A 19 de Outubro de 2011, os investigadores das Finanças e do Ministério Público (MP) montaram no centro de Lisboa uma operação para vigiar todos os passos de Nicolas Weber Figueiredo, um discreto gestor de fortunas luso-suíço que já então estava sob escuta telefónica. Sócio de uma empresa financeira desconhecida da maioria dos portugueses, a Akoya Management, com sede em Genebra, Nicolas foi seguido durante horas depois de alegadamente ter levantado cerca de 300 mil euros em dinheiro vivo numa loja de medalhas, a Montenegro Chaves & C.ª Lda., propriedade de Francisco Canas.
Após a recolha do dinheiro, os inspectores das Finanças notaram que o gestor fez mais três paragens. A primeira ocorreu num edifício de escritórios na Rua dos Lusíadas, na Ajuda. Depois disso, dirigiu-se para a sede do Banco Espírito Santo (BES), situada na Avenida da Liberdade. Última paragem: Torre 3 das Amoreiras, onde entrou no escritório de advogados Ana Bruno & Associados.
Nove meses depois, já em prisão preventiva no âmbito do caso Monte Branco, um processo que envolve vários gestores da Akoya num alegado esquema de fraude fiscal e branqueamento de capitais, o procurador do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), Rosário Teixeira, confrontou Nicolas: queria saber a quem entregara naquele dia os 300 mil euros. Segundo o auto do interrogatório, a que a SÁBADO teve acesso, o gestor desculpou-se dizendo que não conseguia reconstituir de memória o que se passara, mas frisou estar convicto de que o dinheiro teria sido deixado à advogada Ana Bruno, a representante legal em várias empresas e negócios do banqueiro angolano Álvaro Sobrinho ,então presidente do BES Angola (BESA) que entretanto abandonou a liderança da instituição.
Sobre o encontro na sede do BES, Nicolas Figueiredo esclareceu que era aí que normalmente reunia com o seu cliente Ricardo Salgado para debater os negócios financeiros privados do presidente-executivo do Grupo Espírito Santo (GES). A relação entre os dois era bastante próxima há vários anos, até porque a única filha do banqueiro, que em 2006 casou com o filho de um magnata suíço, tinha sido colaboradora de Nicolas no banco UBS, com sede em Genebra, na década de 90. Mas Nicolas disse mais no interrogatório, realizado a 18 de Julho de 2012 nas instalações do DCIAP: ao contrário do que acontecera quando, em Maio de 2012, foi detido juntamente com outros dois sócios da Akoya, Michel Canals e José Pinto, o gestor falou abertamente dos negócios do líder do BES, que naquele momento já iniciara o processo de regularização fiscal que o obrigaria a pagar no ano passado 4,5 milhões de euros por rendimentos não declarados ao fisco. O responsável pela comunicação do BES, Paulo Padrão, não respondeu às questões concretas que a SÁBADO remeteu a Ricardo Salgado, optando por desmentir a “globalidade das referências suspeitas”. E ainda classificou as perguntas da revista como uma “amálgama de temas” e um “posicionamento inquisitorial (...) que pode ser lido como de substituição (sobreposição?) à própria actuação das autoridades”. [Na foto, ao lado o líder do BES com Faria de Oliveira e Carlos Santos Ferreira à esquerda, e Fernando Ulrich e Nuno Amado à direita]
Nicolas revelou ao MP que o “código 2.5”, que constava na lista de clientes da Akoya apreendida pelas autoridades, era na realidade a identidade de um dos seus melhores clientes: Ricardo Salgado. O gestor confirmou também que o banqueiro tinha contas no Credit Suisse em nome da “entidade Savoices” e que esta recebera “fundos com origem em contas controladas” por uma entidade denominada Solutec.
Os beneficiários da Solutec, usada para transacções financeiras no exterior de Portugal suspeitas de fuga ao fisco, seriam o construtor civil José da Conceição Guilherme e o seu filho Paulo Guilherme. As suas empresas têm estado envolvidas em vários casos de negócios imobiliários relacionados com indícios de crimes de corrupção que foram investigados e arquivados pelo MP e a Polícia Judiciária (PJ). Pai e filho teriam, de acordo com o mesmo interrogatório a que a SÁBADO teve acesso, o número de código “2.15” nos registos da Akoya.
Contactada a responsável pelo secretariado dos dois empresários, Fátima Marujo afirmou que “não estava autorizada” a dar qualquer endereço de email ou número de fax para que a SÁBADO enviasse um conjunto de questões a José e a Paulo Guilherme. Dias depois, após novo contacto telefónico, reiterou as ordens superiores, salientando que os dois se encontravam em Angola.
