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Sábado, 04 Abril 2020 01:09

A “factura” de JES que pode ser endossada a João Lourenço

O risco de contágio do Covid-19 é enorme porque o acesso à água potável é deficitário. De acordo com dados de ONGs internacionais e da ONU, dos quase 30 milhões de cidadãos residentes no país, cerca 60 % não tem acesso ao serviço básico de água potável, razão pela qual muitas dessas pessoas terão de escolher entre beber e lavar as mãos.

Por isso, integram um outro grupo de risco que não são o dos idosos e o das pessoas com doenças crónicas…

O secretário de Estado para a Saúde Pública, Franco Mufinda, disse segunda-feira última, 30, em Luanda, que em 29 de Junho próximo as pessoas contagiadas pelo coronavírus (Covid-19) em Angola podem “tendencialmente” chegar às 10 mil, sendo que dentro de sensivelmente semana e meia (a 13 de Abril) os casos vão aumentar e a 18 de Maio a estimativa é que cheguem a mil casos positivos. O governante, que fazia o ponto diário da situação sobre a doença no país e no Mundo, referiu que esses números obedecem a um “cálculo de modelo epidemiológico extrapolado para Angola”.

“Isso pode não acontecer, se a população acatar os conselhos, se a população acatar a quarentena, se cada um de nós observar as medidas de higiene e ficar em casa”, ressalvou o médico. Ou seja, há contas universalmente consagradas de como, em função de situações extremas, as cifras podem crescer exponencialmente. Mas, em princípio, os números previstos para Junho são esses e o secretário de Estado disse que esse período poderá corresponder ao pico da pandemia em Angola.

É óbvio que cumprir a quarentena é um passo importante para evitar a propagação do terrível vírus. Mas não é tudo. Uma das medidas mais importantes é a lavagem frequente das mãos com água e sabão. É aqui onde radica o problema maior para o país, segundo um médico angolano a especializar-se em infectologia no Brasil. Contactado pelo Correio Angolense, ele disse ser grande o risco de contágio pelo coronavírus (Covid-19), em razão das tremendas dificuldades no acesso ao serviço básico de água apropriada para consumo em Angola, paradoxalmente um dos países mundialmente mais privilegiados em matéria de reservas hidrológicas.

“O ano passado, por ocasião da celebração do Dia Mundial da Água, 22 de Março, as ONG’s Emergency Events Database e Netherlands Environmental Assessment Agency revelaram que Angola está no Top-8 mundial de países com pior acesso ao serviço básico de água potável. Pior que Angola (59%) só Eritreia, onde 81% da população não tem esse privilégio, Papua Nova Guiné (63%), Etiópia (61%), Uganda (61%) e Somália (60%). Dessa forma, será difícil às pessoas disporem de água para lavar as mãos, porque também têm extrema necessidade de água para beber”, explicou o médico que preferiu não ser identificado.

Segundo o interlocutor do Correio Angolense, que cita dados das Nações Unidas, “entre os oito piores até o Tchad, que se encontra numa região desértica (Sahel), está melhor classificado nesse capítulo que Angola, pois «só» 57% da sua população não dispõe de água potável. Melhor que Angola também está a RD Congo (58%), país que os angolanos olham com algum desdém por, no seu deturpado conceito, o julgarem inferior a Angola”.

“As Nações Unidas têm como critério para classificar o acesso ao serviço básico de água a localização de poços ou nascentes a menos de 30 minutos de distância a pé”, explicou o médico para depois questionar: “Com cifras tão assustadoras, Angola conseguirá dar resposta a uma eventual pandemia, tendo o sistema de saúde tão ineficiente que tem?” e respondeu: “Tenho muitas dúvidas”.

O médico disse ainda que o consumo per capita de água potável em Angola está abaixo do limiar mínimo aceitável recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e que os hábitos básicos de higiene não são largamente exercitados, sendo que, de acordo com dados das Nações Unidas, apenas 37% da população lava as mãos regularmente. “E não o faz por dificuldades de acesso a uma fonte de água apropriada para beber”, justificou o médico que vimos citando. E acrescentou que “muitas vezes as pessoas recorrem à água imprópria para consumo e isso provoca doenças como cólera, febre tifoide e hepatite A, causas de grande parte das mortes que ocorrem em Angola. Por isso ficam aquém dos do mínimo (50 litros) e do máximo (100 litros) diário de água por pessoa para assegurar a satisfação das necessidades mais básicas e a minimização dos problemas de saúde”.

Para o interlocutor do Correio Angolense, “mesmo os que têm acesso mais facilitado à água deparam-se com sérios problemas, alguns dos quais o preço e a qualidade. Há hotéis de referência da baixa de Luanda abastecidos por camiões cisternas e ninguém se atreve a beber essa água”.

