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Quinta, 13 Março 2014 18:04

Cesaltina Abreu: "Há a imagem de que a mulher é mais anticorrupção"

Doutorada em Sociologia, a luandense já apontou o foco para a próxima análise: O peso da cultura do medo no país.

Observadora profissional da realidade nacional, a socióloga Cesaltina Abreu destapa o olhar crítico logo nas apresentações. "Quando me falou em contentores, percebi que só poderia estar na centralidade dos caixotes", atira a docente, à chegada às instalações da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto, em Luanda. "Baptizei o espaço desta forma, porque parece que virou moda falar em centralidades, não é?". Além da retórica, é no terreno que a também engenheira agrónoma amadurece as análises sobre a sociedade angolana, por estes dias mobilizada para causas femininas.

Estamos a celebrar mais uma jornada Março Mulher, à semelhança de anos anteriores marcada por discursos de exaltação do papel feminino. Para além das palavras, o que há para comemorar?

É uma data que tem pouco o que comemorar. Entendo que é como a história dos anos: quando fazemos os votos de fim ou de início de ano, pedimos que o novo seja isto ou aquilo, mas, na realidade, vai ser exactamente igual ao antigo. Na minha leitura, o que pode mudar é a nossa capacidade de usar o tempo de outra maneira. Somos nós que damos conteúdo às coisas, e é nessa perspectiva que dar conteúdo ao calendário pode ser interessante. Temos um dia e uma jornada Março Mulher que até combina, M com M fica bonitinho. Mas, tira-me do sério o que temos feito. Lembramos tudo o que houve em Angola e no mundo em relação às mulheres, mas esquecemo-nos de trabalhar cada vez mais, no sentido de que todos os dias sejam dias da mulher. E quem diz da mulher diz do pobre, da criança, do mais velho, porque ainda vivemos um pouco de grandes palavras. Não podemos achar que o conteúdo da jornada acaba quando termina o 8 de Março [Dia Internacional da Mulher] ou o mês de Março.

Ainda estamos limitados às reflexões pontuais e inconsequentes?

Talvez. O nosso percurso enquanto país leva--me a pensar que a História acaba por servir de justificação para essa abordagem tão míope, já que é de uma abordagem muito míope que estamos a falar. O nosso curto-prazo é uma semana - claro que já foi ontem, o que indica uma melhoria - mas a perspectiva de criar, de organizar, de pensar, de projectar expectativas e procurar planear a acção, no sentido de se conseguir alcançar um objectivo através de várias etapas, continua em segundo plano. Isso é um pouco resultado de muitas décadas de guerra, em que o urgente sempre foi preservar a vida. Tudo o resto virou não prioritário e, nalguns casos, quase supérfluo. Foram muitos anos de guerra, e muita gente só viveu nessa realidade de emergência. Aliás, fala-se muito de paz, mas e a energia necessária para a construção social de uma paz, depois de uma tão longa guerra, envolvendo irmãos da mesma nação?

O que está a faltar para concretizarmos essa transição?

É necessário o apaziguamento dos espíritos e a própria transformação da linguagem, porque ainda temos uma linguagem muito bélica no dia-a-dia. O "vou-te matar", o "dou cabo de ti" são frases ainda bastante ligadas à situação de guerra, mas também aos quadros políticos em que a República de Angola vem sendo construída. Ainda não nos despimos dessa realidade. Por isso, na minha perspectiva, faz todo o sentido uma pesquisa que estou a tentar começar, que é sobre a cultura do medo, porque, muitas vezes, o argumento para não se dar uma opinião é o receio de que isso vá provocar a ira dos donos da guerra. Mas, temos de ser capazes de estabelecer percursos, com etapas e com objectivos para alcançar. Há necessidade de uma acção intencional, a fim de produzir mudanças significativas.

Qual entende que tem sido o papel da mulher nesse processo?

