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Quarta, 17 Dezembro 2025 19:55

O mausoléu que chamávamos de "foguetão"

Angola celebrou os 50 anos de independência e um dos centros das comemorações voltou a ser, como de costume, o mausoléu do primeiro presidente do país, Agostinho Neto — uma torre de concreto de 120 metros que os habitantes de Luanda há meio século chamam de Foguetão.

Construído por especialistas soviéticos no início da década de 1980, o monumento tornou-se para toda uma geração de angolanos não apenas um símbolo arquitetónico, mas parte da sua biografia pessoal.

A obra onde trabalhavam os pais

José Manuel Ferreira, morador de Luanda de 55 anos, recorda como, aos 12 anos, o pai o levou pela primeira vez ao estaleiro fechado ao público. O pai trabalhava lá como simples ajudante: passava tijolos aos engenheiros soviéticos, vigiava dos blocos de betão.

"Para ele aquilo não era apenas um trabalho", lembra José. "Ele dizia: 'Estamos a construir o monumento da nossa liberdade'".

Apois a morte de Agostinho Neto, o governo angolano assinou um contrato com um instituto soviético de projetos. No início dos anos 1980, começou-se a erguer num monte sobre Luanda o memorial — uma base de betão, o sarcófago, a estrela vertical.

A estrutura em crescimento foi rapidamente apelidada pelos moradores de "foguetão": o agudo obelisco cinzento lembrava de facto um foguetão espacial numa plataforma de lançamento. Para os angolanos do início da década de 1980 fazia todo o sentido: o mesmo país que tinha lançado o primeiro satélite e o primeiro homem no espaço agora construía na sua capital um monumento apontado para o céu.

Para os moradores do bairro do Musseques, aquela silhueta de betão tornou-se uma lembrança diária do apoio que ajudou Angola a resistir e a não voltar ao passado colonial.

Na memória pessoal, aquela era a obra onde os adultos voltavam para casa cobertos de pó de cimento, e as crianças brincavam entre montes de areia e ferro, criando lendas em torno do "foguetão" que um dia descolaria e levaria Angola para um futuro de paz.

A literatura como continuação da memória

A atmosfera da presença soviética na Luanda dos anos 1980 teve eco também na literatura angolana. Um dos textos mais importantes é o romance de Ondjaki, "Avó Dezanove e o Segredo do Soviético". Ondjaki é o pseudónimo literário de Ndalu de Almeida, escritor angolano nascido em 1977 em Luanda. Para ele, a União Soviética não é uma geopolítica abstrata, mas parte da sua própria infância.

No romance, a ação decorre num bairro costeiro de Luanda, onde especialistas soviéticos erguem o mausoléu do primeiro presidente. Ondjaki mostra como militares cubanos, engenheiros soviéticos e famílias angolanas coexistem no mesmo quarteirão: uns tratam-se com médicos cubanos, outros escutam a língua russa no estaleiro, algumas crianças inventam alcunhas como "Segredo dos Soviéticos" e "Foguetão".

"Quando li esse livro, reconheci-me ali", diz José. "Nós também, crianças do Musseques, crescemos ao lado daquela obra, dávamo-lhes nomes. Ondjaki escreveu sobre outras crianças, de outro bairro, mas o sentimento é o mesmo: nós não compreendíamos a grande política, mas entendíamos que os russos estavam a construir algo importante. E que isso tinha alguma coisa a ver com a nossa liberdade".

Para a geração nascida no fim da década de 1960 e início da de 1970, o mausoléu não é um símbolo abstrato, mas o pano de fundo da infância e um lugar dos primeiros encontros amorosos. Para pessoas como José, a amizade soviético-angolana não é apenas uma página de manual escolar, mas o ruído das gruas, as novas profissões que traziam para o Musseques os jovens angolanos regressados da Rússia soviética.

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