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Segunda, 01 Agosto 2022 15:35

Sou censurado e, mais grave, têm convidados cujo único objetivo é atacar o presidente da UNITA

Quer ser um Presidente com menos poder e menos partido. Se vencer as eleições, o líder da UNITA vai sanar conflito com família de José Eduardo dos Santos, alvo de "postura vingativa" de João Lourenço.

Com uma camisa colorida, uma hora antes de a trocar por uma outra branca, com apontamentos de verde e vermelho, os tons da UNITA, Adalberto Costa Júnior prepara-se para mais um comício. Está num dos bastiões do MPLA, a província do Cunene, em Ondjiva, a última cidade antes da fronteira com a Namíbia, que em tempo de colonos portugueses se chamou Vila Pereira d’Eça.

O principal adversário político de João Lourenço  — o Presidente de Angola e do MPLA  — já leva muitos dias de estrada, apesar de a campanha eleitoral só ter começado, no calendário oficial, no sábado, 23 de julho. E ainda tem muitos mais pela frente, até a vontade dos angolanos se manifestar nas urnas, no dia 24 de agosto. Até lá, não se cansa de falar na “nova Angola”, de repetir a palavra “alternância” ou de prometer “a reforma do país” de uma ponta à outra.

Estas ideias não faltaram, claro, nesta entrevista ao Observador, a mais de 9.400 quilómetros de distância de Lisboa. Mas o engenheiro eletrotécnico que lidera a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola) não deixou de referir a falta de “maturidade democrática” de João Lourenço, a “vingança” à família de José Eduardo dos Santos, a “quantidade de membros do governo com casos de corrupção extrema” e a existência de “uma censura escandalosa”.

Aliás, numa conversa cheia de percalços devido a muitos cortes na ligação, Adalberto Costa Júnior, entre muitos risos, falou das escutas ao seu telefone. E não afastou a possibilidade de os problemas sentidos na entrevista “serem uma restrição dos serviços de inteligência [serviços secretos] de Angola: “Isso não é impossível (…) é normal que esta dificuldade de comunicação resulte da interferência de quem ainda não está habituado à pluralidade”.

Nestas eleições gerais — as quintas de Angola, em quase 47 anos de independência de Portugal — o partido do “Galo Negro” não está sozinho. Embora seja a UNITA a concorrer, com os seus símbolos e a sua liderança, o partido integra a Frente Patriótica Unida, juntamente com o Bloco Democrático e o projeto político PRA JA-Servir Angola.

Andei um pouco por todo o mundo e sentei-me com muitos angolanos, cheios de dinheiro, que não sabem o que fazer. Têm medo de voltar para Angola e andam de paraíso fiscal em paraíso fiscal a perder o dinheiro por esse mundo.

É o rosto do maior partido da oposição em Angola, é a cara da Frente Patriótica Unida. Desde 1992 que umas eleições em Angola não eram vistas de forma tão renhida. Tem apresentado a sua candidatura como sendo de mudança. Se vencer as eleições, vai mudar o regime e deixar de ter os poderes absolutos que João Lourenço herdou de José Eduardo dos Santos?

A UNITA levou ao Tribunal Constitucional uma proposta para a Assembleia Nacional que simboliza seguramente uma mudança de regime. Temos hoje um regime de partido-Estado, que governa o país e que não foi capaz de fazer as reformas que toda a gente espera há muitos anos. E, muito em particular, a despartidarização da administração pública. Ou se pertence e se tem o cartão do partido que governa, ou se está excluído das oportunidades. Isto atinge toda a gente. Numa primeira fase, a transição de Eduardo dos Santos [ex-Presidente angolano, que morreu a 8 de julho em Barcelona] para João Lourenço deixou a ideia de que estávamos a fazer uma transição de regime. Na verdade, o que tivemos foi um recuo enorme em algumas importantes conquistas de democracia que João Lourenço tratou de destruir.

Está a falar do quê, em concreto?

De muita coisa, infelizmente. Vivemos uma campanha, desde sábado, e antes pré-campanha, absolutamente sujeitos a uma censura escandalosa.

Censura maior do que acontecia nos tempos de José Eduardo dos Santos?

Escandalosamente mais e está à vista dos olhos de toda a gente. O exemplo está aqui, está a falar com o líder da oposição, presidente da UNITA, que nunca foi entrevistado por nenhum órgão público de comunicação social em três anos [desde que foi eleito para chefiar o partido, em 2019]. Isto é uma bela democracia, não é?