Nicolas Figueiredo revelou ao MP que os “fundos” da Solutec enviados para a Savoices teriam origem em contas bancárias da família Guilherme abertas no BESA. E que estes pagamentos estariam relacionados com negócios em Luanda. Um dos autos de interrogatório do gestor de fortunas é claro a esse respeito: “Tais contas receberam os proveitos de investimentos imobiliários realizados em Angola, designadamente um empreendimento situado na zona de Talatona, em Luanda, ao que se recorda designado Dolce Vita.” Confrontado com o extracto bancário da Savoices no Credit Suisse, com data de 29/11/10, Nicolas Figueiredo confirmou que “os movimentos financeiros (...) entre a Solutec e a Savoices poderão ter atingido o montante de cerca de 14 milhões de euros”.
Por duas vezes, o gestor de fortunas disse ao MP – a última no interrogatório realizado no DCIAP a 11 de Julho deste ano – que tinha ido a Angola visitar dois projectos imobiliários na zona de Talatona, entre eles o Dolce Vita, bem como outros “quatro empreendimentos”, localizados no centro de Luanda, um deles perto do edifício Escom, também “desenvolvidos por empresas ligadas a José Guilherme” e a sociedades angolanas.
Questionado sobre as razões das muitas viagens que fazia a Angola, cujos vistos oficiais de entrada no País terão sido várias vezes concedidos através de cartas-convite com origem no BESA, Nicolas Figueiredo esclareceu que ia ver os investimentos dos clientes e que também o fazia por “razões sociais”, sobretudo para se encontrar com alguns dos principais sócios da Akoya que estavam ligados ao Grupo BES: Álvaro Sobrinho e Hélder Bataglia (os dois controlavam pouco mais de 45% da Akoya e Ana Bruno detinha cerca de 5%). Bataglia era então também administrador-executivo do BESA.
O procurador Rosário Teixeira mostrou ainda a Nicolas Figueiredo várias instruções de débito sobre a conta da Savoices, “aparentemente assinados pelo dr. Ricardo Salgado”. O gestor garantiu a existência de uma operação de 7 milhões de euros destinada a reforçar, em Dezembro de 2010, o capital no GES. Ao Jornal de Negócios, Ricardo Salgado já confirmou, sem citar valores, que uma parte dos seus rendimentos geridos pela Akoya serviram para aumentar o capital da holding Espírito Santo e que todo este dinheiro tinha sido ganho no estrangeiro, mas não revelou exactamente onde.
Segundo Nicolas Figueiredo, os 7 milhões de euros terão sido transferidos da conta da Savoices para outras entidades alegadamente controladas por Salgado. Primeiro, para a Lindsel e depois para a Quintus, com conta no Banque Privée Espírito Santo. No ano seguinte, esse mesmo montante terá regressado à conta da Savoices através de várias transferências interbancárias. Nos registos do interrogatório judicial não constam mais pormenores sobre estas movimentações financeiras, mas o gestor da Akoya voltou ao assunto dois meses depois, a 25 de Setembro de 2012, quando foi novamente ouvido pelo MP. Nesse dia, começou por confirmar o circuito do dinheiro pelas três entidades alegadamente ligadas a Salgado e também afirmou que se recordava que o banqueiro teria obtido do Credit Suisse um financiamento de 7 milhões de euros tendo dado como garantias precisamente os activos depositados na conta da Savoices.
Segundo esta versão, o empréstimo terá depois sido pago sem mexer sequer nas referidas garantias bancárias. O dinheiro veio de “alguns activos” (não especificados no interrogatório) vendidos por Salgado e de “transferências que foram recebidas da conta da Solutec, ligada ao designado Grupo da Amadora, do sr. José Guilherme”, indicou Nicolas Figueiredo ao MP.
No processo-crime consta que os construtores civis movimentariam muito dinheiro suspeito de fuga ao fisco. Por exemplo, Paulo Guilherme teria também uma conta junto do Credit Suisse, de Singapura, em nome de outra sociedade, a Quadralis, que era alegadamente “alimentada através de entregas de dinheiro que o próprio depoente [Nicolas Figueiredo] recebia em Portugal”, segundo diz o interrogatório do MP a que a SÁBADO teve acesso. Nicolas Figueiredo revelou ao MP que se recordava de ter recebido, só em 2011, um total de cerca de 1 milhão de euros em notas, entregues por Paulo Guilherme.
À semelhança do que terá acontecido noutros casos, o dinheiro vivo entregue em Portugal não terá circulado de forma directa para as contas da Quadralis. O processo era outro: eram feitas as chamadas “operações de compensação”. Segundo Nicolas Figueiredo, a conta da Quadralis era alimentada com transferências financeiras interbancárias de outras entidades – por exemplo, das entidades Bestyeld e da Hagerman – equivalentes à entrega do numerário. Depois, o dinheiro em notas ficava nas mãos dos gestores da Akoya e era disponibilizado a outros clientes que o queriam receber de forma discreta em Portugal, ocorrendo em sentido inverso a operação de compensação interbancária no exterior.
