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Terça, 07 Julho 2020 13:08

"Casos de cancro em Angola vão aumentar 134%"

Angolano de nacionalidade, Lúcio de Lara Santos dá cartas como investigador-chefe da equipa do Centro de Investigação do Instituto Português de Oncologia.

Nascido na província do Huambo, o especialista é responsável pelo ensaio do primeiro medicamento oncológico daquele país para o tratamento de cancros da cabeça e pescoço. Conhecedor da realidade angolana, Lúcio Lara Santos fala, em exclusivo, à ANGOP sobre as várias etapas das experiências para a busca da cura em Portugal.

Durante a conversa, revela detalhes importantes sobre o crescimento das doenças crónicas, incluindo o cancro, assim como a tendência de aumento de casos em Angola, até 2040.

Eis a íntegra:

ANGOP: É responsável pelo ensaio clínico do primeiro medicamento oncológico português testado com sucesso. Em concreto, o que descobriram?

Lúcio José de Lara Santos (LS) - O ensaio, de que tenho a responsabilidade de ser o investigador principal, decorre de anos de investigação laboratorial que permitiu ter resultados que evidenciaram que a molécula estudada, primeiro chamada “LUZ11”, poderia ser útil no tratamento do cancro. Assim, após o controlo das experiências realizadas pelas autoridades reguladoras, foi permitida a entrada no homem (isto é, utilização da molécula como tratamento no homem).

Até ao momento, encontrámos a dose terapêutica segura e com capacidade de destruição das células malignas. Na fase actual, estamos a comprovar a sua eficácia na destruição de tumores volumosos. Se esta fase for ultrapassada com sucesso, faremos um estudo com muitos doentes, para avaliar, definitivamente, qual é o seu lugar no armamentário terapêutico que trata este tumor. Estamos também no laboratório a estudar combinações terapêuticas que possam ser mais eficazes e a tentar encontrar novas formas de tratar esse tumor letal.

ANGOP: Como se pode avaliar a tolerância e a eficácia do fármaco foto-sensibilizador Redaporfin, testado na primeira fase do ensaio, e o que se espera para atingir os objectivos?

LS - Redaporfin é o nome da molécula Luz 11, baptizada pela OMS, e agora é a sua denominação oficial. O que fizemos foi administrar doses crescentes do medicamento em doentes distintos (voluntários) até encontrarmos uma dose que, após incidirmos a luz laser, destruía o tumor (área de 1cm), mas não causava efeitos colaterais (Fase 1).

Quando essa dose foi encontrada, passámos à fase de tratar todo o tumor, no sentido de verificar se o medicamento associado à iluminação do tumor causava a sua destruição (fase 2). É nesta fase que está o estudo e temos dados que sugerem que este tratamento é capaz de destruir o tumor (mas o número de experiências ainda é pequeno). Só após terminarmos o estudo, poderemos afirmar isso com segurança.

ANGOP: Em dado momento, havia dito que o efeito antitumoral observado foi muito rápido, destruiu a totalidade do tumor tratado e parece ser sustentado ao longo do tempo. Já se pode integrar esta opção terapêutica no protocolo de tratamento destes tumores?

LS - Essa afirmação parece ser consistente, mas, como disse, só após completarmos o número de tratamentos que as autoridades reguladoras determinaram para a fase 2. E, se os resultados forem sempre os mesmos, poderemos definir, após um estudo de fase III com um número elevado de doentes, quando, como e com que indicações este medicamento poderá ter no tratamento do cancro da cabeça e do pescoço.

ANGOP: Por que razão a oncologia se tornou a área da medicina mais lucrativa para os hospitais e mais cara para o doente?

LS - Trabalho em oncologia há cerca de 40 anos e tenho acompanhado o aumento da procura de cuidados oncológicos, em função do aumento da taxa de incidência. A minha experiência envolve hospitais públicos e privados. Não sou testemunha de que a oncologia se tornou na área de medicina mais lucrativa. Os cuidados oncológicos de qualidade são caros e, em Portugal, onde trabalho há mais tempo, o Serviço Nacional de Saúde garante esses cuidados de forma gratuita.

