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Segunda, 27 Agosto 2018 15:03

''Em vez de acumulação primitiva fizemos uma acumulação delinquente de capital''

Quem o diz é o embaixador de Angola na Alemanha, Alberto Neto, um “lourencista” que partiu a loiça toda em críticas ao consulado de José Eduardo dos Santos, na badalada entrevista que concedeu à Luanda Antena Comercial-LAC

Definitivamente, a roda andou. As relações entre “eduardistas” e “lourencistas” estão mesmo a pegar fogo, com os adeptos de cada uma das alas a fazerem questão de posicionar-se. Com efeito, num dos assuntos mais tórridos da semana que findou, a entrevista que o embaixador de Angola na Alemanha concedeu, na passada terça-feira, 21, ao programa ‘Café da Manhã’ daquela estação emissora, colocou bem no centro da rua as disfarçadas hostilidades entre as alas afectas a José Eduardo dos Santos e João Lourenço.

Alberto Neto, que escalou Luanda para participar na última reunião do Comité Central do MPLA, antes de regressar ao seu posto na Alemanha, país aonde o presidente João Lourenço esteve em visita oficial a meio da semana, não foi parco em críticas ao consulado de Eduardo dos Santos (JES). Tudo bem que o sucessor de Agostinho Neto teve virtudes como o ter pacificado o país, assegurando a sua integridade territorial e física e garantindo a unidade dos angolanos. Mas não se coibiu de deixar nas entrelinhas que o anterior Presidente da República terá sido das piores coisas que aconteceram a Angola e aos angolanos, com um legado terrível expresso em miséria, corrupção e nepotismo, entre outros males.

Sem meias medidas, o diplomata foi ao ponto de desqualificar por completo o modelo de empoderamento seguido por JES, para a formação de uma burguesia nacional que fosse a alavanca para o desenvolvimento da economia do país. Na visão de Alberto Neto, a dita acumulação primitiva de capital não passara de uma “acumulação delinquente de capital”. Não foi Bob Geldof, músico e activista britânico, que há uns anos atrás fez afirmação semelhante e todas as “virgens” do regime angolano se sentiram ofendidas até ao âmago? A roda andou mesmo.

Alberto Neto também flagelou a filha primogénita do antigo presidente da República. Ao referir-se às recentes ameaças alvitradas por Isabel dos Santos de vir a processar o Estado angolano, Neto considerou que ela estava “a cometer erros crassos e de palmatória”. “O Governo não vai ficar de braços cruzados em relação às reacções dela. Também vamos, talvez, destapar a panela. E se se destapar a panela, aí vamos ver o que aconteceu, do ponto de vista histórico, para ela ser o que é neste momento” – arremeteu o embaixador.

A roda, de facto, andou. E por isso – com a devida vénia à LAC – o Correio Angolense faz questão de pôr à disposição dos seus leitores as partes mais “suculentas” das declarações do diplomata angolano que seriam, sem dúvida, coisa para arquivar e o seu autor imediatamente excomungado, se ainda se estivesse nos celebrizados tempos do centralismo democrático.

LAC – No quadro das mudanças políticas que estão a ocorrer no país no que diz respeito ao combate à corrupção, Angola terá de provar alguma coisa a Alemanha?

Alberto Neto – Eu penso que não. As coisas estão todas à vista. Quem a nível internacional faz a análise sobre a situação de Angola dá logo conta que estamos num processo de mudanças. E esta mudança é para que a gestão da coisa pública e sobretudo a governação seja mais transparente, seja mais rigorosa no sentido de não beneficiar essencialmente “A” em detrimento de “B” ou “C”. Isso é notório e os alemães sabem disso e têm acompanhado perfeitamente a evolução dessa gestão nova do Presidente João Lourenço.

Portanto, não há necessidade de se provar absolutamente nada?

Absolutamente nada. A prática em si está a demonstrar que estamos no bom caminho em relação à governação.

Senhor embaixador, quando olhamos para a relação com os países do Ocidente, sobretudo da Europa, uma das grandes preocupações tem a ver com a imigração. O Presidente João Lourenço abordou esta situação na Bélgica e disse mesmo que se sentia envergonhado por uma série de situações que ocorrem. A Alemanha hoje é um dos maiores acolhedores de refugiados. Acha que esta situação vai estar na agenda do Presidente?