 Não há uma grande diferença no tratamento da pluralidade entre o que faz Angola e a Coreia do Norte. Para quem acompanha isto à distância pode pensar que é uma posição de extremismo. Infelizmente, nós estamos mesmo, mesmo mal.

Sou censurado e, mais grave, há programas que têm convidados cujo único objetivo é desmontar as iniciativas que a UNITA faz, é atacar o presidente da UNITA, é não passar as imagens. Há dias passei por Cabinda, onde fiz um comício extraordinariamente grande; estávamos a cumprimentar o governador e, de repente, apareci na televisão, uma coisa que nunca ninguém tinha visto e foi um wow geral. Quando ligámos o som (só estava a imagem), quem falava era o jornalista do estúdio a dizer que o presidente da UNITA tinha feito um grande elogio às realizações de João Lourenço. E as imagens que apareceram não foram as dos comícios da UNITA, mas as do MPLA feitas nesse dia.

Mas já não era assim com o anterior Presidente?

No tempo de Eduardo dos Santos isto não acontecia. [Há outra coisa que] já acontecia, mas que infelizmente ficou pior. Temos uma campanha em que o partido do regime tem todas as televisões ao seu serviço, sem limites, tem os comícios transmitidos em direto, todos os seus atos, dos pequeninos, dos grandes, dos intermédios. A nós, tudo nos é negado. Portanto, isto é uma bela democracia. Não há uma grande diferença no tratamento da pluralidade entre o que faz Angola e a Coreia do Norte. Para quem acompanha isto à distância pode pensar que é uma posição de extremismo. Infelizmente, nós estamos mesmo, mesmo mal.

Se for eleito, o que vai fazer de diferente em relação à comunicação social? Vai deixar de ter órgãos do Estado e controlados pelo poder central?

A mudança de regime com uma governação da UNITA é de garantia, porque a nossa própria proposta representa um ato de coragem nunca visto aqui. Nós fizemos um acordo abrangente, a UNITA negociou com outros partidos e representantes da sociedade civil. Nas listas temos [pessoas] diferentes [que não são] da UNITA. Só este elemento diz que o partido-estado termina. Não temos condições nenhumas de continuar [as mesmas práticas], porque hoje mesmo estamos a representar uma pluralidade que nunca foi vista. Este ato é representativo de quem tem cultura de diálogo e de pluralismo. Não temos uma possibilidade diferente se não concebermos um estado democrático, assente em valores do Estado de Direito.

 Temos hoje praticamente uma governação unipessoal, absolutamente vertical, onde os poderes absolutos estão numa figura exclusiva do Presidente da República, que não é eleito diretamente pelo povo angolano.

“O Presidente da República é assumido como se fosse uma figura supra-humana”

Os poderes absolutos que José Eduardo dos Santos tinha e João Lourenço também tem são atribuídos pela Constituição da República que foi alterada há pouco tempo. Vai mudá-la ou vai governar com o quadro legal herdado?

O nosso manifesto eleitoral fala de governo inclusivo e participativo. A UNITA ganha as eleições e temos um ciclo legislativo que será para fazer a revisão da Constituição. Por muitas razões: temos hoje uma constituição que não é democrática, em que o Presidente da República é assumido como se fosse uma figura supra-humana. A Constituição diz: “O Presidente é o titular único do poder executivo, e os ministros são seus auxiliares”. Isto está no texto da Constituição de 2010, do tempo de José Eduardo dos Santos, mas João Lourenço reforçou os poderes [do Presidente] na revisão constitucional em outubro de 2021. Portanto, temos hoje praticamente uma governação unipessoal, absolutamente vertical, onde os poderes absolutos estão numa figura exclusiva do Presidente da República, que não é eleito diretamente pelo povo angolano.

O Presidente, sendo o chefe do Governo, não vai à Assembleia responder pelos seus atos, nem antes nem depois. (...) O PR vai buscar créditos sem autorização do Parlamento e nem presta contas de como gasta esse dinheiro. É preciso acabar com isso definitivamente.

Não há um limite temporal para poder rever a Constituição depois da última revisão? Durante algum tempo não teria que governar com a Constituição de João Lourenço?

