista à agência Lusa.

"Penso que esse foi o grande erro dela, que transportou para Angola. Ela e as pessoas à sua volta, o José Van-Duném e o Nito Alves, acreditaram que era possível, através de movimentações de massas, forçar o regime a alterar a trajetória que estava a ser patente: a corrupção, os desvios, com dirigentes a pensar só na apropriação de bens e no enriquecimento ilegítimo", acrescentou.

O movimento de Nito Alves e José Van-Dúnem representava uma fratura dentro do MPLA, já que se opunha à política de não-alinhamento defendida pela fação do então presidente angolano, Agostinho Neto.

"Também não sou ingénuo: na altura o nosso grupo era profundamente pró-soviético. Porque se julgava que a União Soviética era a 'Mãe de Todas as Revoluções' e o regime angolano estava a caminhar para uma situação de não-alinhamento", recordou Edgar Valles a propósito dos acontecimentos de maio de 1977.

Assim - por acreditarem na componente popular do seu movimento e por terem recebido informações de que o regime pretendia atentar contra as suas vidas -- Nito Alves e José Van-Dúnem "resolveram desencadear uma ação popular junto do Palácio do Governo, levando a população à rua numa prova de força".

"Foi dada a garantia, por parte de diplomatas soviéticos, de que os cubanos [na altura em missão em Angola] não iriam intervir. A população veio para a rua, Agostinho Neto telefona a Fidel de Castro a dizer que está em curso um golpe de estado e que vai ser derrubado se não houver uma intervenção cubana. Fidel Castro dá instruções aos seus comandos militares em Angola para intervir e o que se segue é um banho de sangue", lembra o advogado.

Edgar Valles considera que os "Nitistas" cometeram outro erro: o de não terem planeado, de facto, um golpe de estado.

"Isso foi um erro, porque se tivesse sido, de facto, planeado um golpe de Estado militar, com a tomada de postos chaves - como aconteceu em Portugal no 25 de abril, que foi um golpe militar - o rumo das coisas teria sido outro. Ao fim ao cabo, ficou-se com a fama de ter tentado um golpe de Estado, sem sequer se ter tido o proveito de o ter tentado", salientou.

Ou seja, o idealismo do grupo de Nito Alves teve como resposta do regime angolano "a maior repressão que alguma vez houve em África".

"A minha irmã era, acima de tudo, uma idealista. Quando a revolução em Portugal entrou em fase de refluxo, ela achou que ia salvar o mundo, ia salvar Angola. O Álvaro Cunhal tentou dissuadi-la - e isso vem documentado num livro da Zita Seabra - porque ele sabia o que era o MPLA. Tentou dissuadi-la, dizendo que não valia a pena ir para Angola e que isso até seria contraproducente. Mas ela no seu idealismo absoluto, julgou que ia salvar a pátria. E hoje, olhando para trás...", recordou.

LUSA

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