Certamente analisar-se-á. Mas nós temos o azar de também sermos os maiores acolhedores da imigração, sobretudo clandestina, no nosso país. Portanto estamos mais ou menos em circunstâncias iguais, embora o problema da imigração a nível da Europa, e sobretudo na Alemanha, esteja a custar caro à chanceler alemã. Custos políticos fundamentalmente. A direita alemã está a subir devido fundamentalmente a este problema da política migratória que o governo alemão tem.

"“José Eduardo dos Santos será lembrado como um bom patriota, dedicado à causa da luta. Um servidor bom do seu país e do seu povo. Esse é o lado positivo. O lado negativo, para mim, é de facto a gestão económica do país. Deixou o país praticamente numa situação desesperada para o novo Presidente. Praticamente o país está em bancarrota. Nós não temos noção do que é que se passa do ponto de vista económico e financeiro, mas nós estamos muito mal. Muito mal mesmo!”"
E como é que a Alemanha pode estancar isso? É apoiando os países africanos sobretudo no desenvolvimento, porque a causa dos refugiados em África tem sido a situação precária em que se encontra o continente? A estratégia passa por aí?

Sim, passa por aí. É necessário que se faça uma boa governação para que os resultados dessa governação se reflictam nos governados, nas pessoas que estão a ser governadas. Infelizmente o que se passa em África é o contrário. Existem elites política a nível do continente africano que, de uma maneira geral, devido a fenómenos como a corrupção, a tentativa de enriquecimento, etc., etc., pura e simplesmente marimbam-se para os governados. E as consequências estão aí. Então engendram situações tais que determinam a emigração. Nós não poderemos dizer que os europeus ou os americanos é que são culpados dessa situação. Até há alguns teóricos que estão a chamar a isso como o novo fenómeno de escravatura. Se durante a fase mercantilista surgiu a escravatura com milhões e milhões de africanos a irem para a Europa e para a América no sentido de desenvolverem o tal capitalismo mercantilista que engendrou nesse capitalismo actual, agora o fenómeno também é uma espécie de escravatura, mas voluntária. A razão é económica fundamentalmente. Porquê? Porque nós os governantes cometemos falhas crassas, crassas, crassas... que uma das consequências é essa.

Neste momento o país está em mudanças políticas, alterou um pouco a imagem de Angola no exterior. O senhor embaixador já falou um pouco dessas mudanças e da forma como o país é visto lá fora. E o senhor enquanto político que leitura é que faz dessas mudanças que estão a acontecer internamente?

São mudanças para melhorarmos o nosso país. Eu não tenho dúvidas nenhumas disso. Numa análise fria vemos que nalguns aspectos falhamos redondamente e até nalguns aspectos de alcance estratégico, que podiam ter melhorado substancialmente o nosso país, mas falhamos aí. Bom, eu também me considero partícipe dessa falha...

Então, assume também essa falha...

Sim, assumo também essa falha porque eu faço parte da superstrutura política desse país. Daí que não vale a pena me armar, como se diz, em pingareiro. Mas não deixo de analisar o que se fez de bom e o que se fez de mau. A nível do que fizemos de mau há algumas situações que são terríveis. Por exemplo, até hoje a refinaria... nada! E a refinaria tem uma importância estratégica. E por quê que não surgiu a refinaria? Tão simplesmente porque havia um pequeno grupo de pessoas que beneficiavam da importação do combustível e por que queriam enriquecer com base nisso, foram sabotando. Foram criando condições para meter sempre o pau na roda para a refinaria nunca surgir. E noutros aspectos... Por exemplo, no agroindustrial. Não percebo, sinceramente, por que é que até hoje, se eu for ao Kero ou ao Candando, não encontro um quilo de arroz produzido em Angola. Eu não sei se, alguma vez, o José Rodrigues já encontrou um quilo de arroz produzido em Angola. De açúcar talvez! Não sei se aquela coisa em Malanje está a produzir mesmo açúcar ou não (risos)... Portanto, são as tais situações e nós estamos há cerca de 16 anos de paz! Como é que vamos fazer investimento – e gastamos dinheiro – no Baixo Longa de 70 milhões de dólares ou nesse problema do arroz que está a apodrecer no Cunene? Investimentos grandes e a gastar dinheiro e, na prática, esse investimento nem sequer beneficia directamente os reais consumidores. Investimentos feitos fora ou afastadíssimos dos centros de consumo principais. Dá nisso!