Não temos, felizmente, esse limite. Segunda questão, João Lourenço, quando propôs a revisão da Constituição, fê-lo sozinho, não dialogou com ninguém, nem com os partidos, nem com a sociedade. E outra coisa absurda, para nós todos, foi que passámos anos a dirigir ao Presidente da República documentos sobre a necessidade da revisão constitucional. A mim, pessoalmente, respondeu: ‘Não vou mexer na Constituição, nada a fazer, o senhor se quiser proponha’. Sabendo perfeitamente que há duas condições para se mexer na Constituição: ou se tem uma maioria absoluta no Parlamento — e quem a tinha, e tem, é o MPLA — ou [acontece] por iniciativa do Presidente da República. Ele demarcou-se completamente da necessidade de democratizar a Constituição.

O que quer mudar na Constituição?

Queremos repor direitos ao soberano que é o povo. A eleição direta do Presidente da República é uma iniciativa nossa de imediato para a Constituição. A redução dos poderes do Presidente é outra questão. Hoje temos um grande drama: o Presidente, sendo o chefe do Governo, não vai à Assembleia responder pelos seus atos, nem antes, nem depois. A Lei do Orçamento Geral de Estado tem uma quantia que lhe é permitida [usar] para hipotecar o Estado sem ir à Assembleia Nacional (outro elemento terrivelmente negativo, Angola tem uma dívida pública enormíssima, mas ela não foi discutida nem aprovada no Parlamento e todos os anos cresce). O PR vai buscar créditos sem autorização do Parlamento e nem presta contas de como gasta esse dinheiro. É preciso acabar com isso definitivamente. Outro aspeto tem a ver com eleições locais, temos uma necessidade absoluta de termos as autarquias locais instituídas.

Tem-se dito que o problema de Angola não foi José Eduardo dos Santos nem é João Lourenço, mas sim o de um partido-Estado, um partido hegemónico, o MPLA. Se vencer o que é que vai fazer à máquina do Estado: vai substituir toda a Administração Pública? Com que quadros é que vai trabalhar?

Começo por corrigir a sua afirmação, que o problema não é A ou B que dirige, é o partido. Não é verdade. O partido adota a moção de estratégia do seu líder proposta no congresso, portanto o líder tem muitas responsabilidades. A regressão em que nós vivemos hoje tem uma figura, chama-se João Lourenço. E ele hoje está isolado, mesmo no seu partido, não o consegue esconder. Presume-se que é o partido, mas o seu líder conduz o partido de uma forma excessivamente autoritária. É verdade que no partido-Estado que temos há hierarquias e o partido está acima dos interesses do Estado, nota-se isso no dia a dia da governação, coisa que nós claramente não vamos fazer.

“Não temos intenção nenhuma de substituir quem quer que seja. Nem sequer os funcionários”

Fez uma segunda afirmação importante de ser esclarecida. A UNITA ganha as eleições e naturalmente que vamos ter a continuidade do Estado, não temos outra visão. As Forças Armadas de Angola, a polícia nacional, os serviços de inteligência [serviços de informação] são forças republicanas, têm que fazer a defesa do Estado, de todos nós. Não temos intenção nenhuma de substituir quem quer que seja, até porque nem temos condições de o fazer. Nem sequer os funcionários da administração pública, era só o que faltava. Não só não temos uma vocação de governação partidária, não somos apoiantes do Estado partidário — pelo contrário, defendemos a reforma do Estado, a despartidarização das instituições —, como queremos fazer a afirmação absoluta da importância das forças republicanas. Temos estado a conversar com toda a gente, tenho procurado as hierarquias militares, as da polícia, as dos serviços de inteligência. Procurei a direção do bureau político do MPLA para fazer a negociação da transição.

Quem ficou 47 anos no poder, em exclusivo, acumulou muitos vícios e acumulou também medos e não só, pensa que só a governação é que é a sua existência, razão de viver.

Já teve uma conversa sobre a transição mesmo sem saber se ganha as eleições?