Geralmente, os hospitais privados têm acordos com seguros de saúde, reduzindo os custos para os doentes. Os cuidados desses hospitais para doentes sem seguros de saúde atingem realmente valores, muitas vezes, proibitivos.

ANGOP: Pela experiência no tratamento do cancro da cabeça e do pescoço, até que ponto a indústria farmacêutica influencia os preços?

LS - O desenvolvimento dos medicamentos envolve muitas etapas, que são caras e, muitas vezes, não permitem chegar a produtos farmacêuticos úteis. Assim, o desenvolvimento de novos medicamentos implica investigação científica e ensaios clínicos para se provar a sua eficácia e segurança. Nem sempre os resultados são os que se esperam. A maior parte das moléculas não chega a tornar-se em medicamentos úteis. Por este motivo, os preços dos novos medicamentos reflectem sobre todos estes custos.

Por outro lado, os medicamentos só podem ser produzidos pela empresa que investigou e os produziu durante um tempo (tempo da patente). Quando este tempo termina, outras empresas farmacêuticas podem produzi-lo a preços inferiores ou produzir medicamentos similares. Assim, durante o tempo de patente, as empresas farmacêuticas tentam repor os gastos que tiveram, o que faz que os preços sejam elevados. É fundamental que as autoridades reguladoras do país verifiquem se o medicamento é útil e o preço que está a ser solicitado é justo. Mas existem formas de baixar os preços destes medicamentos, através de acordos de partilha de risco com as empresas farmacêuticas.

ANGOP: Na Europa, realidade por si conhecida, até porque trabalha num hospital de referência em Portugal, presume-se haver diferença entre as unidades sanitárias particulares e as públicas. Falando de Angola, como as unidades privadas poderiam ajudar as instituições estatais de saúde?

LS - O Serviço Nacional de Saúde (SNS) de Portugal é gratuito para a população portuguesa. É um serviço de qualidade e de referência internacional. Tem, ultimamente, sofrido com os défices de financiamento. As instituições privadas cobrem uma gama já elevada de cuidados e pretendem complementar estes défices, tratando os doentes que fizeram seguros de saúde. Estes dois níveis de cuidadores constituem o Sistema Nacional de Saúde de Portugal. Os cuidados de saúde são caros.

Quem tem recursos pode ter acesso a um seguro de saúde que ajude a amortizar os custos quando um assegurado fica doente e, assim, pode recorrer aos hospitais privados. Este facto liberta (ou deveria libertar) recursos públicos para a população sem esses seguros de saúde e sem capacidade financeira.

Desta feita, o país poderia ter mais equidade. O tratamento integral do cancro inclui a cirurgia, a quimioterapia e a radioterapia. Muitos tumores necessitam, para o seu controlo, que se combinem estas armas terapêuticas. A decisão de as utilizar e em que momento é tomada numa consulta, em que as especialidades médicas que referi e outras necessárias devem estar presentes (Consulta Multidisciplinar de decisão terapêutica).

No caso específico de Angola, em primeiro lugar, as estruturas privadas devem ter recurso a este tipo de decisão (alguns hospitais já o fazem). Sem isso, a qualidade dos cuidados oncológicos é questionável. Depois, devem oferecer ao doente estes tratamentos, segundo a sequência adequada. Assim, mesmo que não tenham todos os recursos, devem ter acordos com outras instituições, para que o doente não fique privado de um tratamento adequado, mas em tempo.

Em Angola, por exemplo, a Clínica Girassol tem recursos de cirurgia e de radioterapia (a quimioterapia ainda não está a funcionar em pleno) e a Clínica Sagrada Esperança tem recursos de cirurgia e de quimioterapia. Estas instituições devem garantir a consulta multidisciplinar e acordos com estruturas que completem, em tempo, os seus défices.

Outro aspecto crucial em todos os hospitais, sejam públicos, sejam privados, é terem um laboratório de anatomia patológica que tenha recursos para fazer estudos especiais, pois esses determinam que tratamento se vai realizar e que usualmente aumentam a sobrevivência. Por fim, devem fazer estudos de custos por tratamento, mas custos reais.

