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Segunda, 06 Outubro 2025 15:47

Tribunal Constitucional com Medo - Rui Verde

Foi publicado o Acórdão n.º 1027/2025 do Tribunal Constitucional, que decidiu por maioria não declarar a inconstitucionalidade por omissão da institucionalização das Autarquias Locais pela Assembleia Nacional.

Trata-se de um acórdão tecnicamente robusto, mas materialmente deficiente. Foi escrito pelo juiz conselheiro Gilberto de Faria Magalhães, mas poderia ter sido redigido pelo presidente da República, João Lourenço, pois no essencial repete as suas declarações sobre o tema em entrevista à CNN Portugal em Julho de 2025.

Os requerentes do processo no Tribunal Constitucional foram um grupo de 49 deputados à Assembleia Nacional, e a requerida foi a Assembleia Nacional. O objecto do processo foi “a verificação da existência ou não de inconstitucionalidade por omissão imputada à Assembleia Nacional, por alegada violação do preceito estabelecido no n.º 2 do artigo 242.º da Constituição da República de Angola”.

É interessante notar que a decisão não se limitou a uma simples rejeição da pretensão. Num detalhe de grande relevância política, o Tribunal acrescentou uma exortação, instando “as forças políticas representadas no Parlamento para que encontrem os mecanismos e procedimentos adequados à aprovação da Lei”. Este trecho funciona como uma “recomendação legislativa” com forte pendor político, reconhecendo a importância do tema e a necessidade de uma solução, ainda que sem impor um prazo ou sanção.

Quer isto dizer que, no fundo, o Tribunal sabe que decidiu mal, mas teve medo de confrontar o poder político.

OS ARGUMENTOS DO TRIBUNAL

Vamos analisar o acórdão do ponto de vista jurídico.

Não restam dúvidas de que Tribunal Constitucional procurou proteger-se com um aprofundado excurso sobre a doutrina da inconstitucionalidade por omissão, recorrendo a reputados académicos angolanos – Carlos Feijó, Raul Araújo, Onofre dos Santos, entre outros – e internacionais – como Carlos Blanco de Morais, Costantino Mortati e Robert Alexy. Delimitou conceitos fundamentais e concluiu que, tanto na sua versão original de 2010 como na redacção resultante da revisão constitucional de 2021, o artigo 242.º se qualifica como uma norma programática.

A análise focou-se em expressões-chave como a que remete para a lei a definição da “oportunidade da sua criação”. Esta terminologia, segundo o Tribunal, não impõe uma obrigação de resultado imediato, mas confere ao legislador a faculdade de ponderar as condições políticas, sociais e materiais para a implementação das autarquias.

A consequência jurídica desta qualificação é decisiva: a norma não gera um dever de legislar com prazo ou de forma vinculada, remetendo a sua concretização para a esfera da discricionariedade política do legislador.

Com base na qualificação do artigo 242.º como norma programática, o acórdão procedeu à defesa da autonomia parlamentar, alicerçada no princípio da separação de poderes. O Tribunal sustentou que a actividade legislativa é, em regra, “livre na definição dos seus fins” e, como tal, o controlo judicial não pode estender-se ao “mérito político” das escolhas legislativas, especialmente num sistema de “democracia pluralista”.

O raciocínio do Tribunal destacou que a ausência de consenso entre as forças políticas – evidenciada pela existência de duas iniciativas legislativas e pela suspensão da discussão na especialidade para criar um documento unificado – é uma contingência natural do processo democrático. A necessidade de respeitar a dinâmica democrática e a busca de consensos políticos prevaleceu sobre a exigência de uma concretização imediata, levando o Tribunal a decidir não interferir.

São essencialmente três os argumentos que o Tribunal utiliza para não declarar a inconstitucionalidade por omissão: o primeiro é que a norma da CRA é uma norma programática, isto é, não impõe directamente uma conduta obrigatória e imediata, mas sim estabelece directrizes e objectivos a serem concretizados pelo legislador ordinário; o segundo argumento é que a Assembleia Nacional tem um poder próprio discricionário, o que quer dizer que tem a capacidade de decidir quando deve aprovar as normas relevantes; o terceiro elemento é que não houve consenso entre as forças partidárias.

A CRÍTICA À DECISÃO

Vejamos cada um dos argumentos expressos pelo TC.

Não se duvida de que a norma do artigo 242.º seja uma norma programática. Contudo, tal não significa um adiamento permanente ou extensivo da sua aplicação.

O Tribunal deveria ter tido em conta a história materialmente subjacente ao processo de criação das autarquias. Desde pelo menos 2007 que se verifica uma persistente ausência de concretização normativa e institucional relativa à existência de autarquias locais. O denominado Plano de Normalização Constitucional, aprovado em 2007, estabelecia como horizonte temporal a criação das autarquias até 2010, prazo que não foi observado.