LAC – E como é que se chega a esse ponto?

Considero que a causa principal são as más políticas. Por exemplo, a nível da política agrária angolana que nós viemos levando até aqui. Considero que estamos a cometer uma falha grande, de pensar que só a economia de subsistência, a economia familiar, é que vai resolver o problema da agricultura em Angola. Nunca resolveu! Nem no tempo colonial! Nós continuamos a importar milho para ração. Veja só que a importância dos cereais é tão grande que a autossuficiência na produção de cereais engendra imediatamente um efeito multiplicador. Porque com os cereais você faz a ração e a ração é para criar porcos, para criar galinhas, para criar uma série de coisas e surge o efeito multiplicador aí. Temos de instituir, a nível de políticas agrárias, a macro-agricultura. Eu estive no Brasil e visitei as maiores empresas de agropecuária. Até o actual ministro da Agricultura, Blairo Maggi, que foi governador do Mato Grosso (o segundo maior produtor de soja do mundo), eu visitei. E vi que, de facto, ele levou a cabo uma agricultura empresarial tão grande, tão grande que só de soja há mais de 200 mil hectares de solo a produzirem. A nível do milho visitei os manos Maquetes que tinham 180 mil hectares de solos a produzir. Portanto, nós temos de rever um bocadinho essa política de fazer depender a produção agrícola só da economia familiar. Assim não vamos atingir lá e continuaremos sempre na importação dos insumos que vão servir de matéria-prima para a produção daquilo que queremos desenvolver, sobretudo da agricultura, que é determinante para nós. Temos de tirar o nosso povo da fome e da miséria e só a produção interna é que fará com que isso aconteça.

"“Felizmente o nosso presidente [João Lourenço] tem essa coragem [política]. E está a avançar mesmo. Com todos os pontapés e socos que de vez em quando lhe dão, mas ele está a avançar. Oxalá não perca esse pendor e essa pujança que está a demonstrar. “"
Este é um dos casos. Mas depois há outras questões...

Sim, isto no sector primário. Mas há também a nível da indústria. Por exemplo, por que é que até agora só o petróleo e diamantes? Porquê?

Das falhas que aponta também há uma outra, não menos importante, que é a gestão dos dinheiros públicos...

Este é outro problema. Tu quando crias um modelo económico em que o objectivo inicial ou principal é enriquecer grupos sociais do seu interesse, dá nisso! Esse fenómeno não é apenas de África; também é um fenómeno da América Latina. Há um economista muito bom e do qual gosto muito – que também faz comentários aqui na LAC –, o Jonuel Gonçalves. Certa vez ele fez uma análise com a qual concordo integralmente. Ele disse que a acumulação primitiva de capital, seja no início do capitalismo, com a escravatura, etc., seja actualmente em África como na América Latina, em vez de ser acumulação primitiva de capital, é acumulação delinquente de capital, como ele chama (risos). E tem razão. Veja o que se passa com a classe política africana em relação à criação de uma burguesia nacional. Sem burguesia não temos capitalismo. O capitalismo engendra o surgimento de classes sociais, com uma burguesia detentora de poder económico que vai guiar, digamos assim, o avanço dessa economia. No nosso caso vertente, também tentamos criar essa burguesia nacional na base da acumulação primitiva. Mas como é que foi feita a distribuição da renda nacional para esse efeito? Foi tão mal feita que agora estamos a ter os problemas que temos todos os dias. Porque roubou milhões, porque pôs milhões aqui, porque tem processos deste tipo, até no Fundo Soberano há problemas de não sei quê, dos 500 milhões... Enfim, qual é a causa disso? Tão simplesmente porque utilizamos más políticas em relação a esse fenómeno que se deve pôr em prática sempre. Porque podes ter a certeza, José Rodrigues, que se não criarmos uma classe empresarial e económica forte para competir com os investimentos ou com as empresas de fora, nós vamos virar moços de recado.