Devem, com as seguradoras, estabelecer programas adequados, realistas e acessíveis aos doentes. Só assim a população pode usufruir desses cuidados em hospitais privados. Se os preços forem especulativos, os hospitais deixam de tratar os doentes, porque não conseguem suportar os custos, as equipas de saúde perdem experiência, pois deixam de tratar estes doentes, e os custos dos investimentos não são recuperados. Ninguém usufrui.

ANGOP: As estatísticas das doenças oncológicas sobem a cada dia em Angola (e no mundo) ou é impressão, por as pessoas estarem mais atentas hoje aos sinais?

LS – Realmente, com o envelhecimento e a exposição crescente a factores de risco, aumentam as taxas de incidência de cancro. Em Angola, observa-se a coexistência das doenças infecciosas e um crescimento das doenças crónicas, em que se incluiu o cancro. Em Angola, o número de casos de cancro vai aumentar cerca de 134%, até 2040, segundo a OMS.

Infelizmente, o diagnóstico em Angola é tardio na maior parte das situações. Contudo, uma grande parte das doenças oncológicas é prevenível. Por exemplo, os cancros do colo uterino, pulmão, cavidade oral, esófago, melanoma e estômago são em cerca de 75 a 100% preveníveis, ou seja, por não se expor a hábitos de risco, como o álcool, tabaco e exposição solar ou a vacinação contra o vírus HPV (colo uterino).

Os tumores do cólon e reto, bexiga, rim, fígado e pâncreas são preveníveis em cerca de 25 a 50%. É muito importante que a população saiba disso.

ANGOP: O que leva as pessoas a terem muito medo do cancro?

LS - Porque sobre a designação de cancro se encontram doenças que têm uma elevada taxa de mortalidade, associada ao grande sofrimento, e que partilham entre si a possibilidade de disseminação pelo corpo.

ANGOP: Muitas famílias ainda escondem o diagnóstico dos pacientes para preservá-los do estigma da sociedade.O que mais ajuda na recuperação: o facto de o paciente saber sobre a doença ou ocultar essa realidade?

LS - Só podemos tratar bem o que conhecemos, e o tratamento é mais eficaz quando o doente colabora e o aceita. A partilha das dificuldades com os familiares ajudam-no a enfrentar os problemas e a criar uma vida com mais qualidade, apesar de ser uma doença oncológica. O afastamento traz sofrimento. ANGOP: O acompanhamento psicológico pode ser considerado essencial? LS - Sim, é fundamental, para o doente e a família encontrarem equilíbrio, aceitarem a situação e o tratamento.

ANGOP: Pelo acompanhamento e estudos sobre a doença, pode-se dizer que se está perto da cura de todos os cancros ou distante desse desejo global?

LS - As doenças oncológicas, apesar de partilharem algumas características, em grande medida, são diferentes e não respondem da mesma forma aos mesmos medicamentos. Quando diagnosticados, precocemente, a taxa de cura é elevada. Têm surgido novos medicamentos que revelam taxas de respostas importantes. A conjugação da cirurgia, quimioterapia e radioterapia tem, em muitos tumores malignos, aumentado a taxa de cura ou de sobrevivência. Assim, temos avançado, cada vez mais, na compreensão destas doenças, como prevenir, como diagnosticar mais cedo, melhores tratamentos.

ANGOP: O tratamento do cancro é considerado tóxico e, num passado recente, foi muito mais ainda. Hoje é possível ter-se qualidade de vida após a doença?

LS - É fundamental que, em todas as etapas da doença, haja qualidade de vida. Existe medicação que atenua de forma significativa os efeitos dos tratamentos, permitindo uma vida com qualidade, o que faz que o doente não abandone os tratamentos. O controlo da dor é também uma grande conquista. O apoio psicológico, nutricional e a cirurgia reconstrutiva são fundamentais. Nos países ocidentais, o número de sobreviventes é cada vez mais elevado. Desta feita, programas de apoio e que têm em vista a qualidade de vida são cada vez mais frequentes nesses países.