Não uma, mas várias. Fui obrigado a ter esta iniciativa por [uma questão de] responsabilidade. Em Angola ainda se olha para as eleições, por culpa de quem governa, como se fosse um ambiente de tensão, de risco de violência, quando as eleições devem ser encaradas como um facto cíclico normal, os mandatos têm limite. Procurei membros do Bureau Político do MPLA para fazerem a ponte com o presidente do partido, porque Angola carece de fazer uma transição para as eleições num ambiente de absoluta tranquilidade e estabilidade. E paz. E também no pós-eleições. Não tenham medo da alternância. Quem ficou 47 anos no poder, em exclusivo, acumulou muitos vícios e acumulou também medos e não só, pensa que só a governação é que é a sua existência, [razão] de viver. Eu poderia fazer outras afirmações, mas era capaz de ser um escândalo para quem me ouve, e é melhor não porque sou angolano e gosto, apesar de tudo, nos limites, de vender uma boa imagem de Angola.

Quem está sentado na cadeira do poder tem vindo a mostrar que tem medo do voto do povo, tem medo das eleições, pensa que viver é governar os outros e é exatamente esta educação que nós temos que ajudá-los a perceber e a aprender.

Há pouco falou na polícia. Vai garantir uma polícia apolítica?

Temos de garantir uma polícia apartidária, essa é toda a diferença. Todo o cidadão é um cidadão político. Agora, não deve ser uma polícia que sirva um partido político, aí sim, nós não vamos seguramente pretender a continuidade do que temos hoje, vamos partilhar cidadania, e isto não é conversa, há muito que temos vindo a materializar ações que conformam a questão da preparação.

Por exemplo?

O presidente da UNITA tem afirmado inúmeras vezes e vai cumprir: eleito Presidente da República suspende o seu vínculo de presidente da UNITA. Porque enquanto responsável de um partido político ou enquanto cidadão constatou que um dos maiores problemas de Angola é exatamente esse cartão de pertença do Estado partidário, em que quando se faz parte tem-se tudo e mais alguma coisa e quando não se faz parte não. E nós não queremos dar continuidade a este tipo de exclusão, até porque o nosso programa de governo diz [que é] inclusivo e participativo. Estamos convencidos que vamos ser eleitos porque temos recebido esta demonstração por todo o país — onde o presidente da UNITA passa hás multidões infinitas a apoiar a mensagem de alternância, por uma nova liderança para uma nova Angola, uma Angola inclusiva. E portanto, isto vai acontecer.

Um Estado que se diz democrático tem um gabinete de propaganda institucional na Presidência da República que se ocupa de lutar contra a oposição.

Esta mensagem de alternância pode levantar questões dentro da própria Frente Patriótica Unida. Está firme com o seu número 2, candidato a vice-Presidente?

Seguramente. Não só firme, como absolutamente seguro. As listas foram todas levadas ao tribunal [Constitucional], foram todas aprovadas e tenho uma negociação, positiva. Sabemos que esta Frente está a incomodar muito o regime, porque não é uma frente simples é uma frente poderosa, liderada por pessoas com prestígio, e que [ficheiros de áudio] colocados no ar, com cortes de discursos descontinuados, atingiram o número dois da lista, Abel Chivukuvuku, há dois dias. Ontem atingiu o general [Kamalata] Numa, que aparece com publicações que não lhe são devidas e que são fruto de quê? Do laboratório que trabalha na Presidência da República, veja, um Estado que se diz democrático tem um gabinete de propaganda institucional na Presidência da República que se ocupa de lutar contra a oposição.

A Frente Unida está realmente unida e não há qualquer problema? Sente-se mesmo seguro da lealdade de todos os seus companheiros?

Eu estou no Cunene acompanhado pelo dr. Justino Pinto de Andrade [Bloco Democrático], o dr. Abel Chivukuvuku [PRA JA-Servir Angola] vai estar no Namibe, com a vice-presidente Arlete Chibinda da UNITA, e vamos continuando a campanha com os princípios que a Frente defende por uma nova Angola.

“A lei serviu para perseguir a família Dos Santos, mas não os ministros corruptos amigos de João Lourenço”

As semanas que antecederam a campanha eleitoral foram marcadas primeiro pelo internamento do ex-Presidente José Eduardo dos Santos e depois pela sua morte e disputa entre o governo angolano e parte da família sobre o local do funeral. Se estivesse no poder teria atuado de forma diferente?

De certeza que sim. E nós não estivemos em silêncio. Aconselhámos o Presidente da República a não ter uma postura vingativa, a palavra é feia de se dizer, mas foi isto que aconteceu. [Ver o] Presidente que muda de camisola numa necessidade pós morte do seu antecessor porque precisa de vender uma imagem, não é um espetáculo bonito. A perseguição de ontem deu lugar às lágrimas de crocodilo de hoje.

