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Terça, 07 Junho 2022 11:16

O discurso da fraude e a estratégia de vitimização

Apesar de as eleições apenas terem sido marcadas na semana passada, a chamada “canção da fraude” já há muito começou e é o traço comum entre todas as eleições realizadas no país.

Por Ismael Mateus

Nem Angola, nem os Estados africanos onde também se verificaram sempre acusações do género, são casos únicos. Mesmo em democracias consolidadas como a dos EUA, Brasil ou Israel ocorreram queixas de fraude feitas por Jair Bolsonaro, Donald Trump ou Benjamim Netanyahu. O traço comum é que todos questionaram o resultado das eleições e passaram a falar de fraudes, sem terem apresentado provas.

Convém dizer que a contestação das eleições é um direito dos políticos e cabe ao sistema eleitoral assegurar mecanismos de diálogo e verificação que permitam aos concorrentes usar do seu direito de reclamação e confirmação dos resultados. Logo, em causa não está o direito em si.

Ao longo dos nossos processos eleitorais, tal como acontece em muitas partes do mundo, a contestação das eleições deixou de ser um mero exercício de um direito, mas antes, uma estratégia política usada por certos líderes políticos para "deslegitimar” o processo eleitoral, as instituições democráticas e, às vezes, justificar uma eventual derrota.

Vão proliferando pelo mundo, e Angola não escapa a isso, estratégias e narrativas populistas à moda de Trump e Bolsonaro, onde os políticos prometem reformar por completo o sistema vigente, (mudar leis, alterar número de deputados, introduzir novas abordagens estruturantes); combater os políticos tradicionais(substituir os velhos, reformar a política) e fazer promessas irrealizáveis mas de grande impacto, (acabar com a corrupção em seis meses, desenvolver o país em três anos, diversificar a economia em dois anos).

O discurso da fraude é o instrumento mais usado para desqualificar os adversários, questionando, em primeiro lugar, a sua legitimidade, que assim passa a ser vista como tendo sido obtida por via fraudulenta, mas também usando a estratégia de vitimização. Quem se diz vítima da fraude, apresenta-se como um injustifiçado, alguém a quem o sistema roubou a possibilidade de chegar ao poder.

O impacto imediato dessa estratégia é criar um movimento interno e externo (junto da comunidade internacional) de alta desconfiança sobre a actuação das instituições representativas angolanas e da classe política, apresentando-se essas forças políticas como as salvadoras de uma pátria em profunda crise de valores, como a corrupção, imoralidade e má governação e, por isso perseguidas. Entre os eleitores, a narrativa da fraude transforma o processo político numa campanha eleitoral de tempo inteiro. A todo o instante, os apoiantes permanecem mobilizados, unidos e activos na luta contra uma suposta falta de legitimidade. Essa é a essência dos movimentos de contestação que assistimos no nosso país: derrubar o Governo ou causar distúrbios para impedir a governação, apenas porque, no entender desses manifestantes, a legitimidade de quem venceu é duvidosa.

Ao mesmo tempo, a mensagem que se pretende passar é que a vitória de um determinado grupo é irreversível, incontestável, a menos que aconteça a fraude. Foram exactamente esses os argumentos e os erros de 1992, quando alguns políticos afirmavam, como hoje alguns também fazem, que só uma fraude, os impediria de vencer as eleições.

Um outro elemento a ter em conta nessa estratégia da fraude é a disputa pelos indecisos. Quanto mais renhidas forem as eleições, maior é o grupo de indecisos. Nas eleições angolanas mais equilibradas de sempre, as de 1992, a vitoria foi determinada pelos indecisos que à última da hora fizeram um voto de rejeição contra a violência.

O discurso da fraude convida os indecisos a olhar para o voto como uma "mise-en-scène”, que dispensa a participação deles, já que "no final das contas tudo vai ser defraudado mesmo”, e o vencedor de sempre será o mesmo. Uma vez que o crescimento da abstenção e a soma de votos brancos e nulos, vai acentuar a queda na confiança da população em relação ao sistema eleitoral. No entanto, não é líquido que a abstenção favoreça automaticamente a oposição ou à situação. Depende de vários factores.

Outra marca das características mundiais da fraude que, também encontramos no nosso país, é o recurso à desconfiança e à desinformação, sobretudo nas redes sociais. Apesar de se ter feito um processo legislativo de que todos os partidos políticos tomaram parte, apesar de possuir uma CNE com mecanismos próprios internos de controlo e acompanhamento, são os partidos políticos que alimentam uma narrativa da fraude. Se fosse um argumento lógico, tais acusações seriam, no mínimo, um atestado de incompetência aos próprios deputados e comissários eleitorais da oposição que sabendo da máquina em andamento, não tiveram sabedoria e visão para evitar o golpe.

Infelizmente tanto a CNE como o Tribunal Constitucional assistem passivamente a campanhas de desinformação ou de assassinato de carácter dos seus líderes, sem responder com um processo de esclarecimento público e denúncia dos autores. Mesmo que se opte por não debater com concorrentes para não ferir a condição de moderação e regulação, é difícil compreender por que razão essas instituições não dialogam, esclarecem as dúvidas e até não debatem com figuras da sociedade civil que na mídia, actuam como repetidores do discurso da fraude. Tanto a CNE como o Tribunal Constitucional são também, pelo seu silêncio, cúmplices de toda a suspeição sobre o processo eleitoral.

Nesse silêncio, quanto mais o MPLA aparecer a criticar o discurso da fraude, mais parecerá que o maioritário sai em defesa de causa própria.

O discurso da fraude tem de ser levado a sério. Deve ser estudado em função do que vem ocorrendo em diversas partes do mundo. Deve ser tratado com profissionalismo e não pode ser minimizado, sob pena de vivermos as convulsões que já assistimos noutras paragens. E não se pode dizer que por todo o lado tenha sido um fracasso.

Há casos em que essa estratégia foi bem-sucedida, como aconteceu no Brasil e EUA, onde Jair Bolsonaro e Donald Trump venceram as eleições exactamente porque conseguiram fazer passar a ideia de uma grande máquina eleitoral que trabalhava contra a sua ascensão, ou seja, com o tal discurso da vitimização, a vítima, combatida pelo sistema. JA

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