Posso falar apenas das minhas experiências e da minha leitura sobre essas experiências. Como engenheira agrónoma de formação, durante muitos anos trabalhei ao nível da fazenda e tive experiências interessantíssimas com mulheres. Infelizmente, não posso dizer o mesmo dos maridos, porque não achavam muita graça às actividades que desenvolvíamos.

Do que não gostavam?

Não gostavam, por exemplo, quando as mulheres me vinham pedir para ensinar como controlava a natalidade e, digamos, a minha vida sexual. Como tenho só um filho, elas tinham essa curiosidade. Os maridos também não achavam graça a que elas pedissem para ver, um dia antes da abertura, os fardos de roupa que recebíamos, pois sabiam que estavam à procura de calças. Isto acontecia principalmente com aquelas que trabalhavam mesmo no campo. Curiosamente, a preocupação delas era cobrir o corpo, enquanto eles achavam que o facto de elas vestirem calças era, de alguma maneira, equivalente a uma afronta, uma vez que prevalecia aquela ideia machista de que "em casa quem veste calças é o homem".

Isso aconteceu em que anos?

Estou a falar dos anos 80 e de realidades que encontrei em Malanje e no Cuanza-Sul. O curioso é que a preocupação delas vinha do trabalho que faziam, muitas vezes com filhos às costas e ao colo, num contínuo baixa e levanta, em que os panos tinham tendência para cair. No entanto, essa preocupação não era em absoluto entendida, e só era percebida de alguma forma como uma afronta ao status masculino. Refiro-me a essa experiência e aos contactos com muitas outras mulheres, não só no meio rural, mas depois também no urbano, e através do FAS [Fundo de Apoio Social], programa de combate à pobreza que coordenei durante alguns anos. Uma das coisas que me preocupavam era saber que as mulheres tinham opinião, vontade e quereres, mas, se não articulássemos uma forma de, através de membros da nossa equipa, encontrar maneira de trabalhar com elas, uma boa parte dessas expectativas ia ficar de fora. Então, tínhamos a preocupação de encontrar interlocutoras dentro da comunidade, para que, depois, o diálogo e o contacto fossem facilitados.

A que conclusões chegaram sobre essas aspirações femininas?

No caso do FAS, uma coisa muito curiosa é que as mulheres em geral, e ouvi isso em várias línguas - é caso para dizer que de Cabinda ao Cunene -, privilegiavam a educação. E o argumento era sempre o mesmo: "Os nossos filhos não podem ter a vida que nós tivemos, e é através da educação que vão ter uma vida melhor". Notou-se que a prioridade, dado que tinham de escolher um projecto de cada vez, era a educação. Sentíamos isso em todas as equipas, enquanto os homens iam mais para projectos ligados à água, à saúde, ou, às vezes, a uma ponte. Então, de uma maneira geral, tínhamos a mulher bastante preocupada com a questão da educação, embora aqui resida um paradoxo. Por um lado, exteriorizavam a preocupação de proporcionar educação aos filhos e, muitas vezes, envolverem- se elas próprias em processos de alfabetização; mas, por outro, do ponto de vista da acção cívica, a mulher é um bocado conservadora. Vai muito pela ordem, o medo de expor a família ou de não frear o entusiasmo dos filhos jovens, ou seja, por um lado, tem essa ideia muito clara de que a educação é o caminho para uma vida melhor, e, por outro, acaba por se deixar levar pela cultura do medo, sempre chamando a atenção dos filhos: Xê menino, não fala política. O resultado é a reprodução de uma cultura machista. É, no fundo, a reprodução do sistema patriarcal.

No domínio da educação, tem-se referido um salto assinalável ao nível da alfabetização. Acha que os números apresentados, nomeadamente no sentido de uma maior paridade entre homens e mulheres, correspondem à realidade?