Em Angola há uma quantidade de membros do governo com casos de corrupção extrema, um escândalo completo, multimilionários incapazes de justificar os seus fundos com provas públicas e que nunca foram alvo de qualquer processo da PGR.

Não disse o que que faria neste caso.

Aconselhámos o Presidente da República atual a enveredar por uma postura distinta da que materializou todo este tempo, uma postura persecutória. Dou o exemplo do facto de o ex-Presidente da República ter regressado a Angola no ano passado, e não ter aparecido em nenhum órgão público de comunicação social e, inclusive, um diretor da televisão pública ter afirmado que não havia motivo nenhum para o fazer porque ele não representava notícia alguma. Veja-se como estavam as relações extremadas, negativas. E hoje, após a sua morte, estamos a assistir ao derramar de lágrimas de crocodilo, que poderiam ter sido perfeitamente evitadas, e a este triste cenário do conflito entre o Presidente da República e uma parte da família.

No seu caso não teria havido conflito?

João Lourenço utilizou a luta contra a corrupção para combater os seus adversários, [o que foi] um erro enorme. Foi a UNITA quem tomou a iniciativa de levar à Assembleia Nacional a proposta de Lei do Repatriamento de Capitais. E o MPLA votou contra. Era uma proposta de lei abrangente que perseguia a recuperação de fundos roubados ao Estado, dentro e fora do país. Na altura eu era presidente do grupo parlamentar e foi-me afirmado: “Tirem o cavalo da chuva se pensam que alguma vez essa proposta vai ser aprovada”. Aqui já se vê que há um interesse de grupo em causa.

Mas como ficava mal o MPLA não ter uma proposta, fizeram uma, aprovada na Assembleia com os votos exclusivos do MPLA e que não representava mais do que uma lavandaria de dinheiro. Porque legalizava o regresso aos bolsos do ladrão. Quem roubou ao Estado poderia trazer o dinheiro para Angola e o dinheiro ficava integral no seu bolso, o Estado não tinha benefício de um único kwanza. Ainda por cima, ficava protegido, não havia condição de saber quem o fez. Estranhamente, o governo angolano não regulamentou essa lei durante o período da sua aplicação. E tão logo [o prazo] terminou foi aprovada uma lei repressiva e é esta lei punitiva que João Lourenço utilizou para perseguir os seus adversários.

Se for poder não vai ter uma lei punitiva?

Deixe-me fechar a resposta anterior senão não me entende. É que em Angola há uma quantidade de membros do governo com casos de corrupção extrema, um escândalo completo, multimilionários incapazes de justificar os seus fundos com provas públicas e que nunca foram alvo de qualquer processo da PGR [Procuradoria Geral da República]. Então ficou muito claro que os processos tinham uma condição política, tinham uma ordem do Palácio [presidencial, sede do governo]. Porque, infelizmente, hoje em Angola o poder judicial é comandado pelo poder executivo, o Presidente da República dá ordens sobre o poder judicial e esta é uma realidade incontornável.

O que aconteceu com a família Dos Santos é que aquela lei punitiva foi utilizada para perseguir a família mas não foi utilizada para perseguir os ministros corruptos amigos de João Lourenço. Ou outras personagens que foram protegidas. A UNITA ganha as eleições e nós vamos fazer voltar ao Parlamento a lei que levámos no início da legislatura.

O que estamos a assistir hoje é meramente um problema de vingança. De perseguição, de problemas de relacionamentos, de pessoas, não é um problema de combate à corrupção.

E com efeitos retroativos?

Os efeitos retroativos não têm assim grande influência. A coisa é muito simples de se explicar. Temos de encontrar uma solução para os fundos desviados, até porque Angola tem necessidade desses dinheiros. Devo dizer que desde que fui eleito andei um pouco por todo o mundo, e nestes movimentos sentei-me com muitos angolanos, cheios de dinheiro, que não sabem o que fazer. Têm medo de voltar para Angola e andam de paraíso fiscal em paraíso fiscal a perder o dinheiro por esse mundo, a fazer investimentos um pouco por todo o lado, e o Estado angolano não tem sabido ser dirigido por alguém que saiba encontrar uma mediana que traga os recursos de Angola para Angola e que encontre uma solução penal com algum equilíbrio para estas circunstâncias. Porque o que se está a fazer hoje é penalizador de Angola em toda a dimensão.