Para receberem o dinheiro era também frequente os clientes da Akoya recorrerem aos serviços de Francisco Canas (actualmente em prisão preventiva), que ganharia uma comissão de 1% para ser uma espécie de correio que faria circular milhões de euros em cash ou através de contas abertas no BPN, BPN IFI, em Cabo Verde, e no Millennium bcp.
A investigação desta circulação de fundos terá levado o MP a identificar outras situações suspeitas. Num caso, Nicolas Figueiredo admitiu que Paulo Guilherme lhe entregou dinheiro, “tendo utilizado esse numerário para fazer entregas dirigidas ao Emanuel Madaleno [irmão de Álvaro Sobrinho], fazendo este depois uma transferência em compensação para a conta de Paulo Guilherme, em Singapura”.
O conteúdo dos interrogatórios judiciais indicia que os investigadores estariam em 2012 a tentar perceber se havia ligações financeiras entre entidades controladas por Ricardo Salgado, a advogada Ana Bruno, Álvaro Sobrinho e vários elementos da família de Sobrinho – os Madaleno. Por exemplo, o MP tentou obter sem sucesso mais informações de Nicolas Figueiredo sobre alegadas movimentações financeiras entre a família Madaleno e a Savoices, de Ricardo Salgado. Numa ocasião até confrontou o gestor com um email em que Álvaro Sobrinho alegadamente pedia (o interrogatório não revela a quem ou em que data isso ocorreu) dados sobre uma conta da Savoices. O objectivo? A entidade New Brook, alegadamente controlada por Sobrinho, queria “enviar uma encomenda” à Savoices.
Nicolas Figueiredo ainda admitiu que pudesse estar em causa uma transferência financeira, mas disse ao MP que desconhecia a operação. Na única entrevista que deu ao ‘Jornal de Negócios’ sobre o envolvimento no caso Monte Branco, Ricardo Salgado não quis sequer fazer comentários à ligação de Álvaro Sobrinho à Akoya. Questionada por email, a advogada Ana Bruno não respondeu às questões da SÁBADO.
Com a Akoya sob investigação do MP, Ricardo Salgado, José Guilherme e o filho terão ordenado que o dinheiro que estava nas contas da Savoices e da Solutec fosse transferido para outras “entidades”, nomeadamente para a “Arista” (no caso de Salgado) e a “Semeta Group” (José Guilherme), com contas no Credit Suisse e na UBS, em Singapura. Antes de isso acontecer, segundo confirmou em Julho passado ao MP Nicolas Figueiredo, o banqueiro do BES terá recebido na conta da Savoices mais cerca de 4 milhões de euros – cuja origem o gestor de fortunas disse desconhecer – que teriam sido depois investidos em acções da EDP.
Num interrogatório anterior, Rosário Teixeira já lhe mostrara uma impressão em papel de um email relativo à aquisição de 1,5 milhões de acções da EDP debitadas na conta da Savoices a 10 de Novembro de 2011. O gestor revelou aos investigadores que o investimento foi uma decisão conjunta dele e de Ricardo Salgado – o negócio terá sido feito pouco antes da última privatização da EDP, quando vários inspectores tributários de Braga, liderados por Paulo Silva, já estavam a escutar os telefones de Salgado e de José Maria Ricciardi [na foto], presidente do banco de investimento do GES, o BESI, que assessorou os chineses da China Three Gorges na compra da EDP. Ricciardi viria depois a ser constituído arguido neste caso e voltou a ser colocado sob escuta telefónica.
Só após o quarto interrogatório, realizado a 24 de Outubro de 2012, é que o MP decidiu acabar com os quase seis meses de prisão preventiva de Nicolas Figueiredo (e também de Michel Canals). Um dos argumentos usados pelo procurador Rosário Teixeira [na foto] no despacho que decide a sua libertação foi que os dois estavam a colaborar com as investigações: “Com efeito, tal como já fizeram nos interrogatórios subsequentes, produziram declarações com evidente interesse para a descoberta da verdade.”
No despacho sublinha-se, sem especificar, que vários documentos encontrados em buscas tinham permitido “confirmar a veracidade das versões apresentadas pelos arguidos”. Canals e Nicolas foram proibidos pelo MP e pelo juiz de instrução Carlos Alexandre de contactar anteriores clientes da Akoya com nacionalidade ou residência em Portugal, situação que ainda hoje se mantém. Até com Ricardo Salgado – que, desde Janeiro deste ano, segundo um despacho do MP, deixou de ser “suspeito” da prática de “qualquer ilícito de natureza fiscal”.
SÁBADO