Acho que não. Gostaria de ter dados mais recentes para fundamentar melhor essa questão, visto que os de que disponho são do processo que, em 2011, via educação, alavancou Angola para o 146.º lugar do IDH [Índice de Desenvolvimento Humano]. De facto, indica- se que o sector da educação terá sido um dos que tiveram maior impacto para essa classificação. Mas, não nos podemos esquecer de que continuamos a ter problemas muito sérios. Há uma constatação no dia-a-dia da quantidade de crianças que ainda estão fora do sistema de ensino.

Constata-se, por exemplo, que as meninas continuam, em muitos casos, a não ser a primeira opção das famílias, quando se trata de enviar os filhos para a escola.

Eu, no meu tempo, claramente não fui, mas as coisas têm mudado. O que se nota é que, à medida que se vai avançando no sistema de ensino, do primário para o secundário e por aí fora, começa a haver uma redução significativa do número de mulheres. A taxa de desistências é muito maior. Contudo, um dos problemas é que, muitas vezes, se fala em indicadores de educação apenas com a preocupação do espaço.

Que abordagem deveria ser feita?

É óbvio que a sala de aula é importante, todavia, também é importante falar no número de professores e numa série de outros aspectos relacionados com as condições para as crianças estudarem. Como o lazer, as bibliotecas e a merenda escolar. E, atenção, porque não estou a falar só de Luanda. Estou a falar, por exemplo, do meio rural, no qual elas andam quilómetros para chegar à escola mais próxima. Uma das coisas que me perturbam é as pessoas não perceberem que o facto de haver uma escola não significa necessariamente que todos, e nomeadamente as meninas, se vão inscrever, ou que, uma vez inscritos, continuem a estudar. Principalmente em áreas rurais e periurbanas, são elas que ajudam as mães nas tarefas de casa e a tomar conta dos irmãos. A prioridade está vista em torno de uma estratégia familiar. Por isso, sempre que as meninas forem necessárias em casa, não irão à escola.

Então, é necessário ajustar a forma de trabalhar junto das comunidades?

Para mim, envolver as comunidades é fundamental, na medida em que os directamente interessados devem estar sempre presentes, com todos os custos que a participação envolve. No fundo, temos de transformar as actuais políticas do Governo em políticas públicas, ou seja, com o lado dos destinatários envolvido no desenho dessas políticas e nas prioridades.

Essa é uma recomendação recorrente. O que falta para fazer vingar essa consciência de que é necessário aproximar as políticas dos cidadãos?

Isso interessa? O regime político que temos em Angola é muito auto-suficiente, autocentrado e muito pouco conectado. Na minha leitura, cada vez temos menos espaços institucionalizados de participação. Aliás, sempre que passo pela Assembleia Nacional, fico espantada com a imponência daquele edifício, com tanto espaço. Fico a imaginar o quão seria interessante se houvesse sessões públicas, se os jornalistas também estivessem presentes, se grupos de cidadãos tivessem realmente acesso às sessões do Parlamento, para a discussão das questões que são fundamentais para todos nós. Porém, a experiência dos últimos anos mostra o inverso. A lei de terras, a lei de investimentos e a Constituição foram aprovadas meio que à revelia. Fico um bocado preocupada com isso, contudo insisto: é fundamental aproximar e transformar políticas de Governo em políticas públicas, em que as prioridades sejam definidas numa base mais ampla. Claro que a participação tem custos: é o meu tempo, o seu tempo, o tempo das outras pessoas, é a noção de valer a pena. Vale a pena gastar esse tempo, em que participo, mas ninguém me ouve e acaba por ficar tudo na mesma? Vamos fazer mais como, então?

Pegando na sua pergunta: o que podemos fazer?