Outro aspecto também muito importante de que já falei aqui nas minhas entrevistas está ligado ao problema da forma como criamos essa tal classe económica. Ela deixou de ser patriótica. A preocupação de alguém que está no Governo ou é empresário, etc., etc., é viver à base de comissões. Os contratos são à base de comissões. Então cria-se uma burguesia ou um estatuto comissionista tão grande, tão grande que as pessoas pensam: “Os milhões que eu ganhar de comissão é que me vão levar àquilo...” Já não se preocupam mais com investimento no país na agricultura, na indústria, etc. Veja o que aconteceu agora com essa visita que o camarada presidente fez à Zona Económica Exclusiva. Mais de 70 por cento das fábricas que lá estão encontram-se paralisadas e é ferro velho. Não são novas fábricas. É ferro velho, para deitar fora. Até contaram-me o caso de um empresário que disse a alguém: “Olha só, eu vi esta fábrica que está aqui em contentores. Se você conseguir pôr essa fábrica a funcionar, pago-lhe uma nova!” Apostou. Como é que a malta, só porque quer industrializar o país, cai nessas asneiras? Apenas porque as pessoas querem enriquecer rapidamente, então, pronto, vão vendendo gato por lebre, como digo sempre.

O senhor fala hoje mais à vontade sobre esses temas?

Claro que anteriormente também falava, mas com maior retracção. Tinha mais cuidado porque, evidentemente, o meu estatuto permitia-me falar e falei sempre. Eu não escondo as minhas ideias. Permiti-me sempre falar, mas tinha mais cuidado porque as consequências era te atirarem de lado, te destruírem. Mesmo dizendo “Epá, está bom, camaradas, não há problemas”, atiram-te de lado e deixam-te aí atirado, como aconteceu e acontece com muita gente que nós conhecemos (risos).

"“O Governo não vai ficar de braços cruzados em relação às reacções dela [Isabel dos Santos]. Também vamos talvez destapar a panela. E se se destapar a panela, aí vamos ver o que aconteceu, do ponto de vista histórico, para ela ser o que é neste momento.” "
Hoje um dos grandes desafios de Angola é a diversificação da economia. E o senhor, enquanto embaixador, trata de explicar isso lá fora. Qual é o seu entendimento do conceito de diversificação?

Considero que o termo diversificação é correcto. Que é necessário tirarmos o nosso país de uma economia de enclave é necessário. O José Rodrigues sabe que nós vemos praticamente só à custa do petróleo. Temos de sair disto. Daí o surgimento desse termo e conceito de diversificar. E como é que deveremos fazer essa diversificação? Há programas. Felizmente os programas gizados pela nova equipa económica estão cientificamente bem elaborados, têm conteúdo e permitem que a breve e médio prazos, pelo menos, se vá sentir os efeitos.

Mas, tanto quanto me lembre, já falámos de diversificação há mais de quatro, cinco anos...

Do ponto de vista temporal, há diversificação tem o carácter de ser de médio, longo prazo. Um exemplo é o da agricultura. Você para conseguir ter os frutos da agricultura, tem mesmo de fazer os investimentos e só depois de dois, três, quatro anos é que consegue tê-los. E no caso vertente de Angola, em que não há praticamente financiamentos dados pelos bancos existentes no nosso país, a agricultura pior ainda. E uma das áreas fundamentais para a diversificação é a agricultura. O sector primário da economia é a indústria. A indústria vá que não vá. Mas a agricultura tem um carácter temporal muito grande. Por essa razão é que concebo que sentiremos as consequências da diversificação daqui por muito mais tempo.

Mas há sinais de que estamos no bom caminho?

Sim. Pelo menos a vontade política nesse sentido é forte. É muito forte mesmo. Algumas medidas que estão a ser tomadas são muito importantes. Um dos exemplos é o problema da electrificação do país. O país tem de ser electrificado. Nós temos de ter autossuficiência em energia eléctrica. A construção de barragens que está a ser feita pelo país é muito bem-vinda. Vai permitir que possamos então arcar com o desenvolvimento da indústria. A indústria não se faz com geradores e é o que acontece em Angola de uma maneira geral. Felizmente essa prioridade no desenvolvimento energético do país é muito bem-vinda.