Em 2010, com a aprovação da actual Constituição da República de Angola (CRA), tal tornou-se um imperativo constitucional, impondo-se a sua efectivação. Diversas iniciativas de natureza programática e legislativa, formalmente apresentadas como instrumentos de operacionalização do modelo constitucional de descentralização administrativa, revelaram-se ineficazes ou inconclusivas, contribuindo para manter um estado de incumprimento prolongado. Em 2015, o Plano de Tarefas Essenciais foi publicamente anunciado como mecanismo de execução, mas não produziu efeitos jurídicos ou administrativos concretos, configurando-se como instrumento de adiamento. A constituição sucessiva de comissões interministeriais, desprovidas de resultados normativos ou operacionais, reforça a caracterização de uma prática institucional marcada pela inércia e pela ausência de medidas vinculativas. Entre 2017 e 2021, foram aprovados 11 diplomas que integram o denominado pacote legislativo autárquico, aos quais se seguiu uma proposta de alteração da divisão político-administrativa. Todavia, tais medidas, não obstante o seu valor formal, não se traduziram na aprovação da lei de criação das autarquias locais, condição necessária para a sua institucionalização efectiva.

A ausência dessa norma estruturante compromete a concretização do modelo constitucional de administração local autónoma, mantendo-se, por conseguinte, uma situação de incumprimento material da Constituição.

À luz da mais recente doutrina constitucional alemã, país cujos autores o Tribunal Constitucional angolano gosta de citar, especialmente após o Acórdão do Tribunal Constitucional Alemão de 24 de Março de 2021 (1 BvR 2656/18), que consolidou o princípio da vinculação intertemporal das normas programáticas, mesmo aquelas dependentes de concretização legislativa, é possível afirmar que o artigo 242.º da Constituição angolana está a ser violado. A doutrina de Schmidt-Bleibtreu e Klein (2022), na obra Grundgesetz Kommentar (Comentários sobre a Constituição), bem como os estudos de Korioth (2023) em Verfassungsrechtliche Verpflichtungen zur Umsetzung programmatischer Normen (Obrigações constitucionais para a implementação de normas programáticas) sustentam que a omissão prolongada na execução de normas programáticas configura violação material da Constituição, sobretudo quando compromete estruturas institucionais previstas no texto constitucional, o que é o caso. O artigo 242.º, ainda que redigido em termos programáticos, contém mandatos constitucionais vinculativos que impõem ao legislador e à administração o dever de actuação dentro de prazos razoáveis e com medidas proporcionais à sua concretização. A não aprovação da lei de criação das autarquias locais, passados mais de 20 anos desde o prazo constitucionalmente previsto, configura uma omissão legislativa inconstitucional, com implicações estruturais na legitimidade democrática e na arquitectura do poder local.

O segundo argumento liga-se à discricionariedade da Assembleia Nacional. Na verdade, a discricionariedade da Assembleia Nacional no cumprimento da Constituição não existe. É um falso argumento. O que a CRA remete para a Lei a ser aprovada pela Assembleia é a oportunidade da criação das Autarquias. Contudo, mesmo aí é uma oportunidade limitada. A Assembleia Nacional não dispõe de discricionariedade política plena quanto à criação das autarquias locais, mas sim de uma competência vinculada, limitada pela própria Constituição. O artigo 242.º da CRA impõe ao legislador o dever de estabelecer por lei a oportunidade da criação das autarquias. Esta “oportunidade” não se configura como um juízo político livre, mas como uma margem de conformação subordinada aos princípios constitucionais da autonomia local, da participação democrática e da concretização progressiva dos direitos políticos e administrativos dos cidadãos. Segundo a doutrina alemã pós-2021, já referida, especialmente na formulação de Stefan Korioth, as normas constitucionais programáticas vinculam o legislador não apenas quanto ao conteúdo, mas também quanto ao tempo de concretização. O conceito de intertemporale Freiheitsschutz (protecção da liberdade intertemporal) estabelece que o Estado não pode adiar indefinidamente a execução de mandamentos constitucionais sob pretexto de planeamento ou conveniência política.

A “oportunidade” legislativa, portanto, é limitada por exigências de proporcionalidade temporal, de razoabilidade institucional e de respeito pelo núcleo essencial dos direitos constitucionais.

Finalmente, a invocação da falta de consenso político como obstáculo à aprovação da lei de institucionalização das autarquias locais, quando existe uma maioria absoluta parlamentar, configura uma falácia jurídica e institucional. A Assembleia Nacional, enquanto órgão de soberania com competência legislativa, não está juridicamente impedida de legislar na ausência de consenso interpartidário, sobretudo quando dispõe de maioria absoluta para aprovar leis ordinárias e estruturantes. O argumento do consenso, embora politicamente desejável, não constitui requisito constitucional para o exercício da função legislativa. A própria Constituição da República de Angola foi aprovada e entrou em vigor em 2010, sem consenso pleno entre todas as forças políticas representadas, o que demonstra que a ausência de unanimidade não obsta à produção normativa válida e vinculativa. Invocar agora a falta de consenso como razão para não avançar com a criação das autarquias locais, previstas no artigo 242.º da Constituição, representa uma contradição por parte das instituições que participaram na aprovação do texto constitucional – uma situação que, em termos jurídicos, se configura como um “venire contra factum proprium”, ou seja, uma conduta contraditória que viola o princípio da boa-fé institucional.

A conclusão é que o Tribunal Constitucional teve medo de decidir o óbvio, e assim rodeou-se de uma imensidão de arabescos jurídicos para não decidir, invocando uma alta sapiência que se revela oca e juridicamente desactualizada face à realidade. Maka Angola

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