É difícil juntar as pessoas, ter um espaço de debate que não vire uma anarquia total, na qual, passado um tempo, depois de se levantarem ideias e tudo mais, seja possível começar por organizar consensos, ainda que parciais, no sentido de se estabelecer uma agenda, uma vez que as pessoas têm uma agenda. Entretanto, acredito que, se começarem por ver resultados dessa participação, vão participar mais. Para isso, é preciso criar uma relação de confiança, é preciso reforçar a confiança e pensar nela como um bem público. Muitos dos problemas que temos no nosso dia-a-dia são resultados da falta de confiança nas relações sociais. Pago 12 ou 24 meses de renda, porque o dono do espaço que vou arrendar não tem garantias de que vou pagar, nem de que, se não pagar, ele tenha os instrumentos legais para receber o dinheiro dele.

A confiança constrói-se socialmente. Em termos de participação política, como vê a presença feminina no país?

Angola gosta de dizer que tem uma das melhores taxas [de representatividade das mulheres na política], mas gostava de ver essa maior proporção de que tanto se fala transformada em instrumentos legais, que criem uma situação de maior igualdade de condições e oportunidades entre os sexos, pois é isso que estamos a exigir: que, por exemplo, a mulher não seja prejudicada numa entrevista, pelo facto de ser mulher e ter a capacidade de ter filhos. Quando somos mães, enriquecemos como seres humanos. Portanto, toda a empresa deveria ficar feliz por ter pessoas mais ricas do ponto de vista humano. Além disso, é fundamental haver produção de riqueza, para que possa ser distribuída. O problema é que, como diria o [escritor moçambicano] Mia Couto, Angola ainda está a produzir ricos. Temos de mudar isso, porque a distância entre os que menos podem e os que podem tudo está a aumentar. Então, o que uns falam, os outros não entendem, e, às tantas, temos grupos com códigos diferentes a viver na mesma sociedade.

Algumas vozes masculinas defendem que as mulheres já ocupam cargos de liderança nas mais diversas áreas, e que, nesse sentido, as associações de promoção da igualdade de género tendem a não fazer sentido. Concorda?

Só diz isso quem sempre teve poder. O que temos de mudar são precisamente as relações de poder historicamente instituídas, que vêm de um regime de patriarcado, em que, de uma maneira geral, há uma subordinação da mulher e uma dominação masculina. Parece-me que existe ainda uma certa perplexidade, por parte de muitos homens, quando olham para o lado e vêem uma mulher, porque se habituaram a vê-la atrás deles. Temos de alterar essas relações de poder, tal como temos de alterar as relações de produção. Ainda hoje, vemos que o sector informal e a pobreza têm um rosto feminino. Então, estamos a falar em relações de produção na qual a desigualdade ainda é um problema. E aí voltamos à educação de que falávamos lá atrás: uma coisa que se nota é que, quando as jovens chegam ao ensino médio e universitário, muito dificilmente ficam reprovados. O obstáculo está nas taxas de desistência que, conforme dizia antes, aumentam à medida que se avança no nível de ensino. Isto também porque se engravida muito cedo. Por isso, é essencial promover a educação para a Saúde, adiando-se, conscientemente, a maternidade para o outro momento da vida. Mas, temos de estar conscientes de que, em Angola, para muitas jovens, engravidar poderá significar uma estratégia de sobrevivência.

Como entende que a nossa sociedade percepciona a mulher?

Se formos pela propaganda e pelos anúncios, constatamos que essa percepção é um dó. Infelizmente, ainda assistimos à exploração do corpo da mulher, associada a um universo marcadamente masculino: ao consumo de cerveja, aos carros e às máquinas em geral. Mas, trabalhando ao nível de redes locais, que actuam em alguns municípios, como o Cazenga, o Sambizanga e Cacuaco, vemos que, ao nível da base, em que as pessoas vivem e convivem, há uma visão mais próxima do papel da mulher. Há um maior reconhecimento, e a percepção de que as mulheres são melhores gestoras de alguns projectos. Por exemplo, os grupos de água e saneamento - os famosos GAS - são, de uma forma geral, coordenados por elas. E aqui há um pouco a imagem de que a mulher é mais anticorrupção.

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Last modified on Quinta, 13 Março 2014 21:59
Angola 24 Horas

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