Enquanto militante, como é que o senhor tem estado a acompanhar as mudanças que ocorrem dentro do seu partido?

De uma forma positiva porque essa transição é bem-vinda. Porque do ponto de vista histórico, a temporalidade da liderança nem sempre é boa quando o líder ou os líderes ficam “n” anos no poder. Tem sempre consequências algumas vezes muito negativas. E é o que nós sentimos aqui. O antigo Presidente da República José Eduardo dos Santos esteve 38 anos no poder. Isso não é brincadeira. É muito tempo. E as consequências estão aí também. Claro que há consequências positivas e negativas. As positivas são conhecidíssimas também. Ele conseguiu pacificar o país. Isso é um feito, um acto que é de se louvar. Conseguiu pelo menos aproximar mais os angolanos. Mas em termos económicos e financeiros, conseguimos partir o país. Bom, esta nova direcção, liderada pelo nosso presidente João Lourenço, tomou consciência dessa situação e quer reverter o quadro. Então há esse período de transição desde a liderança antiga que primeiro foi efectivada a nível do Estado, a nível do Governo, que agora se vai efectivar, a partir de 8 de Setembro, a nível do nosso partido. Claro que o nosso presidente, João Lourenço, ao assumir o partido terá de tomar algumas medidas. Medidas muito importantes. Eu considero que o nosso partido precisa de, primeiro, se democratizar mais. Essa é uma das medidas. Segundo, de se modernizar. O modelo de direcção que ainda temos é um modelo leninista que neste momento já está muito ultrapassado. Entretanto, nós somos de estrutura social-democrata, nós somos da Internacional Socialista.

"Não tenho dúvidas que o presidente José Eduardo dos Santos foi durante a sua gestão um líder capaz de conduzir o país para onde está. Mas cometeu também alguns erros crassos, de palmatória, que já nós conhecemos. O problema do nepotismo, por exemplo."
Quando diz “democratizar mais” que ideia é que pretende transmitir?

A ideia de que a participação das bases nas grandes decisões não deve depender só de um pequeno grupo, de um grupito, como acontece. Deverá ser mais escalpelizada no sentido de se ouvir mais as opiniões das pessoas. Isso não se diz mas há momentos no nosso partido que se tomam decisões que deviam ser melhor escalpelizadas, ser melhor analisadas, ser melhor ponderadas e se ouvir mais opiniões. É neste sentido.

Há alguma decisão em particular?

O camarada José Rodrigues é provocador (risos). Há várias decisões. Várias. Mas se me quiser fazer lembrar, por favor. Mas há sim. E depois há um fenómeno muito grande. O papel do nosso partido virou secundário em relação ao líder principal que existia. Tinha mais peso o líder José Eduardo dos Santos enquanto líder do partido, do que o próprio partido. Esse aspecto também tem muita importância. Faz com que surja um fenómeno, para o qual sempre chamo muito a atenção, de endeusamento do líder. É o modelo de gestão oriental de gestão e de governação em que o líder é considerado uma espécie de deus. Como o líder é considerado deus, pronto, tudo o que ele diz é bem-vindo. Estão recordados tudo do Kim Il Sung. Até para a pessoa viver dependia também do Kim Il Sung. Sem querer ferir os coreanos, mas essa é a realidade. E isso também aconteceu na China com Mao Tsé-Tung. Normalmente, com Stalin, no tempo da União Soviética ou da antiga Rússia. Tudo isso faz com que haja consequências sempre que esse líder saia, deixe de sê-lo ou passe para outra actividade que não seja a de liderar. E esse fenómeno existe ou existiu também no MPLA. Mas não existiu só no MPLA. Existiu também na UNITA, existiu na FNLA. Em todos os partidos que tivemos aqui tivemos sempre a tendência de endeusamento do líder, com as consequências negativas que daí provieram.

E os riscos de endeusamento desapareceram?

