O jornalista de investigação angolano Rafael Marques lamenta que haja indivíduos ligados ao antigo Presidente José Eduardo dos Santos que usam o seu nome como arma de arremesso contra o atual chefe de Estado, João Lourenço. Por outro lado, o mentor do portal "Maka Angola" diz que para haver uma investigação séria em Angola são necessários procuradores mais competentes, referindo que no plano da recuperação de capitais é preciso um serviço "mais especializado".
Rafael Marques esteve em Lisboa no âmbito da conferência "Sociedade Aberta", organizada pelo jornal português Observador, e concedeu esta entrevista à DW África.
DW África: Afirmou há dias que Portugal e Angola devem cooperar com vista a destruir o "cancro da corrupção", isto na sequência dos vários episódios ocorridos na relação entre os dois países envolvendo figuras de proa da elite angolana e portuguesa. Qual é a sua perspetiva?
Rafael Marques (RM): O saque, a pilhagem em Angola, teve um contributo incontornável de Portugal por conta de advogados, políticos, financeiros, pela banca portuguesa e outros elementos acessórios que facilitaram que Portugal se tornasse na principal lavandaria dos fundos desviados de Angola. Daí ser fundamental a colaboração de Portugal. Por outro lado, durante muitos anos Portugal foi conivente com o regime de José Eduardo dos Santos e tudo fez pela manutenção desse mesmo regime.
Agora que começa a ocorrer uma mudança, é fundamental perguntar qual é a posição de Portugal, porque apesar de ser o mesmo partido no poder, todo o apoio dado a Angola era no sentido da manutenção do Estado de pilhagem. E agora que se começa a institucionalizar a luta contra a corrupção, qual é a posição de Portugal? Mas aqui também é fundamental, contribuir para a mudança de mentalidade dos próprios cidadãos angolanos.
Nós só seremos soberanos e verdadeiramente independentes quando começarmos a tratar dos nossos problemas de forma mais solidária, mais inteligente e mais articulada. Antes que Portugal possa prestar qualquer contributo a Angola, temos nós de fazer o trabalho de casa para garantir que este apoio seja efetivo e contribua para a melhoria da condição económico-social do cidadão e desenvolvimento do país.
DW África: Pode afirmar-se que há um comprometimento de ambos os países no combate da corrupção depois do caso Manuel Vicente?
RM: Não há um comprometimento efetivo. Primeiro, Angola tem de reformar o seu próprio sistema judicial. Por outro lado, vemos que Portugal, com o peso da corrupção em Angola, viu as suas instituições, sobretudo o seu próprio sistema judicial, conspurcado, enlameado, pela relação com Angola. É a famosa questão do "contentor de paracucas" e das relações promíscuas entre o então Procurador Geral da República de Angola, o advogado português e a Procuradoria-Geral portuguesa por conta de alguns representantes seus. E um deles, o procurador Orlando Figueira, acabou condenado em Portugal por corrupção envolvendo o então vice-presidente de Angola [Manuel Vicente].
DW África: Considera sério o plano de combate à corrupção lançado pelo Presidente João Lourenço? Como é que avalia a sua estratégia?
RM: É um desafio que deve engajar todos os cidadãos. Em parte nenhuma do mundo se mudou a situação por causa da vontade de um homem. É a soma de todas as vontades que vai determinar se este combate é sério ou não. Por exemplo, Angola passou por um período longo de guerra. São as famílias mais pobres que, sobretudo, contribuíram para a manutenção da guerra com o sangue dos seus filhos, com a violência dos seus filhos. Não foram os dirigentes. Da mesma forma, João Lourenço lança um desafio à sociedade, temos de nos mobilizar todos e dizer "está bem, este é o caminho que o senhor aponta, é o caminho que nós devemos seguir porque é do interesse de toda a sociedade acabar-se com o saque ao país e vamos fazê-lo de forma solidária. Agora, se o senhor tentar recuar vai encontrar um muro, porque nós estamos a avançar. Não deve haver recuo". É aí onde está o grande erro dos cidadãos. Pensarem que deve ser o Presidente a fazer tudo.
A luta contra a corrupção, para ser séria, precisa de uma profunda reforma do sistema judicial. Não podemos ter os mesmos juízes que compactuaram com a corrupção durante muitos anos em Angola, protegeram a corrupção e os corruptos, serem agora os mesmos juízes contra a corrupção. Tem de haver alguma mudança e essa mudança é ao nível das pessoas. Então, é esse debate que nós devemos estimular ao nível dos vários setores da sociedade.
DW África: Ainda nesta linha de abordagem, há quem ache que Rafael Marques, comparadamente com o regime anterior [de José Eduardo dos Santos], baixou de tom nas críticas que faz a João Lourenço. Isso corresponde à verdade?
RM: Não corresponde, porque há aqui alguma má-fé. Quem mais denuncia em Angola – e estou a falar de atos atuais – continuo a ser eu. Há uma diferença institucional muito grande. José Eduardo dos Santos tinha institucionalizado a corrupção. João Lourenço procura institucionalizar a luta contra a corrupção. E vou dar um exemplo mais recente, o caso da Energy, uma empresa portuguesa que literalmente roubou 75 milhões de dólares em Angola, sem prestar qualquer serviço. Eu denunciei isso. Quem trouxe a público em primeira mão os esquemas da Energy, que tentou vender quatro geradores pelo mesmo valor que já tinham sido adquiridos pelo Governo, fui eu. E isso foi há dias. E é uma golpada que este mesmo português, Ricardo Machado, tentou promover já no Governo de João Lourenço. A diferença é que muitos indivíduos que estavam ligados a José Eduardo dos Santos e que se veem hoje ameaçados com a corrupção procuram também usar-me como arma contra João Lourenço. Eu sempre lutei contra a corrupção. Vem João Lourenço e diz "bom, é isso que se deve fazer".