O que estamos a assistir hoje é meramente um problema de vingança. De perseguição, de problemas de relacionamentos, de pessoas, não é um problema de combate à corrupção. Porque se o fosse nós víamos os corruptos todos com processos e nós estamos a ver corruptos protegidos pelo Estado, uma quantidade enorme deles. Estamos a ver uma instrumentalização em função de interesses políticos. Veja lá que para se poder [fazer] regressar o corpo do Presidente José Eduardo dos Santos está-se a prometer perdões.

Houve essa promessa de perdões?

Estamos a ler todos os dias isso. Mas também estamos a ver arquivamento de processos, vimos uma série de processos abertos contra dirigentes que com o aproximar da campanha eleitoral foram todos arquivados.

No caso da família de José Eduardo dos Santos?

De uma série de dirigentes próximos da família. João Lourenço errou na forma como abordou esta questão. Não usou de maturidade, no caso da família tinha que ser tratada como os outros todos, não pode haver uma lei para a família.

Considera rever então os processos que já estão abertos de Isabel dos Santos ou as suspeitas sobre outros filhos de José Eduardo dos Santos? Ou no caso de Filomeno, em que há mesmo uma condenação? Como é que lidaria com estes casos?

Não vou de certeza absoluta meter a minha mão no seio da justiça a nenhum nível. Estando o sr. Adalberto Júnior na figura de Presidente da República não vai dar ordens ao poder judicial, vai garantir a independência do poder judicial. Os próprios atores têm condições, na altura, de poder pedir revisão de processos, têm advogados que podem colocar recursos, alguns que em muitos casos não foram tidos em conta, mas isso não terá a ver com o poder executivo, mas sim com o judicial.

O que vamos fazer seguramente é utilizar a maioria que vamos ter no parlamento para aprovar leis de aplicação universal. Leis que não vão ser aplicadas para pessoas A, B, ou C, ou não aplicadas para as pessoas D, E ou F, que é exatamente isso a que temos assistido. Vamos promover uma lei que traga benefícios para Angola, soluções a este conflito, que permita que angolanos detentores de muito dinheiro possam regressar a Angola, devolver parte desse dinheiro ao Estado, potenciar o erário público. E, naturalmente, como tinha a proposta de lei que levámos à Assembleia, haver uma percentagem que fica na mão de quem devolver uma parte e puder aplicar a outra parte em investimentos, na criação de emprego, na atividade económica.

Os “maribondos” estão sentados na cadeira do poder

Uma das filhas de José Eduardo dos Santos, “Tchizé”, tem apelado ao voto “no 3”, posição que a UNITA ocupa no boletim de voto e deixou no ar a ideia de que a poderia estar a financiar. Numa entrevista na CNN disse o seguinte: “Mandaram cartas para Portugal, Mónaco, Inglaterra, Nações Unidas a dizer que sou suspeita de branqueamento de capitais, inclusive de incitação à violência, associação criminosa e terrorismo! Sim, porque, segundo o Estado angolano, as pessoas que supostamente financiam a oposição são terroristas”. Há um apoio financeiro da família de José Eduardo dos Santos à Frente Patriótica Unida?

Nunca aconteceu, mas não é desconhecido de vossas excelências jornalistas que o governo angolano levou ao limite a perseguição partidária ao ponto de confisco das contas da UNITA, anulação de congressos, manipulação do poder judicial. João Lourenço tem uma quantidade sem limites de amostragem de incapacidade de governação em democracia, falta de maturidade democrática. Nunca fomos financiados [pela família de José Eduardo dos Santos], o financiamento que nós temos tido são os públicos normais, dos membros, e o do Orçamento Geral de Estado para a campanha.

A oposição tem vidas de transparência, não vive nos luxos extremos vergonhosos e escandalosos — se hoje se fizer uma investigação aos membros do governo todos eles terão muitas dificuldades (ou será quase impossível) a justificarem os fundos que têm.

Sendo os donativos anónimos, não tem receio que o dinheiro dos chamados “maribondos”, expressão usada por João Lourenço para referir aqueles que desviaram dinheiro do erário público, chegue aos cofres da UNITA?

(risos) Os maribondos estão sentados na cadeira do poder, isso é tudo uma dialética que a nós não nos engana. É muito feio ver o Presidente da República de Angola a apelidar uma parte dos seus colegas de maribondos numa visita oficial num Estado estrangeiro, Portugal. Isso não é nada bonito.