Não desapareceram. Mas eu quase que tenho a certeza que o camarada presidente João Lourenço é suficientemente lúcido e ter cuidado para não se deixar endeusar. Penso que não se vai deixar endeusar. E também o modelo de gestão do próprio poder já não permite que surja um endeusamento assim. O camarada João Lourenço só poderá ser presidente mais duas vezes. Agora cinco anos e depois mais cinco. Quer dizer, tem dez anos para gerir o nosso país. E esse endeusamento não se faz só em dez anos. Não acredito. Aliás, tanto Agostinho Neto, que também era endeusado, como o camarada José Eduardo dos Santos, esse endeusamento foi crescendo, crescendo até atingir o cume. Lembro-me que quando em 1979 o camarada presidente José Eduardo dos Santos assumiu a liderança do MPLA e da República, não era caracterizador, para ele, de que já era o deus. Nós é que o fomos endeusando, endeusando e deu no que deu.

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Há dias fazia aqui uma entrevista ao líder da oposição, da UNITA, e ele considerava José Eduardo dos Santos como um líder patriota apesar dos erros que terá cometido. Como é que José Eduardo dos Santos fica na História?

Como um bom patriota, dedicado à causa da luta. Um servidor bom do seu país e do seu povo. Esse é o lado positivo. O lado negativo, para mim, é de facto a gestão económica do país. Deixou o país praticamente numa situação desesperada para o novo Presidente. Praticamente o país está em bancarrota. Nós não temos noção do que é que se passa do ponto de vista económico e financeiro, mas nós estamos muito mal. Muito mal mesmo! Esta ofensiva que o nosso presidente João Lourenço está a fazer no sentido de cativar investimentos para o relançamento económico do país tem um sentido: é só tirar o país do buraco em que se encontra. Portanto, é este aspecto que eu penso. Ao fazermos uma análise temos de ver sempre o aspecto negativo e o positivo. Não tenho dúvidas que o presidente José Eduardo dos Santos foi durante a sua gestão um líder capaz de conduzir o país para onde está. Mas cometeu também alguns erros crassos, de palmatória, que já nós conhecemos. O problema do nepotismo, por exemplo. Estive a ler algumas coisas sobre estes fenómenos do nepotismo, monopólios, etc., etc., e reparei que todos os grandes líderes que, de uma maneira geral, demoram muito tempo no poder têm essa tendência. Chega uma altura da gestão da sua governação que deixam confiar em todo o mundo. Para eles, os parentes é que passam a ser de maior confiança. Isto aconteceu com a maior parte dos grandes líderes, sobretudo aqueles que tinham um pendor ditatorial. Há um momento em que perdem completamente o norte e pensam que todo o mundo lhes quer dar golpe de estado, que todo o mundo lhes quer tirar o poder, e que as pessoas de maior confiança são os seus filhos, seus sobrinhos, etc. Me parece que esse fenómeno surgiu aqui em Angola. E o mais doloroso é que as pessoas, muitos, não reconhecem isso. Acham que não é verdade o que estamos a dizer. Daí, em termos políticos, ser correcto esse combate que a nova governação está a fazer a isso. Porque o país não vai a lado nenhum assim.

Há quem diga que o presidente Eduardo dos Santos acabou por expor de forma excessiva os seus filhos...

Sim, é verdade. Mas será que ele é que expôs ou a entourage que estava à volta dele é que o levou a essa situação?

É uma pergunta?

É uma pergunta. Mas, para mim, é isso que aconteceu. Para eu conseguir aqui qualquer coisinha vou convencer o Zenu, vou convencer a Isabel para ver se convencemos aí o kota a ver se conseguimos o projecto. Pronto, deu nisso.

"O nosso partido precisa de, primeiro, se democratizar mais. Essa é uma das medidas. Segundo, de se modernizar. O modelo de direcção que ainda temos é um modelo leninista que neste momento já está muito ultrapassado."
Os filhos foram usados?

 Também. Basta ver o que se está a passar com a Isabel. Não quer ouvir ninguém e comete, cada vez mais, erros de palmatória. De palmatória mesmo! Porque eu não entendo que uma pessoa que beneficiou tanto, tanto dos fundos do Estado nesse país tenha coragem agora de intentar acções contra o Estado, contra o Governo. Não entendo isso. Mas vamos lá ver onde é isso vai parar. Oxalá caia em bom porto e não tenhamos problemas sérios no futuro. Mas porque está rodeada desses advogados portugueses e não sei o quê, ela está a ser muito mal aconselhada. Ela está a esquecer que é angolana – e é angolana, sim senhor! Mas dessa forma assim, não sei... As consequências podem ser terríveis.

