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Quinta, 24 Dezembro 2020 09:48

"Vão passando as gerações, as esperanças vão desaparecendo e nunca mais chegamos lá"

O cartoonista Sérgio Piçarra, "pai" do imbumbável Mankiko, na Grande Entrevista fala da sua arte e do País. Fala da sua desilusão com a governação, da crescente tensão social, do difícil momento económico, das limitações à liberdade de expressão e do adiamento da aposta no sector da educação.

Acabou de ganhar um prémio importante em termos internacionais, o Prémio Franco-Alemão de Promoção dos Direitos Humanos e do Estado de Direito, o que levou a que o seu nome saltasse para as agendas da comunicação social, com destaque inclusive na imprensa pública, o que não é muito habitual. O que é que isso significa para si?

É bom ter destaque aqui, entre nós. Eu já fui manchete do Jornal de Angola, numa entrevista que dei, há dois, três anos, uma grande entrevista. Mas, entretanto, já propus o meu regresso ao jornal, com um cartoon que nem seria sobre política local, mas internacional, e não me foi concedido. Há assim umas incongruências entre nós que não fazem sentido, altos e baixos, ziguezagues. A gente alegra-se, por um lado, mas depois leva umas "chapadas", por outro.

Mas nunca teve relação com as instituições oficiais, com os ministros que vão passando?

Não! Com ministros estive apenas com ex-ministro [da Comunicação Social] João Melo e o ex-secretário de Estado Celso Malavoloneke, foi ele quem facilitou. Foi um encontro muito formal, nada de especial, só e apenas. Depois tenho um boa relação com o Vítor Silva, o director do Jornal de Angola, com alguns jornalistas, mas pouco mais do que isso.

Nem mesmo quando é para fazer alguma pressão sobre o seu traço?

Nunca senti. Felizmente, nunca tive essa pressão

Considera-se um cartoonista, um jornalista, um activista social? Considera-se o quê?

Se calhar um pouco dos três. Jornalista sim, porque sempre foi uma das minhas paixões. Se não tivesse esta veia para o desenho seria mesmo um jornalista. Mas também me sinto, assim, a fazer cartoonismo. Há cartoonistas lá fora que têm carteira profissional de jornalista. Em França, isso acontece. Aqui não, nem me parece que algum dia venha a acontecer. Sinto-me um pouco das três coisas.

Activista social incluído?

Todos nós, que defendemos causas, somos e devemos ser, à nossa maneira, activistas. Defendendo a justiça contra as coisas injustas que vejo todos os dias. Estou muito à vontade com isso, é assim que também me sinto.

Também escreve, além de desenhar? Tem escritos guardados mesmo que não tenham sido publicados?

Alguma coisa de consistente, não! Mas tenho uma preocupação com a escrita, não gosto de ver coisas mal escritas. Quando vejo aberrações escritas aí nos jornais, nas televisões, levo as mãos à cabeça. Tenho, assim, uma veia, mas ainda não me deu para escrever mesmo. Vou só escrevendo nos cartoons.

É possível viver só do cartoon?

Não, não é possível. Tenho a banda desenhada, sou também designer gráfico, presto serviços pontualmente a vários clientes, inclusive a alguns ministérios, como o da Saúde. Tenho um pequeno negócio nesta área e vai dando para sobreviver. Apesar de todos os encontrões que vamos recebendo, juntando estas três áreas é possível viver. Mas se fosse só do cartoon seria impossível.

O Mankiko é a grande figura da sua obra. Ele foi criado ou existe alguém que tenha essas características?

Foi criado na minha cabeça, mas existe por aí, aquela figura do "imbumbável", e eu dei-lhe uma característica especial de sátira. Não havia um modelo vivo.

Como desenvolve o trabalho ao longo da semana para ter essa produção regular?

Eu leio muito, vejo os comentários nas redes sociais, vou apontando as ideias, construindo as histórias. Depois, quando chega a hora, tomo a decisão do que vou fazer, que assunto vou tratar e construo o cartoon.

Já lhe aconteceu ter um sentimento de culpa relativamente a algum cartoon?

Aquela ideia, "não devia ter feito isto"? Assim exactamente, não. Possivelmente, terá havido alguma precipitação relativamente a um ou outro caso, pois, como sabe, o acesso às informações no nosso País, por vezes, não é fácil e não se sabe tudo logo. Houve uma vez em que eu trabalhei sobre uma notícia que, afinal, não tinha sido bem assim, foi desmentida. Eu tive de anular o cartoon e pedir que não publicassem. O que me acontece, muitas vezes, é ter a ideia, estar convencido de que é uma boa ideia e, depois, quando vou desenhar, percebo que não é. Não resulta. Às vezes, funciona bem na cabeça, mas não resulta no papel. Ou, então, os dados da notícia mudam. Estou a trabalhar sobre uma informação e, afinal, não é nada daquilo e tenho de partir para outra.

Tem cartoons no frigorífico? Alguns alguns guardados para momentos de menor inspiração?

Tenho alguns, sim, de reserva. Há alturas com menos factos. Mas agora, que estamos num período em que acontece muita coisa e de forma muito rápido, o que sucede é que vamos perdendo actualidade. Precisava de mais um jornal, ou de um jornal diário, para estar em cima do acontecimento. Por exemplo, esta semana vou ter de falar de assuntos que aconteceram na semana passada, mas a verdade é que aconteceram coisas esta semana que fizeram esquecer o que tinha apontado para desenhar. É com essa pressão que vamos vivendo.

Esse trabalho de criação é individual, solitário, ou discute as ideias com a família e amigos?

Basicamente, é solitário, mas, às vezes, vou perguntar à mulher, aos filhos, a algum amigo que esteja por perto. Também acontece com alguma frequência. Mas é muito mais individual.

Acha que o seu estado de espírito influencia o cartoon?

Se está mais zangado o cartoon sai mais azedo, se está mais feliz ele sai mais positivo? É uma luta (risos). Arranjar humor numa situação em que o que queremos é explodir, dizer asneiras, é complicado. Às vezes, os cartoons saem mais azedos e as personagens mais feias.

Como é que olha hoje para o nosso País?

Se estiveres a falar do político, não é nada recomendável. Agora, se estiveres a falar das pessoas, das belezas naturais, das praias, isto é uma maravilha, toda a gente quer vir viver para aqui.

E o conjunto resulta?

O conjunto está a resultar mal. Infelizmente, o país político não está a saber aproveitar a terra, o território que nos foi dado, lá de cima. Não estamos a saber aproveitá-lo da melhor maneira. E isso é muito preocupante. Vão passando as gerações, as pessoas vão morrendo, esperanças vão desaparecendo e nunca mais chegamos lá!

Há uma certa desilusão na classe intelectual?

Muita, muita! Naquela intelectualidade mais séria, claro. A malta que sonhou com um País melhor, bom para todos... sim, muita desilusão.

A moral do País está em baixo. As condições económicas caíram muito e o impacto da pandemia acentuou esse sentimento.

A pandemia veio agravar mais o que já estava mal. A Covid-19, juntamente com a queda do preço do petróleo, em cima dos graves problemas de gestão, de transparência, dos impostos, do IVA, desses problemas todos... já era suficientemente pesado e, para ajudar ainda mais "o pai que é velho", caiu a Covid-19, que levou à situação actual. Apesar de eu achar que se esse processo tivesse sido melhor gerido, de forma diferente, com mais transparência, com mais humildade, com mais empatia, inclusive, com a situação que as pessoas vivem, poderíamos estar de alguma forma menos mal do que estamos agora. Expansão

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