Mas prendendo-os mais não faz do que projectar para a fama internacional jovens que de outro modo, quiçá, nunca teriam sido conhecidos. Quem anda nisso há muito tempo sabe que as cadeias de regimes democraticamente deficitários acabam por ser fábrica de heróis. Foi assim durante o tempo colonial. É assim ainda hoje.
Estou a pensar concretamente em Nito Alves, um adolescente de 17 anos, de quem há coisa de três meses muito pouca gente tinha ouvido falar. Tem um nome que é mais um destino. Porque já houve um outro Nito Alves, que nunca foi preso pelo regime colonial, mas que se juntou às forças do MPLA, em 1965, quando, precisamente, os seus companheiros de clandestinidade em Luanda foram encarcerados.
As circunstâncias absurdas em que o mais recente Nito Alves foi preso (quando só estava a mandar imprimir dizeres em camisolas), as condições kafkianas em que foi mantido na cadeia (sem culpa formada), deram uma dimensão internacional à sua causa, o que de outro modo nunca teria.
Apareceu nas páginas de vários jornais do mundo com uma foto que descrevia aquilo por que se opunha que só acabou por ser mais uma campanha a favor da sua causa. Tem sido sempre assim desde que as manifestações começaram.
Nomes como Brigadeiro Mata-Frakkus, Carbono Casimiro e muitos outros, só se tornaram verdadeiramente conhecidos depois de terem passado pela cadeia. É previsível que isso aconteça, porque essas prisões geram sempre grandes momentos de solidariedade internacional.
Os jornalistas estrangeiros escrevem; os governos estrangeiros pressionam o nosso governo. Também porque no ocidente acredita-se que sempre que no Terceiro Mundo cidadãos se opõem aos seus governos é um avanço democrático que se produz. Deter um ser humano por razões políticas é, não raras vezes, fabricar um herói.
Um dos mais famosos presos políticos do século XX, ao lado de Nelson Mandela e tantos outros, foi precisamente Agostinho Neto. Foi por causa da detenção de Agostinho Neto, em 1961, que a Amnistia Internacional surgiu (A mesma Amnistia Internacional que se multiplicou em comunicados para a libertação do adolescente Nito Alves), mobilizando um movimento internacional de recolhas de assinaturas, em que tomaram parte os grandes intelectuais da altura.
Portanto, quando Neto se evade de Lisboa, em 1963, e chega a Libreville para reclamar a liderança efectiva do movimento (ele já era presidente honorário durante os anos em que esteve preso) era indiscutivelmente a grande figura do MPLA. Podia não ser intelectualmente tão bem preparado como um Viriato da Cruz, ou Mário de Andrade, mas era certamente aquele cuja biografia política, sobretudo o ter sido preso político, lhe conferia uma dimensão internacional que só beneficiaria o MPLA nesses anos de consolidação.
Feliz, ou infelizmente, nem todas as pessoas que passaram pelas cadeias, coloniais ou pós-coloniais, saíram com a determinação de Agostinho Neto. Houve quem denunciou companheiros de luta para obter a liberdade.
E houve também os que saíram total e irreversivelmente quebrados, sem nunca mais querer saber de política. Isso aconteceu com muito boa gente, como a gente da Revolta Activa. Eu ainda conheci pessoalmente o velho Gentil Viana, que passou pelas cadeias pós-coloniais, e transportou no corpo para o resto da sua vida as marcas das sevícias que ali lhe tinham sido infligidas. Dos outros lembro a grande dimensão ética e humana, que certamente não encontraram nas cadeias, mas que parece terem-na refinado lá.
Estou a pensar noutro da Revolta Activa, o já falecido Joaquim Pinto de Andrade (que conheci muito bem). Mas em gente mais nova também, como o Nelson Pestana, o Simão Cacete, o Filomeno Vieira Lopes, o Reginaldo Silva e muitos outros. Posso nem sempre concordar com o que dizem, ou mesmo com que fazem (sempre tive problemas com a política partidária).
Mas sempre me pareceram pessoas que acreditam naquilo que dizem e fazem, e que ao longo destes anos da nossa jovem república têm sido excepcionais em fazer coincidir exactamente o que dizem com o que fazem. É difícil prever onde estarão, que caminhos trilhará essa nova fornada das cadeias angolanas. Tudo dependerá muito do país que Angola se tornará.
E é difícil prever em que país viverá Nito Alves, quando tiver 25 anos, ou seja em 2020. Mas eu sou um optimista convicto e acho que o melhor ainda está para vir: o dia em que mais ninguém tenha de ser preso por convicções políticas. Há bons sinais. Foi por causa da longevidade política do presidente dos Santos que muitos jovens saíram às ruas, e foram, consequentemente, espancados e presos.
Mas é também o presidente dos Santos quem muito recentemente, em entrevista a um canal brasileiro, disse que sim, que acha que está há "demasiado" tempo no poder. É só uma pena que essa constatação tenha vindo demasiado tarde, e à custa de muita dor.
Mas como tem de ser o presidente dos Santos a falar de certas verdades (lembrem-se quem foi a primeira pessoa a admitir publicamente que a crise económica tinha afectado Angola), é possível que agora o partido se sinta mais à-vontade em conviver com este facto.
Por António Tomás
NJ