ANGOP: Como vencer e superar o cancro? Ou é utópico pensar-se na vitória sobre este mal que mata lentamente?

LS - Sem querer repetir, é importante o diagnóstico precoce e tratar de forma adequada e com qualidade todas as etapas da doença. Para desenhar o tratamento, todos os profissionais de saúde e as especialidades importantes para aquela doença devem fazê-lo em conjunto. Assim, o plano de tratamento é o mais proficiente e estará de acordo com a real situação do doente. Estes aspectos são cruciais.

ANGOP: Por ser a sua área de actuação, a busca de solução (cura), quais são os desafios da oncologia a curto, médio e longo prazos?

LS - Prevenir os tumores malignos preveníveis, melhorar o diagnóstico para que este seja precoce, conhecer melhor a biologia dos tumores, encontrar novos medicamentos, mais eficazes e menos tóxicos, e diagnosticar cedo as recidivas.

ANGOP: Hoje, mais do que nunca, as doenças oncológicas fazem parte de quase todas as famílias angolanas. Qual é o impacto do diagnóstico e o papel do cuidador do paciente na família?

LS - A família, de início, fica destroçada, mas é crucial no apoio dos doentes e galvanizam-no na procura de tratamento. Devem (família e o doente) ter formação e apoio por parte das equipas de saúde em todas as etapas da doença. Assim, pode, de facto, a família apoiar o doente.

ANGOP: Pode-se adoptar estratégia espiritual para enfrentar a doença?

LS - O doente é uma pessoa e tem múltiplas dimensões. Durante a doença, essas dimensões persistem e influenciam a evolução. Se a dimensão espiritual existe ou é um conforto para o doente, não deve ser afastada ou ignorada. Caso em Angola Os tumores da cabeça e pescoço são muito frequentes no mundo.

Dados da OMS indicam que mais de 90 por cento dos doentes estão acima dos 40 anos, embora a sua incidência esteja a aumentar entre os mais jovens. Segundo estatísticas oficiais, Angola tem uma média de 50 casos/ano, o que corresponde a 4,1 por mês, números considerados elevados pelas autoridades sanitárias nacionais.

Para fazer face à enfermidade, o Executivo gasta, em média, 60 mil euros/ano por cada doente, incluindo os da cabeça e pescoço, num país de quase 30 milhões de habitantes, que conta com apenas dois médicos especializados (cirurgiões) nesse tipo de cancro.

Por falta de profissionais, o Instituto Angolano de Controlo do Cancro é obrigado a enviar para o exterior os pacientes acometidos por essa doença. Portugal e África do Sul são os principais destinos dos pacientes com essa enfermidade, que atinge a mucosa da via aerodigestiva superior – compreendida pela boca, faringe e laringe.

Lúcio José de Lara Santos

Nasceu na província do Huambo e fez os estudos primários e secundários em Angola. Licenciou-se em Medicina pela Universidade Agostinho Neto e realizou o serviço médico na periferia, no Centro e Sul do país.

Fez a especialidade de Cirurgia Geral em Luanda. Após provas, obtém a equivalência da Licenciatura de Medicina pela Universidade Nova de Lisboa. Em 1994, fez o internamento na especialidade de Cirurgia Geral. Tem mestrado em Oncobiologia, no IPATIMUP, e concluiu o doutoramento em Ciências Médicas pela Universidade do Porto, em 2003.

É cirurgião do Instituto Português de Oncologia, no Porto (IPO), e professor universitário no ICBAS e na Universidade Fernando Pessoa. É o responsável pelo grupo de Patologia e Terapêutica Experimental do Centro de Investigação do IPO e coordenador da Unidade de Cirurgia e Oncologia Digestiva do Instituto CUF, situado na mesma cidade.

Membro do Grupo Português de Investigação do Cancro Digestivo e da ONCOCIR - Education and Care, em Angola, é o responsável pelo grupo de Patologia e Terapêutica Experimental, coordenador da Unidade de Cirurgia e Oncologia Digestiva do Instituto CUF e membro do Grupo Português de Investigação do Cancro Digestivo e da ONCOCIR - Education and Care, em Angola.

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