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Segunda, 04 Outubro 2021 22:21

Casamentos de conveniência vs fragmentação ideológica

Tanto nos círculos do MPLA, como nos da UNITA, recusa-se categoricamente a ideia de que os dois maiores partidos do país têm semelhanças, nos seus processos de crescimento, atitudes e acções muito mais semelhantes do que diferentes.

Por Ismael Mateus

Para além do fanatismo, culto da personalidade e bajulação que levaram a que os seus líderes históricos cometessem erros graves com o silêncio cúmplice das duas cúpulas partidárias, a UNITA caminha em direcção a um dos maiores erros do partido no poder: a sua fragmentação ideológica.

A luta pela manutenção do poder levou o MPLA a declarar a UNITA como o inimigo comum e a fazer disso um factor de unidade e coesão interna no seu seio de pessoas, valores e cultura antagónicas. O "inimigo comum” serviu para unir partes e pessoas que partilhavam dos mesmos valores de vida e da mesma ideologia, o que obviamente teve um enorme impacto no seu modo de ver a realidade e de se posicionar em sociedade.

Ao juntar no seu seio militantes com ideais e valores antagónicos, o MPLA transformou-se numa "salada ideológica”, que, por um lado, se reflecte na perda de valores e de referências éticas na sociedade e, por outro, internamente num sério problema de identidade por ausência de balizas ideológicas que demarcam o espaço politico do MPLA e que deveriam definir os requisitos prévios para a adesão e militância.

Ora, uma das missões de João Lourenço é exactamente recuperar os caboucos do "velho MPLA” no interior dessa salada, procurando em simultâneo proceder a uma certa depuração e injectar sangue novo e uma matriz ideológica.

Enquanto o MPLA procura sair desse profundo fosso em que se meteu (o Congresso deste ano demonstrará se João Lourenço foi ou não bem-sucedido nisso), a UNITA vai cometer o mesmo erro: Prescindir dos valores ideológicos como ideal de actuação politica e fazer casamentos de conveniência para atingir o poder.

A Frente Patriótica Unida é uma aliança cujo denominador comum é o inimigo co-mum, o MPLA. Nada mais os liga, senão isso e a luta comum pelo poder. Tal como aconteceu no MPLA, este tipo de processos consegue sobreviver e manter a paz e a coesão internas enquanto existir a possibilidade de uma vitória eleitoral. Neste momento, em nome de uma vitória eleitoral a que dedicaram toda a vida, há na UNITA muita gente disponível a apoiar a Frente Patriótica Unida, incluindo o sacrifício de não figurar em lugares elegíveis se isso lhes trouxer o que consideram o bem maior, que é vencer o MPLA. Trata-se de um "casamento” por conveniência que vai deixar grandes fissuras nos alicerces ideológicos da UNITA.

A primeira realidade perturbadora é o facto de se tratar de uma aliança em que na prática não se sabe ao certo quantos votos valem os outros integrantes, nomeadamente o Bloco Democrático, que nas eleições anteriores concorreu numa coligação e o Pra-Já Servir Angola que nunca foi a votos e, segundo o tribunal, nem sequer conseguiu assinaturas suficientes. Naturalmente, esses factores são determinantes na hora da escolha dos lugares na lista de candidatos a deputados. Ideologicamente, a integração de parte dos membros do PRA-JÁ nas listas da UNITA não representa qualquer problema, tratando-se apenas de um retorno às origens, mas, para os que não são "provenientes” da UNITA o acordo só compensa se forem incluídos em lugares honrosos. Nalguns casos esta-mos a falar de militantes de esquerda, até de esquerda radical e outros de uma direita cristã, para além de um caso ou outro de defensores do federalismo.

Essa visão do poder como aglutinadora de partes irreconciliáveis levou o país a uma crise profunda de valores e lamentavelmente a proposta da Frente Patriótica nada mais vem do que consagrar isso.

Trata-se de algo que já vimos acontecer, mesmo em relação aos processos de saídas e regressos. Uma vez mais, a história do MPLA com a luta interna pelo poder de Daniel Chipenda e o seu posterior regresso em 1992 como director de campanha assemelha-se muito ao caso de Abel Chivukuvuku que, derrotado, abandonou a UNITA, e agora regressa, não regressando. No caso de Chipenda o casamento durou muito pouco e mesmo isso acarretou problemas sérios de coesão interna.

A nota de realce é que o lançamento, amanhã, da Frente Patriótica Unida vai certamente ter o impacto mediático que se espera, mas de concreto pouco vai oferecer ao país. Pelo contrário representa, como aqui procuramos demonstrar, uma continuidade da desvalorização da ideologia política como referência de actuação político partidária e isso, como vem acontecendo no nosso país, acaba por se reflectir na consistência de valores fundamentais da sociedade.

Apesar de vivermos num mundo global cada vez mais social-democrata, é o posicionamento ideológico politico-partidário que permite tornar a sociedade mais ou menos aberta a temas como o papel social do Estado; garantias dos direitos sociais dos cidadãos na educação, saúde, transporte ou nas liberdades individuais (casamento gay, legalização do aborto, legalização da marijuana, por exemplo). JA

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