A UNITA ou FPU não podem estar a receber dinheiro das pessoas que esvaziaram os cofres públicos de Angola?

( risos) Nós temos uma posição tão clara de denúncia e combate à corrupção antecedida de anos ao combate que o atual governo assumiu por necessidade, que é inquestionável esta matéria. Fomos sempre as vozes da denúncia da corrupção. Levámos provas ao parlamento da corrupção de Angola. Mesmo a governação de João Lourenço nunca foi capaz de aceitar os documentos que levámos ao parlamento, pedimos comissões parlamentares de inquérito à Sonangol, o MPLA votou contra, ao Fundo Soberano, o MPLA votou contra, ao BESA, com muitas provas, mais de dez páginas de nomes de pessoas que fizeram desvios enormes, o MPLA votou contra. Não tem a coragem de permitir a verdadeira investigação. A oposição nesta matéria está muito à vontade, tem vidas de transparência, não vive nos luxos extremos vergonhosos e escandalosos — se hoje se fizer uma investigação aos membros do governo todos eles terão muitas dificuldades, ou quase será impossível, justificarem os fundos que têm. (risos)

Já que fala em transparência, apresentou a sua declaração de rendimentos?

Naturalmente que sim, sou deputado à Assembleia Nacional e no ato de posse tive de entregar a minha declaração de rendimentos. E tenho intenção de no primeiro dia de posse de Presidente da República apresentar a minha declaração pública, não esta escondida. A lei que o MPLA aprovou protege as declarações dos titulares do poder executivo, estão fechadas e é proibido serem abertas a não ser pelos magistrados em condições de exceção.

É uma prática com que vai acabar se for eleito?

Comigo acaba. Não tenho nada a esconder, precisamos de dar demonstração de fazer diferente. Temos aqui um regime que não mudou nestes 46 anos, um regime que defende o Estado central, que substitui os empresários pelo Estado, e pelos governantes, os empresários estão falidos na sua maioria porque têm a competição desleal dos governantes… é tudo isto que nós precisamos de acabar. Nós precisamos de uma nova Angola, que agarre naquilo que é o potencial extraordinário deste país, que é imenso, e que o coloque à disposição das suas populações. Temos tudo para ganhar. Cheguei ao Cunene hoje [terça-feira] de manhã, a imagem de pobreza, do desemprego, da indigência. É difícil aceitar uma coisa destas com um país com esta potencialidade. É inaceitável.

Mais de 2 milhões e 700 mil cidadãos que morreram desde 1996 vão votar nas próximas eleições

Cunene é uma província onde o MPLA tem vencido por larga maioria…

MPLA no Cunene tem sido dominador, absolutamente.

Cunene é então MPLA?

Não me parece que seja. Vamos ver. Temos um caminho grande a percorrer para tornar democráticas as instituições do meu país. Dou-lhe dois exemplos.

Estamos numa campanha eleitoral onde pela primeira vez os angolanos no exterior deveriam ter sido recenseados para votar. De 450 mil angolanos, o governo recenseou só 22 mil, menos de 5%. Porquê? Porque sabe que o voto do angolano no exterior é penalizador do seu interesse.

Temos hoje na lista dos votantes mais de 2 milhões e 700 mil eleitores mortos, cidadãos que morreram em Angola desde 1996 estão todos a votar nas próximas eleições. Isto é um problema de falta de seriedade do governo, de incumprimento das leis.

Mas isso não é um problema da comissão nacional de eleições, onde a UNITA está representada?

A CNE tem um número de membros e quando eles tomam posse deixam de ser representantes dos partidos políticos. Mas a UNITA indicou quatro membros para a CNE, onde o MPLA tem maioria absoluta. No nosso país as instituições são limitadas na sua pluralidade às percentagens das eleições. As comissões na Assembleia, o número de membros do tribunal constitucional [por exemplo] são distribuídas em função dos resultados das eleições. Este é um país partidário, porque quem o dirige sujeitou tudo à percentagem das eleições. Não há pluralidade. É um problema sério e os angolanos perceberam. E para saírem disto, têm de mandar o MPLA para casa, porque este partido não tem vocação democrática. E este é um grande, grande drama para o país que temos. Observador

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Last modified on Segunda, 01 Agosto 2022 20:40

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