E em quê que isso pode resultar?

 Claro. O Governo não vai ficar de braços cruzados em relação às reacções dela. Também vamos talvez destapar a panela. E se se destapar a panela, aí vamos ver o que aconteceu, do ponto de vista histórico, para ela ser o que é neste momento. Aí vamos ver que muita água ainda vai passar pela ponte, como se diz.

Não será um tiro no próprio pé do MPLA?

 Mas terá que ser necessariamente. Porque os que mais beneficiaram dessa situação económica e financeira são os militantes do MPLA. Eu também beneficiei, que estou aqui a falar! São os membros do MPLA, desde chefes até cá em baixo. Há um colega nosso que disse que o MPLA precisa de fazer uma espécie de catarse. Eu concordo com ele, plenamente. Nós temos de ser suficientemente fortes e autocríticos. A máxima está bem: corrigir o que está mal e melhorar o que está bem.

Isso exige coragem política?

 Absolutamente. E felizmente o nosso presidente tem essa coragem. E está a avançar mesmo. Com todos os pontapés e socos que de vez em quando lhe dão, mas ele está a avançar. Oxalá não perca esse pendor e essa pujança que está a demonstrar. Oxalá não perca.

 E isto não divide o MPLA?

 Poderá dividir, mas o MPLA é suficientemente forte para, do ponto de vista político, saber como unir as suas forças. Porque a maior e melhor força política que a nossa sociedade tem neste momento é o MPLA. Eu não sei se uma divisão no seio do MPLA vai beneficiar a quem. De certeza que as cisões que já houve no MPLA, várias e até violentas, não beneficiaram, pelo contrário, fortificaram até muito mais o MPLA. Poderá dividir, mas se houver cisões no seio do MPLA, claro que o grupo que se cindir não sei se será o grupo da verdade no MPLA.

Esta questão do presidente emérito, presidente honorário e militante distinto é consensual?

 Não, não é. Mesmo nesta última sessão [do Comité Central] não foi. Há vários pontos de vista em relação a essa questão. E os pontos de vista principais são, fundamentalmente, por que é que essas distinções se estão a fazer agora? E mais. O problema de fundo também é o seguinte: se está a distinguir o Agostinho Neto porque um grupo achou que devia distinguir-se o José Eduardo dos Santos e lembrou-se também que já houve um presidente. Aliás, não houve só um, houve vários. O Ilídio Machado, o Mário Pinto de Andrade também foram presidentes do MPLA. Enfim, houve vários. Mas, nunca nestes 38 anos, se viu a necessidade de se criar um presidente emérito, um membro do comité central honorário, etc. No fundo é a mesma situação que surgiu no ano passado quando se tentou arranjar um presidente emérito. Essa maka até foi parar ao parlamento, mas, felizmente para mim, não passou. Essa é a minha opinião, mas há outros que têm uma opinião contrária à minha. Acham que está bem feita, mas a questão não foi consensual. E o meu ponto de vista é que não se pode pôr o presidente Agostinho Neto a reboque de outro. Porque queremos agradar o “A”, então vamos buscar também outro. Esse é um princípio que não é correcto.

Qual será o dia seguinte do presidente José Eduardo dos Santos depois que deixe a liderança do MPLA. Há algum receio, algum melindre, em relação à sua condição de cidadão?

Nós pensamos que não. Não há, sobretudo porque o nosso povo tem consciência que ele teve também um papel muito importante e grande nesse país. E eu não vejo tentativas de vingança por parte de algumas pessoas. Não creio. Ele passa a ser um cidadão como qualquer outro. Depois nós não somos um país em que temos a tendência de perseguir os outros. Cumprimos normalmente com o que está estabelecido, mas perseguições não fazemos. E creio que o “day after” do presidente José Eduardo dos Santos, logo que largar o partido, deveria ser escrever as suas memórias. Seria um grande legado porque ele tem uma experiência que poucos presidentes africanos têm. Muito poucos. CA

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