No mês mesmo dia em que as duas ONG’s citadas pelo médico angolano que falou com o Correio Angolense lançaram aqueles dados, o presidente João Lourenço reconheceu numa declaração pública a propósito da data que 52% da população angolana não tem acesso à água potável e que é preciso “garantir a disponibilidade e a gestão sustentável da água e saneamento para todos até 2030”. Isto quer dizer que “apenas” 48% da população não tem acesso a esse bem essencial. A diferença em relação aos números das ONG’s e os apresentados pelo presidente João Lourenço é de quase 11%.

Esse gap é entendível, na medida em que Angola é dos países de cujas estatísticas geralmente as organizações internacionais, principalmente as Nações Unidas, mais desconfiam porque em regra mentem. A situação é tão grave que entre entes do próprio governo há discrepâncias consideráveis nos valores. Em Março de 2018 o ministro da Energia e Águas, João Baptista Borges, disse em Brasília, à margem do 8.º Fórum Mundial da Água, que cerca de 60% da população em Angola. Como se percebe, este número não batecom o do presidente João Lourenço. Um dos dois estará certamente longe da verdade. Ou os dois juntos.

Mesmo em Luanda, a capital, onde há melhores condições de habitabilidades e outras que no resto do país, o acesso à água potável é altamente deficitário. Numa visita de campo do Presidente da República, a 18 de Dezembro passado, o governador da capital, Luther Rescova, queixou-se que grande parte da população da sua área de jurisdição não tem acesso à água potável.

Com mais de oito milhões de habitantes, Luanda depende em grande parte do circuito informal de abastecimento de água através de cisternas. O alcaide da província mais populosa do país indicou que “o actual nível de fornecimento de água potável é de 500 mil metros cúbicos por dia. A província precisa de pelo menos mais de um milhão de metros cúbicos para atender à demanda”. Pelas contas do governador, pelo menos quatro milhões de habitantes de Luanda não têm acesso à água própria para consumo. Logo, o risco de contágio na capital é enorme. Em face do que já se sabe sobre Angola quando a conversa é estatística, esses números podem ter sido aligeirados e podem ser bem mais dramáticos.

Tudo isso combinado, ou seja, acesso condicionado ao serviço básico de água apropriada para consumo, deficitária cobertura do saneamento básico e déficit de higiene de uma boa parte da população, estão criadas as condições objectivas para uma verdadeira pandemia. Na eventualidade de acontecer, as responsabilidades serão natural e instintivamente as sacadas ao governo, em cuja liderança se acha João Lourenço há apenas dois anos e meio. Muita gente se esquecerá que o problema do acesso à água potável é fruto de um sistema falho de governação que nos últimos 20 anos “normatizou” o abastecimento através de complicados esquemas paralelos que metem tudo menos água canalizada na torneira do contribuinte, conforme refere Álvaro Ferreira num interessante estudo publicado na Revista Angolana de Sociologia de Agosto de 2011, sob o título “Água em Angola: a insustentável fraqueza do sistema institucional”.

“Uma parte muito considerável do abastecimento de água à população fazia-se recorrendo a chafarizes, à compra de água na rua e distribuída por carros cisterna. Note-se que estes estratagemas têm constituído o principal modo de largas camadas da população suprirem a incapacidade da incipiente e degradada rede pública de abastecimento de água, mas sem garantias de controlo da qualidade das fontes de captação, das condições de acondicionamento e da sua distribuição”, escreve o autor para acrescentar que “a venda a retalho nas ruas de Luanda, e noutras localidades, em bidons e em pequenos e transparentes sacos de plástico, ilustrava a precariedade de acesso à água para consumo.”

Ora, em 2011 José Eduardo dos Santos era o clarividente e infalível “arquitecto da paz” que transformara Angola num paraíso visto apenas pelos seus seguidores, conglomerados em movimentos nada espontâneos e em associações que se dizem amar Angola ou ainda em “jotas” e em “cap’s” iludidos por uma idolatria pueril. Foi também no consulado do adulado presidente que dirigia (?) o tal “povo especial” que a governação do MPLA se permitiu, por exemplo, ao desplante de instalar chafarizes no bairro da Terra Nova, em Luanda, um ajuntamento habitacional que o “colono” já deixou com todas as infra-estruturas para uma vida decente, inclusive água potável na torneira.

Sem esquecer que quando saiu do poder em 2017, JES deixou Angola na posição de quarto pior país do mundo em qualidade de vida, segundo o Índice do Progresso Social, elaborado por prestigiadas corporações mundiais entre as quais a consultora Deloite, em colaboração com renomados académicos europeus e americanos. Nesse quesito, a Angola de JES só foi “superada” pelo Tchad, Afeganistão e República Centro-Africana!

Portanto, se passados quase 30 anos de independência JES ainda culpava o “colonialismo português” pela pobreza de milhões de angolanos – pouco antes de ele sair perto de 60% vivia com o equivalente a dois dólares, abaixo do nível de pobreza –, por maioria de razão é justo que se lhe endosse a “factura” de uma possível pandemia de Covid-19, se for potenciada pelo acesso condicionado à água potável. É, pois, legítimo que cada um pague a sua “conta”. E a ser cobrada, esta “conta” não é decididamente de JLO.

Por Silva Candembo/Correio Angolense

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